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Braver (2014:84-85) – consciência e culpa

segunda-feira 7 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

É claro que não é o nosso “si” cotidiano que nos chama à autenticidade, porque esse “si” está enraizado na inautenticidade. Em nossa vida cotidiana, ouvimos a barulheira do que “o impessoal” [das Man] diz sobre os assuntos, o que encobre outra voz que poderíamos ouvir se calássemos a incessante conversa fiada do “impessoal”: o chamado da consciência. Como vimos, a angústia e a antecipação da morte funcionam como colapsos em grande escala de nosso mundo que esvaziam o significado de nossas preocupações normais, individualizando-nos ao nos separar temporariamente dos papéis substituíveis do “impessoal”. O chamado da consciência também funciona como a angústia e a morte, isolando-nos para produzir momentos de silêncio absoluto em que pode ser ouvido (SZ  :271-3).

Nesse mundo pós-nietzschiano, não é uma autoridade transcendente, mas nós mesmos que chamamos, mas é o si em uma inquietante estranheza, o si que não se sente em casa no mundo, o si que, ejetado de um mundo destruído, vê através da estrutura “iluminada” do ser-no-mundo (SZ  :277). A consciência revela nossa verdadeira natureza e, ao fazê-lo, nos convoca a nos tornarmos o que somos, ou seja, a nos apropriarmos de nossos si vivendo de uma maneira que seja adequada ao tipo de entes que somos. Um pouco como o si noumenal de Kant   emitindo ordens éticas para o si fenomenal sob a influência de inclinações, o chamado da consciência “vem de mim e, ainda assim, de além de mim e sobre mim” e, também como em Kant  , a consciência “chama, contra nossas expectativas e até mesmo contra nossa vontade” (SZ  :275). Isso se encaixa no significado comum de consciência como algo que nos diz o que não queremos ouvir, geralmente que estamos nos comportando mal ao tentar obter o que queremos. Caímos em um cotidiano médio inautêntico para fugir de características existenciais terríveis, de modo que o chamado para reconhecer e assumir essas características vai contra nossas inclinações ontológicas. Queremos nos sentir em casa no mundo, ser tranquilizados ou ter a certeza de que a vida que escolhemos é boa e correta, que é assim que devemos viver. Mas Heidegger argumenta que a estranheza, literalmente “não estar em casa”, “é o tipo básico de ser-no-mundo, mesmo que de forma cotidiana tenha sido encoberto” (SZ  :277). Fundamentalmente, não estamos em casa no mundo, somos jogados e abandonados nele, e as tentativas do mundo de se estabelecer e se acomodar resolvendo a questão do nosso ente o tornam inautêntico.

Embora a consciência seja uma forma de discurso, ela não diz nada, o que se liga à sua discussão anterior sobre o silêncio (SZ  :165). Ela não se preocupa com delitos específicos - essa seria uma maneira decaída e ôntica (ou existencial) de interpretar a consciência que, assim como o medo, nos dá coisas para fazer a fim de desarmá-la. Essa visão da consciência permite que tratemos a vida como um caso pronto para ser resolvido, que pode ser calculado e gerenciado acumulando boas ações suficientes para compensar as más na planilha moral de alguém (SZ  :289-92). Em vez disso, o apelo diz que “o Dasein como tal é culpado” (SZ  :285), independentemente de ações ou delitos específicos. Para entender essa culpa ontológica ou existencial, precisamos examinar mais de perto o que Heidegger quer dizer com isso.

Segue uma discussão obscura sobre o significado de culpa que envolve responsabilidade e, em seus termos, ser a base para uma falta ou uma “nulidade”, uma tradução do neologismo “Nichtigkeit” ou, mais literalmente, “não-natureza-própria” (SZ  :283). Fazer algo ruim geralmente envolve privar alguém de alguma coisa - de posses ao roubar, de liberdade ao escravizar, de conforto ou vida ao prejudicar ou matar. Essas ações nos tornam responsáveis por reduzir as vítimas de alguma forma, o que significa que devemos algo a elas, o que está ligado ao significado literal da palavra alemã para culpa, “Schuldig”, como uma dívida. Entretanto, como de costume, devemos ter o cuidado de entender essa falta em termos existenciais e não em termos atuais (SZ  :283). Como vimos, o Dasein tem ou é aquilo que lhe falta; é o seu ainda-não. Da mesma forma, sua nulidade não é algo que não existe, da mesma forma que eu simplesmente não sou um cavalo, mas sim algo que permeia nosso próprio ente, da mesma forma que um estudante é, por ser um estudante, um não graduado. Assim, ser culpado significa que somos permeados por uma nulidade, atravessados por buracos que significam que nunca poderemos ser simplesmente um todo. Outra maneira de pensar sobre isso é dizer que o Dasein é finito. Embora a filosofia tenha tradicionalmente buscado maneiras de superar nossas limitações, Heidegger acredita que devemos aceitar e viver nossa finitude em vez de viver e pensar em negação a ela. Como o ser do Dasein é o cuidado, nossa culpa ontológica - ou seja, o fato de sermos definidos pela nulidade - deve informar e se manifestar em todas as três facetas do cuidado: facticidade (lançamento), existência (projeção) e queda (SZ  :284), de modo que Heidegger mostra a forma distinta que a nulidade assume em cada uma delas.


Ver online : Lee Braver


BRAVER, Lee. Heidegger. Thinking of Being. London: Polity Press, 2014