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Biemel (1987:107-111) – decadência [Verfallen]

sexta-feira 4 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Lemos em Sein ou Zeit: “O termo (sc. ser-decaído [Verfallen, decadência]) não expressa um julgamento de valor moral, ele deve indicar que o Dasein está antes de tudo e habitualmente com o ‘mundo’ que o preocupa…. O Dasein está desde o início caído de si mesmo como um autêntico poder-ser; sua queda o entregou ao ’mundo’ (SZ  :175)”.

Heidegger coloca o termo “mundo” entre aspas: com isso, ele quer dizer que “mundo” aqui não significa a mundanidade do mundo, mas sim o que encontramos dentro da estrutura referencial, ou seja, o ente intramundano que se mostra a nós em nossa preocupação cotidiana e que geralmente é identificado com o mundo.

O termo “ser-decaído” contém duas ideias. A primeira é que o Dasein compreende seu próprio ente com base nos entes que estão presentes a ele (por exemplo, ele compreende a si mesmo como uma coisa com substância e qualidades), e a segunda é que o “mundo” que está presente a ele é o “mundo” de todo mundo, ou seja, do impessoal [das Man]. Ele não compreende os entes de uma forma original, mas os compreende de uma forma confusa, como “o impessoal” os compreende. O “mundo” ao qual o Dasein se abandonou no ser-decaído é um mundo impessoal, e a compreensão por meio da qual este mundo lhe é dado é igualmente impessoal.

“Ser-decaído, render-se ao “mundo” significa: perder-se no ser-com na medida em que este é dominado pela tagarelice, curiosidade e ambiguidade (SZ  :175).”

A tagarelice, a curiosidade e a ambiguidade são, para Heidegger, os elementos constitutivos da abertura da existência imprópria e inautêntica. Nessa existência, o Dasein perde seu poder original de ser e não realiza sua ipsidade autêntica (ser-si-mesmo).

No entanto, “ser-decaído” não significa não-ser. O Dasein caído não é diminuído em seu ser do ponto de vista ôntico; ele existe não menos verdadeiramente do que o Dasein autêntico. Mas ele se realiza de maneira imprópria e, como resultado, perde o caráter de ser único ao qual todo ser humano aspira de forma mais ou menos confusa. Até certo ponto, todo ser humano deve passar por este estado, todo ser humano deve reconquistar sua própria existência ou autêntica ipseidade a partir deste estado de ser-decaído. O homem se torna um ser-si-mesmo ao superar a existência impessoal que nunca deixa de se apresentar a ele como uma possibilidade tentadora.

Poderíamos descrever o ser-decaído insistindo na imagem da queda, da seguinte forma: o Dasein cai, perdendo seu ser próprio, cai perpetuamente em direção ao “mundo” cotidiano; ao se identificar com este “mundo”, sua existência se torna tão impessoal quanto o próprio “mundo”. O que ele perde nessa queda é sua autenticidade. Ele não perde sua existência como tal (que é o que acontece na morte), mas a forma de sua existência é alterada. Assim, Heidegger pode escrever: “Das Dasein stürzt aus ihm selbst in es selbst, in die Bodenlosigkeit und Nichtigkeit der uneigentlichen Alltäglichkeit. Dieser Sturz aber bleibt ihm durch die öffentliche Ausgelegtheit verborgen, so zwar, dass er ausgelegt wird als “ Aufstieg ‘ und ’ konkretes Leben ” (SZ  :178).

O Dasein caído não está ciente desta queda em si; pelo contrário, ele a interpreta como uma ascensão a uma vida “concreta”. E o que justifica esta impressão, até certo ponto, é o fato de que ele se sente reconfortado pela opinião comum. Ela o defende contra a ansiedade que pode ser gerada pelas várias questões que necessariamente surgem em qualquer existência. Ela lhe dá uma resposta antes que o Dasein tenha tido tempo de se perturbar. Uma das características típicas do Dasein decaído é justamente a tranquilidade (Beruhigung) (SZ  :177).

Outra característica que geralmente encontramos na existência decaída, e que à primeira vista parece incompatível com a primeira, é uma certa inquietação que a domina. Embora tranquilizado pela compreensão inautêntica que protege a existência decaída de qualquer problemática real, o Dasein tende a se entregar a uma inquietação sem limites. Poderíamos explicar este fenômeno pelo fato de que o Dasein, “nas profundezas de sua alma”, não está satisfeito com a tranquilidade em que se encontra. Ele quer ter uma existência segura, mas ao mesmo tempo “viver”, estar envolvido em acontecimentos que o façam esquecer seu vazio. Ele quer se realizar de uma certa maneira, não pode escapar desta exigência fundamental e acredita que encontra sua própria identidade na ilusão da agitação perpétua, que na verdade nada mais é do que uma tentativa de enganar a si mesmo sobre seu verdadeiro estado. Ele permanece cego para o fato de que “a compreensão é em si um poder-ser que só pode se desenvolver em uma existência que é inteiramente sua (autêntica) (SZ  :178)”.

Na agitação, o Dasein é alienado de sua destinação própria, seu poder-ser autêntico.

Juntamente com a quietude e a alienação que simultaneamente determinam o Ser-decaído, devemos falar explicitamente do caráter de tentação que afeta o Dasein; já o mencionamos acima.

Heidegger descreve este caráter dizendo que o Dasein contém em si a tentação de cair na tagarelice, que fala sobre tudo sem ter nada a dizer, e na curiosidade, que está interessada em tudo, mas sem fazer nenhum contato real com nada. Heidegger até mesmo dá a este caráter a primazia sobre as outras determinações da existência decaída: é graças a ele, de fato, que o Dasein pode chegar à existência decaída: ele é tentado pelas possibilidades “mais fáceis”.

Ser tentado pela existência fácil do “impessoal”, existir na quietude e na alienação da inquietação — tudo isso contribui para constituir o movimento típico do ser-decaído. Esse movimento (como um redemoinho) precipita o Dasein em uma existência imprópria e inautêntica.

Lemos em Sein und Zeit  : “O movimento de colapso no abismo da existência inautêntica do ‘impessoal’ (um movimento que ocorre inteiramente dentro deste abismo) nunca deixa de arrancar a compreensão da projeção de possibilidades autênticas e de afundá-lo na opinião segura, que acredita que possui tudo ou que consegue tudo. Esse contínuo desenraizamento da existência autêntica e esta teimosa pretensão de acreditar que se está, apesar de tudo, sempre estabelecido ali, juntamente com o afundamento no “impessoal”, tudo isso caracteriza o movimento de decadência como um redemoinho (SZ  :178).”


Ver online : Walter Biemel


BIEMEL, Walter. Le concept de monde chez Heidegger. Paris: Vrin, 1987