O objetivo principal da análise existencial é destacar os “elementos” estruturais do Dasein e fornecer uma análise detalhada deles; em seguida, ela deve descobrir a síntese que une esses elementos. Nesse nível, além disso, a palavra “elemento” perde seu significado restrito; é melhor falar das partes integrantes do mesmo todo. É, portanto, uma questão de descrever o processo unificador pelo qual essa síntese ocorre: é isso que Heidegger faz no parágrafo 39 de Sein und Zeit , sob o seguinte título: “A questão da totalidade original da estrutura global do Dasein (SZ :180)”.
Ele toma como ponto de partida a análise de um fenômeno que manifesta de forma exemplar essa unidade dos elementos estruturais do Dasein: o fenômeno da angústia. Não podemos entrar em detalhes aqui sobre essa análise, que infelizmente deu origem a muitas interpretações errôneas. Limitar-nos-emos a indicar os resultados obtidos por Heidegger.
“O fenômeno completo da angústia nos revela o Dasein como efetivamente existente na forma de ser-no-mundo. As características ontológicas fundamentais desse ser são: existencialidade, facticidade e ser-decaído (SZ :191).”
A noção de “facticidade” expressa o que foi caracterizado acima pela expressão: ser-jogado [Geworfenheit]. O termo “existencialidade” indica esse caráter do Dasein de se projetar por meio de sua compreensão em uma possibilidade de si mesmo, que é ao mesmo tempo o desvelamento do ente (ek-sister).
Heidegger chama a facticidade, a existencialidade e o ser-decaído de características ontológicas fundamentais do Dasein.
Vamos revisar brevemente as características do Dasein, conforme elas emergem das afirmações anteriores.
“O Dasein é um ser para o qual, em seu ser, é uma questão deste mesmo ser [1]”. Ele é com vistas a si mesmo; isso significa que cada uma de suas ações — e, de modo geral, cada um de seus modos de atividade, que se resumem a uma sequência de objetivos hierárquicos — refere-se, em última análise, a um “para quê” final, que é uma certa realização do Dasein. Essa realização pode ser um sacrifício, a criação de uma obra de arte ou o trabalho diário de um trabalhador.
Como já dissemos, o Dasein é sempre determinado por seu poder-ser (SZ :191).
Para o Dasein, a angústia desempenha um papel predominante: por meio desta, o Dasein é confrontado com sua possibilidade original de ser. A angústia faz com que o ente intramundano desapareça, assim como a existência de outros. “A angústia, portanto, priva o Dasein da possibilidade de compreender a si mesmo no modo de decadência com base no “mundo” ou com base na interpretação comum. Ela re-lança o Dasein em direção àquilo pelo qual ele se angustia, [ou seja,] seu autêntico poder-ser-no-mundo (SZ :187)”.
Na angústia, o Dasein experimenta o nada de seu ser; assim, percebe o valor total de sua existência e, ao mesmo tempo, compreende sua precariedade.
O fato de o Dasein ser essencialmente poder-ser tem, segundo Heidegger, um significado ontológico extremamente importante, que desenvolve da seguinte forma: “O Dasein sempre “superou” a si mesmo; não na medida em que adota um certo comportamento em relação a um ser que ele não é, mas na medida em que seu ser é determinado por seu poder-ser (SZ :192).” Esse é o caráter antecipativo do Dasein (SZ :191); o Dasein é essencialmente determinado pelo que ele pode devir. Desde o início, de certa forma, ele está em seu poder-ser e, assim, antecipa seu ser realizado. Ele não pode nem mesmo realizar seu ser sem a antecipação prévia de um poder-ser.
Encontramos esse caráter antecipativo do Dasein ao analisarmos a compreensão, que é essencialmente projeto. É porque o Dasein possui a estrutura ontológica da projeção que pode antecipar seu ser atual e, a princípio, nunca deixa de antecipá-lo efetivamente.
Toda atividade, todo ato de escolha é realizado com vistas a um certo poder-ser; de fato, nunca é meramente a realização de um poder-ser.
