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A Morte

Dastur (2002:77-85) – A morte e o possível

Fenomenologia do ser-mortal

quarta-feira 31 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

Extrato de F. Dastur  , A Morte

A partir daí compreende-se que a morte seja determinada por Heidegger em Ser e tempo   como uma possibilidade do Dasein, e que ela se lhe apresente em seguida, de maneira cada vez mais decisiva, como uma "capacidade" dos mortais que são os homens. Tem-se frequentemente ressaltado o caráter paradoxal da definição que ele dá, assim, da morte, como possibilidade da impossibilidade da existência em geral e não como "pura e simples" impossibilidade desta, e é necessário, para ter acesso à compreensão desse paradoxo, evidenciar a importância da qual está revestida a noção de possibilidade na análise heideggeriana   da existencialidade (vide->breve756]).

A morte, isto é, a impossibilidade da existência, é uma possibilidade de existir que o Dasein tem que assumir, já que, como vimos, o futuro, que é o fim do existir, é alguma coisa com que o Dasein tem relação e em face da qual ele se comporta. Enquanto tal, a morte tem o caráter do que está a ponto de acontecer, daquilo que o Dasein tem como provável. Mas, como a morte não é nada que possa ser efetivamente experimentado, essa iminência não pode ser senão a do poder-ser o mais próprio do Dasein, ele mesmo na condição de ser mortal, o que implica que essa possibilidade que é a morte o remeta à totalidade de seu próprio ser, enquanto este não mantém mais nenhuma relação com os outros. Essa possibilidade que é a morte não é, contudo, uma possibilidade entre as outras, mas se revela a mais própria tanto quanto a possibilidade não ultrapassável e não relativa do Dasein.

Entretanto, não se trata de imaginar que essa possibilidade notável que o Dasein possui em face da totalidade de seu próprio existir seja constituída no decorrer da existência e por adoção temporária de uma atitude particular. Se tal fosse o caso, seria necessário supor que alguns são despossuídos do que o Dasein constitui como sua propriedade, ou seja, a relação com a morte, a mortalidade. Ora, esta não é o objeto de um saber "teórico", ela retira o véu que a cobre, ao contrário, mais originariamente e de maneira mais urgente na disposição efetiva fundamental que é a angústia. Na verdade, é na angustia que traz o Dasein diante de si mesmo, que se revela "autenticamente" a mortalidade. Mas isso não significa, de modo algum, que ela não constitua, desde o início, a existência de fato do Dasein, pois, se este pode não se conhecer a si mesmo na inautenticidade do cotidiano, é precisamente porque há diferentes formas para o Dasein de referir-se à sua própria mortalidade, enfrentando-a na angustia ou dela fugindo ao deixar-se absorver pelas tarefas mundanas. Mesmo no cotidiano, o Dasein confronta-se com a morte no modo da fuga. O que permanece constantemente em questão na existência, na autenticidade como na inautenticidade é o ser-mortal, e eis a razão pela qual é possível dizer que o Dasein morre "na realidade" por mais tempo que ele exista.

Entretanto, o que caracteriza a relação inautêntica com a morte é que nessa possibilidade notável que ela constitui aí não se apresenta em sua verdade, embora ninguém ponha "seriamente" em dúvida a certeza da morte. O que a simples consideração "teórica" demonstra é, contudo, a certeza empírica do falecimento, a qual não é jamais, e é o caso de todas as certezas empíricas, senão provável. Não é então possível obter a certeza de que a morte virá dos casos de falecimento realmente observados. E, todavia, essa certeza está bem ali como o se-saber mortal presente no cotidiano. Mas, ao mesmo tempo, esse saber permanece como "desconectado" daquilo que sabe e não sente em seu próprio ser, no que lhe concerne, pois a morte permanece para ele um acontecimento que sobrevêm "certamente", mas "ainda não provisoriamente". O que dessa forma se oculta no cotidiano é a iminência da morte, o fato de que ela seja possível a cada instante e que a indeterminação do momento da morte não seja separável da certeza desta. É o adiamento "inautêntico" da morte que permite, no final das contas, confundi-la com o falecimento, com a ocorrência dentro do mundo que só acontece com os outros. Pois, ver sua própria morte sob a forma do falecimento é, ao mesmo tempo, querer determinar o indeterminável, avaliando o momento do falecimento - não hoje, porém mais tarde -, mas também intercalar, no intervalo calculado, as tarefas urgentes do cotidiano de maneira a encobrir o inelutável indeterminado da expiração de seu prazo.

