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Horizonte e Complementaridade

Eudoro de Sousa (HCSM:69-73) – Tales de Mileto

Ensaio sobre a relação entre mito e metafísica, nos primeiros filósofos gregos

sábado 9 de outubro de 2021

[Eudoro de Sousa  . Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 69-73]

A filosofia, na Grécia, tem por certidão de nascimento um texto de Aristóteles repetidamente citado e minuciosamente comentado (Met., I, 3, 983 b 6 e segs.): «a maioria dos primeiros filósofos, acreditaram que os únicos princípios (arkhas) de todas as coisas (hapanta tà ónta) são os de índole material; pois aquilo de que constam todos os entes e é a primeira origem da sua geração e término de sua corrupção, permanecendo a substância, mudando, todavia, as determinações acidentais, é, conforme dizem, o elemento e o princípio dos entes. Por isso creem que nada se gera e nada se destrói, pensando que tal natureza (physeos) se conserva sempre […]. Mas quanto ao número e à espécie desses princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, que deu início a tal filosofia, afirma que é a água (por isso, também declarou que a Terra jaz sobre a água); e talvez (isos) concebesse esta opinião, observando que o alimento é sempre húmido e que até o calor nasce da [69] humidade e dela vive (e aquilo de que as coisas nascem é o princípio de todas elas). Por isso, talvez haja concebido esta opinião; e também porque as sementes têm sempre uma natureza húmida e por ser a água, para as coisas húmidas, o princípio da sua natureza. Segundo alguns, também os primeiros autores de teogonias (protous theologesantas), muito antigos e anteriores a nós, tinham a mesma opinião acerca da natureza. Com efeito, fizeram do Oceano e de Tétis pais da geração (tes geneseos pateras)». Quem procure redescobrir nestas linhas o início da filosofia, advirta-se de que poderíam algumas ficar tranquilamente à margem de toda e qualquer preocupação, quanto à finalidade a atingir: o «talvez» que introduz o motivo pelo qual Tales de Mileto teria proposto a água como princípio asseguramos de que as palavras seguintes exprimem uma hipótese — a mais plausível, na opinião de um filósofo, filho de médico, e autor de numerosos escritos de anatomia e embriologia. A água fora eleita por Tales, «talvez» porque «o alimento é sempre húmido», «porque as sementes têm sempre uma natureza húmida» e «por ser a água para as coisas húmidas o princípio de sua natureza». Mas, em verdade, Aristóteles não sabia porquê, nem quis dar-se por ciente do motivo pelo qual a água, no pensamento de Tales, é o princípio de tudo. Ainda assim, inclinamo-nos a não demitir precipitadamente a hipótese, pelo menos na medida em que ela se inclui, sem o menor esforço especulativo, na soma dos argumentos que a moderna historiografia acumulou, para garantir a veracidade e autenticidade de certos rótulos insistentemente apostos aos sistemas dos três filósofos de Mileto. Referimo-nos, é claro a «hilozoísmo», «panzoísmo», «pampsiquismo» e quantos mais pretendam designar a indistinção primordial de matéria, vida e consciência, frequentemente apontada como notável característica desses lances iniciais do pensamento ocidental, que mereceu a adjectivação de «filosófico».

35. A mesma reserva quanto à generalizada desconfiança que paira sobre a literatura doxográfica se impõe, ao lermos as últimas linhas do texto referido. É certo que, também aí, o filósofo reproduz a opinião de outros, sem assentimento ou dissentimento manifesto. Não há dúvida que ficamos sem saber se Aristóteles aprova ou não aprova a possibilidade de o primeiro Milésio haver transposto para o plano da especulação cosmológica a visão mitológica testemunhada por Homero  ; mas não é absurdo pensar que não a desaprovasse inteiramente, visto que noutro lugar do mesmo livro da Metafísica (982 b) afirma que, «de algum modo (pos), o philomythos se identifica com o philosophos». Conceda-se, todavia, que o ponto [70] não é tão relevante quanto parece, ao verificarmos que nem tanta ênfase é deposta na identificação, mesmo restringida pelo mencionado advérbio, nem se encontram muitas passagens, em toda a imensa obra do filósofo, atestando que alguma vez ele tenha seriamente pensado na historiabilidade de um trânsito da mitologia para a filosofia, em qualquer estágio do seu desenvolvimento. O apelo à mitologia grega e, sobretudo, a seus antecedentes orientais caracteriza uma etapa muito mais recente, na afincada busca dos motivos que teriam levado Tales a proclamar que a água é o princípio de todas as coisas. Entre estes insere-se muito naturalmente o que Aristóteles não dá por hipótese sua: «por isso também declarou que a terra jaz sobre a água». Mas a água, considerada apenas como suporte da terra, que sobre ela flutuaria «à maneira de um lenho» (Arist., De caelo, II, 13, 294 a 28) ou «more navigium» (Sen., Nat. Quaest., III, 14), se, na intenção de apontar uma causa física dos terramotos, condiz com os demais informes que a Antiguidade nos transmitiu, acerca do primeiro Milésio — por exemplo, a previsão de um eclipse do Sol, a medida da distância de uma nave à costa ou da altura das pirâmides, o desvio do curso de um navio, a explicação das enchentes do Nilo —, certamente desdiz a justeza da atribuição a Tales da dignidade de filósofo, pois, quanto a essas «descobertas», nem cada uma de por si, nem todas em conjunto, apontam para além da limitada área em que se dispõe o receituário «pré-científico» de toda a comunidade cultural do Oriente mediterrâneo. Daí que, cingindo-nos ao espírito e à letra da notícia aristotélica, tenhamos, mais uma vez, de reconsiderar a hipótese de um trânsito da «filomitia» à «filosofia» — neste caso, mediante a cosmologia mesopotâmica (e egípcia) das águas primordiais, ou a diacosmese grega do Oceano. Na alternativa entre ciência e mito, onde se pretende inserir as origens de um pensamento que a posteridade entendeu apelidar de filosófico, a opção impõe-se por força de coerência interna: em todo o caso, recusamo-nos decididamente a admitir que um Tales interessado em explicações «científicas» não se antecipasse à objecção de Aristóteles, apercebendo-se de que a água, como suporte da terra, carecia, ela própria, de um suporte para si (Arist., De caelo, II, 13, 294 b 35).