Esse caráter, que faz do Dasein um ser-antecipativo (Sichvorweg-sein), é naturalmente integrado à estrutura geral do Dasein como ser-no-mundo. O Dasein antecipa a si mesmo sendo em um mundo. Seu ser-antecipativo (o pro-jeto) constitui o que Heidegger chama de existir (Existieren), uma expressão que deve ser entendida no sentido de : “superar a si mesmo em direção ao seu poder-ser”. Mas o Dasein não pode ir além de si mesmo dessa maneira sem ser lançado em um mundo; a existência sempre pressupõe facticidade. “A existência sempre pressupõe a facticidade. A existencialidade é essencialmente determinada pela facticidade (SZ :192).
O Dasein que assim existe no mundo, onde é lançado, sempre se encontra perdido naquilo que se manifesta a ele e com o qual está preocupado. Heidegger expressa essa estrutura global do Dasein com a seguinte fórmula: “Sich-vorweg-schon-sein-in-der-Welt) als Sein-bei (innerweltlich begegnendem Seienden) (SZ :192)”. Dasein é o ser que, em si mesmo, além de si mesmo, já está em (um mundo) próximo a (um ente intramundano). Para designar essa estrutura do ser do Dasein, Heidegger usa o termo preocupação [Sorge], ao mesmo tempo em que ressalta expressamente que esse termo não deve ser entendido no sentido usual de “estar preocupado com”; apesar dessa precaução, ele tem sido frequentemente mal compreendido. Os intérpretes têm se esquecido com muita frequência de que “preocupação” aqui não designa um certo estado de espírito, mas a própria estrutura do ser do Dasein. A “preocupação”, no sentido heideggeriano, compreende a existencialidade (o fato de que o Dasein está sempre superando a si mesmo em direção ao seu poder-ser), a facticidade (ser-jogado, o fato de “ser-já-em”) e o ser-decaído (o fato de “ser-junto-a”). É a unidade desses elementos que Heidegger chama de preocupação.
É precisamente porque o ser do Dasein é preocupação (Sorge), que o comércio com entes intramundanos responde à ocupação (Be-sorgen) e a relação com os outros é solicitude (Für-sorge).
No que diz respeito à existencialidade, é importante deixar claro mais um ponto. No ser-antecipativo (Sich-vorweg-sein) “reside a condição existencial ontológica que torna possível a liberdade [do Dasein] para possibilidades existenciais autênticas (SZ :193)”. Ao ir além de si mesmo em direção às suas possibilidades, o Dasein se torna livre para elas. A existencialidade é a própria liberdade. Como a relação do Dasein com suas possibilidades é determinada pela liberdade, o homem também pode decidir por possibilidades não autênticas e, de acordo com Heidegger, está sempre sujeito, em suas decisões, à opinião do “impessoal” [das Man], e deve se livrar dela para se realizar autenticamente.
A preocupação, no sentido heideggeriano, não é o resultado dos diferentes comportamentos do Dasein em relação aos outros e aos entes; ela corresponde à unidade estrutural fundamental que torna possível antecipadamente (a priori) todos os comportamentos de fato, todas as situações concretas do Dasein. “Die Sorge liegt als ursprüngliche Strukturganzheit existenzial-apriorisch “vor” jeder, d.h. immer schon in jeder faktischen “Verhaltung” und Lage des Daseins (SZ :193).”
Heidegger nos adverte contra uma interpretação errônea que veria, nessa determinação do ser do Dasein como preocupação, uma tentativa de reduzir o Dasein à perspectiva de uma atividade prática; a preocupação, pela qual o Dasein supera a si mesmo em direção às suas possibilidades enquanto ser-jogado (em um mundo) com os entes (intramundanos), está tanto na base das atitudes teóricas quanto das atitudes práticas. “Teoria” e “prática” são possibilidades de existência de um ente, cujo ser deve ser determinado como preocupação (SZ :193).