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Arendt (LM): mundo de aparências

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

Há, em segundo lugar, a evidência igualmente impressionante da existência de um impulso inato — não menos coercitivo do que o mero instinto funcional da preservação — a que Portmann chama “impulso de autoexposição” (Selbstdarstellung). Tal instinto é inteiramente gratuito em termos de preservação da vida; ele supera em muito tudo o que se possa julgar necessário para efeito de atração sexual. Tais descobertas sugerem que a predominância da aparência externa implica, além da pura receptividade de nossos sentidos, uma atividade espontânea; tudo o que pode ver quer ser visto, tudo o que pode ouvir pede para ser ouvido, tudo o que pode tocar se apresenta para ser tocado. De fato, é como se tudo o que está vivo — para além do fato de que sua superfície é feita para aparecer, é própria para ser vista e destinada a aparecer para os outros — possuísse um impulso para aparecer, para adequar-se a um MUNDO DE APARÊNCIAS, apresentando e exibindo não seu “eu interno”, mas a si próprio como indivíduo. (O termo “autoexposição”, como o alemão, Selbstdarstellung, é equívoco: pode significar que eu ativamente faço minha presença sentida, vista e ouvida, ou que apresento meu eu [self], alguma coisa dentro de mim que de outra forma jamais apareceria — ou seja, na terminologia de Portmann, uma aparência “não autêntica”. Daqui em diante usaremos o termo na primeira acepção.) É precisamente essa autoexposição, tão realçada já nas formas superiores da vida animal, que atinge seu clímax na espécie humana. [Arendt  , Vida do Espírito I O Pensar 3]

Além do impulso de autoexposição, pelo qual as coisas vivas se acomodam a um MUNDO DE APARÊNCIAS, os homens também apresentam-se por feitos e palavras, e, assim, indicam como querem aparecer, o que, em sua opinião  , deve ser e não deve ser visto. Esse elemento de escolha deliberada sobre o que mostrar e o que ocultar parece ser especificamente humano. Até certo ponto podemos escolher como aparecer para os outros; e essa aparência não é de forma alguma a manifestação exterior de uma disposição interna; se fosse, todos nós provavelmente agiríamos e falaríamos do mesmo modo. Também aqui devemos a Aristóteles   as distinções cruciais. “O que é proferido”, diz ele, “são símbolos de afecções da alma, e o que é escrito são símbolos de palavras faladas. Como a escrita, também a fala não é a mesma para todos. Entretanto aquilo de que estas [a escrita e a fala] são símbolos, as afecções [pathé/mata] da alma, são as mesmas para todos.” Essas afecções são “naturalmente” expressas por “sons inarticulados [que] também revelam algo, como, por exemplo, o que é produzido pelos animais”. Distinção e individuação ocorrem no discurso, no uso de verbos e substantivos, e esses não são produtos ou “símbolos” da alma, mas do espírito: “Os substantivos e os verbos assemelham-se [eoiken] […] aos pensamentos [noémasin]” (grifos nossos) [De Interpretatione, 16a3-13]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]

De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e não autênticas, se poderia falar de semblâncias autênticas e não autênticas. Estas últimas, miragens como a de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeiras, ao contrário, e como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas “ilusões naturais e inevitáveis” de nosso aparelho sensorial, a que Kant   se referiu na introdução à dialética transcendental   da razão. Ele chamou a ilusão no juízo transcendente de “natural e inevitável” porque era “inseparável da razão humana e […] mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto, não deixará de lográ-la e de atraí-la continuamente para aberrações momentâneas que sempre pedem outras correções” [Critique of Pure Reason, B354-B355]. O argumento mais plausível, se não o mais forte, contra o positivismo simplista que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringe-se aos fatos observáveis, à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos, é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um MUNDO DE APARÊNCIAS do qual não podemos escapar. Todas as criaturas vivas capazes de perceber aparências por meio de seus órgãos sensoriais e de exibir-se como aparências estão sujeitas a ilusões autênticas que não são as mesmas para todas as espécies, mas encontram-se vinculadas à forma e à modalidade de seu processo vital específico. Os animais também são capazes de produzir semblâncias — um número significativo deles pode até mesmo simular uma aparência física —, e tanto homens quanto animais têm a habilidade inata para manipular as aparências com o propósito de iludir. Pôr a descoberto a “verdadeira” identidade de um animal por trás de sua cor adaptativa temporária não é muito diferente de desmascarar o hipócrita. Mas o que aparece então sob a superfície ilusória não é um eu interno, uma aparência autêntica, imutável e confiável em seu estar-aí. Pôr a descoberto destrói uma ilusão, mas não revela nada que apareça autenticamente. Um “eu interno”, se é que ele chega a existir, nunca aparece nem para o sentido externo, nem para o interno; pois nenhum dos dados internos dispõe de características estáveis, relativamente permanentes, que, sendo reconhecíveis e identificáveis, particularizam a aparência individual. “Nenhum eu fixo e durável pode apresentar-se nesse fluxo de aparências interiores”, observou Kant repetidas vezes [Ibidem, A107. Cf. também B413: “Na intuição interna não há nada permanente”, e B420: Nada de “permanente” é “dado […] na intuição” “enquanto penso a mim mesmo”.]. Na verdade é enganoso até mesmo falar de “aparências” interiores; tudo o que conhecemos são sensações cuja inexorável sucessão impede que qualquer uma delas assuma uma forma duradoura e identificável. (“Pois onde, quando e como houve alguma vez uma visão do interior? […] O ‘psiquismo’ é opaco para si mesmo.” [The Visible and the Invisible, pp. 18-19]) Emoções e “sensações internas” são “antimundanas”, pois carecem da principal característica mundana: “ficar imóvel e permanecer”, ao menos tempo suficiente para ser claramente percebidas — e não meramente sentidas —, intuídas, identificadas e reconhecidas; mais uma vez, de acordo com Kant, “o tempo, a única forma de intuição interna, não tem nada de permanente” [Critique of Pure Reason, A381]. Em outras palavras, quando Kant fala do tempo como a “forma da intuição interna”, ele fala, embora sem o saber, metaforicamente, e retira sua metáfora de nossas experiências espaciais relacionadas com aparências exteriores. É precisamente a ausência de forma e, portanto, de qualquer possibilidade de intuição, que caracteriza nossa experiência das sensações internas. Na experiência interna, a única coisa a que podemos nos prender para distinguir algo que se assemelhe à realidade dos humores incessantemente cambiantes de nossa psique é a repetição persistente. Em casos extremos, a repetição pode tornar-se tão persistente que resulta na permanência indestrutível de um único humor, uma única sensação; mas indica invariavelmente uma grave desordem psíquica, a euforia do maníaco ou a depressão do melancólico. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 5]