Porém, se a morte se revela assim, através da própria inautenticidade, como a possibilidade mais própria do Dasein, é possível assumir como tal essa possibilidade? Em outras palavras, há um existir autêntico para a morte possível? A bem da verdade, toda a filosofia, como já vimos com Platão  , Montaigne e Hegel  , é uma tentativa de se abrir autenticamente para essa possibilidade extrema que é a morte permanecendo em pensamento junto dela. Mas essa meditação sobre a morte, pelo próprio fato de pretender, como Montaigne o disse tão bem, dela se "avizinhar", manifesta uma vontade de "domá-la", de assegurar sobre ela um certo domínio, tirando-lhe, desse modo, seu caráter de pura possibilidade. De modo semelhante, da simples espera da morte que preserva, certamente, o caráter da possibilidade da morte, porém sem se abrir para o que ela tem de notável. Pois se a espera é certamente a atitude pela qual nos abrimos ao possível, é, contudo, visando à sua realização e "trabalhando" por assim dizer por ela, embora, como diz Heidegger, a espera seja, na verdade, espera não do próprio possível, mas de sua realização possível. O ter a morte como provável não preserva então, de modo algum, seu caráter de pura possibilidade, mas, ao contrário, transforma-a em possibilidade com a qual nos preocupamos, o que implica sua relativização. Na perspectiva da preocupação, que visa essencialmente tornar disponível o possível e, contudo, anulá-lo como possível, a morte nada mais é então do que uma possibilidade entre outras. Estas, por outro lado, não conhecerão nada além de realizações relativas, já que não acontecem por si mesmas, mas "pelo" próprio Dasein, enquanto a morte não pode jamais se constituir um "objetivo" a ser realizado por este. O suicídio, na verdade, não é, de forma alguma, uma realização da própria morte, mas simplesmente a provocação do falecimento, e por aí o Dasein afasta de si mesmo seu morrer, que não pode assumir a não ser existindo.

Se é contudo um ser autêntico para a morte possível, este deve preservar da morte seu caráter de pura possibilidade sem procurar dispor dela ou realizá-la e deve então se esforçar para fazer aparecer essa possibilidade notável como possibilidade da impossibilidade de tudo existir. A morte não é uma possibilidade insigne a não ser porque ela não propõe nada a realizar no Dasein, já que ela é a possibilidade da ausência de todo possível, a possibilidade de não-mais-poder-ser, isto é, a possibilidade da impossibilidade pura e simples do Dasein. O paradoxo aqui vem do fato de que o impossível, esse caminho impraticável do não-ser de que já falava Parmênides  , se anuncia de alguma maneira ao Dasein como sendo precisamente impossível e impraticável. O que implica, como Platão   já o demonstrou em oposição a Parmênides  , que o não-ser "é", de uma certa maneira, ou melhor, na terminologia heideggeriana  , que ele existe, pois ser um Dasein significa propriamente existir (transitivamente) a morte. É, certamente, o que Heidegger acentuará vigorosamente em O que é a metafísica? ao dizer que o Dasein, o ocupante do nada, um nada que não está em seu poder fazer acontecer e no qual ele se encontra retido.

A morte se revela, assim, em sua constante iminência, pura possibilidade, isto é, possibilidade que permanece como possibilidade, que não se verá jamais anulada por sua realização e que, contudo, como tal, não pode ser expressa de forma dialética e não pode ser "substituível", já que para isso seria necessário "trabalhar" para sua realização. Porém, longe de poder produzir a morte, e mesmo de poder se produzir diante dela, o Dasein não pode ser dela senão o anunciador. Referir-se à morte preservando seu caráter de pura possibilidade exige, na verdade, sua "antecipação". Antecipar-se a si mesmo, eis aí o próprio existir do Dasein, na qualidade de poder-ser. Por outro lado, é enquanto se antecipa a si próprio que o Dasein se compreende "praticamente" ele mesmo e não no sentido em que ele tomaria teoricamente consciência do significado de seu próprio existir. Antecipar-se a si mesmo em seu poder-ser extremo significa, então, existir tornando possível a possibilidade que é a morte, liberando-a enquanto tal. É nesse sentido que Heidegger define o existir autêntico para a morte como "liberdade em relação à morte", pois tornar-se livre para a morte implica, ao mesmo tempo, liberar a morte de todos os estratagemas no meio dos quais tentamos domá-la, seduzi-la e neutralizá-la, para deixá-la reinar inteiramente sobre nossa existência e atribuir-lhe, assim, a possibilidade de tornar-se senhora da existência do Dasein. É um tal existir sub specie mortis, sob o horizonte da morte, que Heidegger chama de ser autêntico para a morte, pois nele se manifesta a grandeza absoluta, a desmedida da morte pressentida por Hegel   quando ele a nomeou "senhor absoluto", da qual não podia ignorar que não há substituição possível.


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