36. Dir-se-ia, portanto, que o dilema «pró mito, contra ciência» ou «pró ciência, contra mito» não deixa lugar em que se fixe a origem da filosofia, como disciplina autônoma e autárquica, se, como o pretende Aristóteles, ele tem de ser ocupado por Tales de Mileto. Mas quem poderá deter-se à margem da impetuosa corrente [71] tradicional? Se a bibliografia especializada, que o saibamos, só regista três nomes de historiadores da filosofia grega, vituperados pelo arrojo de recusar a Tales o justo título de filósofo (A. Döring, em 1877; E. Ch. Peithmann, em 1902; H. Cherniss, em 1936), estejamos certos de que a informação aristotélica e de toda a doxografia subsequente há-de ser paga a qualquer preço. No citado texto da Metafísica, há um «muito», do qual se tem escrito pouco, e um «pouco», do qual se escreveu de mais — isto referido, note-se, com particular atenção, o privilegiado lugar que se atribui a Tales, no limiar da filosofia ocidental. O «muito» consiste, em primeiro lugar, na conclusão das páginas de epistemologia que o precedem: a filosofia, em última análise, é investigação dos princípios. Agora, no seu breve escorço histórico, Aristóteles define «princípio» como «aquilo de que constam todos os entes e é a primeira origem de sua geração e término de sua corrupção». Isto já é muito, pois, embora a definição venha expressa em termos peculiares da Escola, não há motivos para que nos recusemos a admitir que semelhante ideia andasse longe da cogitação dos «físicos» da Jónia. «Donde emergem e aonde imergem os entes que nascem e morrem, donde vêm e para onde vão as coisas que se constroem e se destroem?», é pergunta que, nesses próprios termos, não desmerece de uma especulação incipiente, nem mesmo da mais evoluída: encontramo-la em todas as épocas, sob as mais diversas e complicadas formas. Sobre o muito que nos diz Aristóteles, nesta passagem da Metafísica, reincidiremos logo; mas importa dizer antes que, segundo nos parece, o «pouco» estaria na determinação do princípio como «água», caso esta não seja mais do que, no século iv, se entendia como um de entre os quatro elementos. O grande filósofo de Estagiro, de tão preocupado em expor a sua doutrina das quatro causas, e encerrar os seus mais remotos antecessores, na estreita categoria da causalidade material, leva-nos quase irresistivelmente a supor que o mais importante, nessa primeira página de história, seja a menção da água-elementar, como princípio de tudo. Adivinhar, quando não pode saber de ciência certa, é um risco que o intérprete desafia, queira-o ou não. Pode ser que tal fosse, verdadeiramente, a intenção de Aristóteles; mas se o foi, ao mesmo tempo em que apontava a água, como a grande descoberta iniciadora do pensamento filosófico, deixou entrever que tanto ou mais relevante, como distintiva característica desse pensamento, é que ele arrancasse subitamente de hapanta tà ónta, isto é, da visão de «todas as coisas, em uma só» («em uma só», é o que se lê no prefixo colectivo ha-). E agora o que se pergunta a qualquer filósofo-historiador da filosofia é, [72] precisamente, isto: que é o que mais importa, no concernente às origens da filosofia? Quanto a nós, não vemos por que e como hesitar, e respondemos deliberadamente: se Tales merece ser designado como o «primeiro filósofo», não é tanto porque declarasse que o princípio de tudo é a água, quanto por haver sido o primeiro a falar de tudo como de uma coisa só. Aqui nos deparamos novamente com o «muito» que está contido na afirmação aristotélica. Que mais nos poderia o filósofo ter dito das origens da filosofia?

37. Sem dúvida, no texto aristotélico, hapanta tà ónta refere-se directamente ao lado de cá, digamos, às coisas do mundo empírico, e não ao lado de lá — ao princípio de todas elas. Mas se a posição de um princípio é o que permite falar de todas as coisas, como se fossem uma só, então o princípio, seja ele qual for, torna-se no único representante credenciado de hapanta tà ónta. «Todas as coisas, em uma só», outra maneira de dizer «princípio», que para Tales teria sido a água, e para Anaximenes   há-de ser o ar, foi designado por Anaximandro   pelo nome que lhe pareceu mais adequado, apeiron, substantivo neutro, composto do alpha privativum e de um vocábulo derivado de peirar («limite»), pelo que obtemos, finalmente, a proposição: «todas as coisas em uma só» é «uma coisa sem limites», com o seu reverso evidente e intuitivo, dado certificado pela observação do mundo empírico, de que «todas as coisas têm limites». O que os não tem é a «coisa só», o periekhon, o «envolvente» ou «circundante» de todas as coisas limitadas. Neste ponto há que prevenir o mal-entendido que não pode deixar de surgir da leitura das primeiras linhas da notícia aristotélica: «a maioria dos primeiros filósofos acreditaram que os únicos princípios de todas as coisas são os de índole material (tàs en hyles eidei)» não se interpreta, sem perigo de incorrer no mais grosseiro dos anacronismos, como se os primeiros filósofos tivessem professado o materialismo, entendido em qualquer dos sentidos que se possam e queiram atribuir à palavra. O contexto só permite depreender deste passo da Metafísica que, na opinião de Aristóteles, os primeiros filósofos só conheciam a primeira das suas quatro causas, não distinguindo, portanto, em qualquer substância ou indivíduo, matéria, eficiência, forma e finalidade. Mas, ainda assim, estamos certos de que não pequena surpresa seria a de Anaximandro, se lhe houvessem dito que tamanha era a deficiência do princípio a que dera o nome de apeiron, e tanto maior, quanto mais certo parece que lhe atribuíra, com ulteriores determinações, o ser «imortal», «incorruptível», «tudo governar» e [73] «tudo envolver», sendo, afinal, todo o «divino» (Deichgräber, 1940). Só quanto a um dos termos da acusação talvez possamos ficar seguros de que não discordaria; o apeiron, inteiramente destituído de limites internos (mantemos, apesar de Kirk e outros, a necessidade de empregar esta adjectivação dos limites) era o indiferenciado, o «informe» (Deichgräber: «Gestaltslos»). Não nos parece nem sequer verosímil que um pensador capaz de ascender ao grau de abstracção de que testemunha um princípio instituído por total negação do que, em primeiro lugar, caracteriza todas as coisas existentes no mundo empírico (os limites, as diferenças), não tivesse consciência de que projectara, em redor dele, um outro mundo, imperceptível, justamente pela razão inversa da perceptibilidade do primeiro; e com este agravo, de o acento valorativo recair com a maior intensidade nesse mundo circundante, em virtude dos supramencionados atributos, que o erguem à dignidade de um, ou do único, ser divino. Tudo quanto existe, ficou dividido em dois: o que é princípio, e o que do princípio devém. Quem poderá dizer que a metafísica não nasceu com o primeiro passo da especulação filosófica? E qual é esse passo? Já o dissemos: pensar que «todas as coisas, em uma só» é «uma só coisa, sem limites». O Indiferenciado é a primeira cifra da codificação filosófica do «fascinante mistério do horizonte». Preferimos designá-lo assim, pois sempre cabe uma justa hesitação onde e quando quer que surja a pergunta insistente, sobre a verdade que se atinge ou o erro que se comete, pretendendo deduzir o conceito da imagem, o filosofema do mitologema. O problema contorna-se mediante a concepção, apenas enunciada, de que possa haver a identidade de um desconhecido projecto, do qual só se conhecem duas projecções diversas em planos funcionais diferentes, quer dizer, na concepção de uma complementaridade da mitologia e da filosofia. Deste modo, como as projecções de qualquer corpo não se deduzem uma da outra, mas ambas do corpo projectado, evitamos a infindável discussão acerca das origens mitológicas da filosofia, no início de seu desenvolvimento histórico. Exemplos mais recentes da tarefa ingrata são as numerosas páginas de Cornford (1952) e de Hölscher (1968) a propósito de Anaximandro, obras, aliás, admiráveis, sob outros aspectos.