O conceito de aparência e, portanto, o de semblância (de Erscheinung   e de Schein) nunca desempenharam um papel tão central e decisivo quanto na obra de Kant. A noção kantiana de uma “coisa-em-si”, algo que é mas que não aparece embora produza aparências, pode ser explicada — como de fato o foi — nos termos de uma tradição teológica: Deus é “algo”; Ele “não é um nada”. Deus pode ser pensado, mas somente como o que não aparece, o que não é dado à nossa experiência e, portanto, como o que é “em si mesmo”; e como Ele não aparece, não é para nós. Essa interpretação tem suas dificuldades. Para Kant, Deus é uma “ideia de razão” e, como tal, para nós. Pensar Deus e especular sobre um além é, segundo Kant, inerente ao pensamento humano, uma vez que a razão, a capacidade especulativa do homem, transcende necessariamente as faculdades cognitivas de seu intelecto: somente o que aparece e, no modo do parece-me, é dado à experiência pode ser conhecido; mas os pensamentos também “são”, e algumas coisas-pensamento, a que Kant chama “ideias”, embora nunca dadas à experiência e portanto incognoscíveis, tais como Deus, a liberdade e a imortalidade, são para nós, no sentido enfático de que a razão não pode se impedir de pensá-las e que elas são de grande interesse   para os homens e para a vida do espírito. Talvez seja, pois, aconselhável examinar em que medida a noção de uma “coisa-em-si” que não aparece está dada na própria compreensão do mundo como um MUNDO DE APARÊNCIAS, independentemente das necessidades e dos pressupostos de um ser pensante e da vida do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

A realidade em um MUNDO DE APARÊNCIAS é antes de tudo caracterizada por “ficar imóvel e permanecer” o mesmo o tempo suficiente para tornar-se um objeto que pode ser conhecido e reconhecido por um sujeito. A descoberta básica e mais importante de Husserl   trata exaustivamente da intencionalidade de todos os atos de consciência, ou seja, do fato de que nenhum ato subjetivo pode prescindir de um objeto. Embora a árvore vista possa ser uma ilusão, para o ato de ver ela é um objeto. Da mesma forma, embora a paisagem sonhada seja visível apenas para o sonhador, ela é objeto de seu sonho. A objetividade é construída na própria subjetividade da consciência em virtude da intencionalidade. Ao contrário, e com a mesma justeza, pode-se falar da intencionalidade das aparências e da sua subjetividade embutida. Exatamente porque aparecem todos os objetos implicam um sujeito, e como todo ato subjetivo tem seu objeto intencional, também todo objeto que aparece tem seu sujeito intencional. Nas palavras de Portmann, toda aparência é uma “emissão para receptores” (uma Sendung für Empfangsapparate). O que quer que apareça visa a alguém que o perceba, um sujeito potencial não menos inerente em toda objetividade do que um objeto potencial é inerente à subjetividade de todo ato intencional. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

O fato de que as aparências sempre exigem espectadores e, por isso, sempre implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais tem consequências de longo alcance para o que nós — seres que aparecem em um MUNDO DE APARÊNCIAS — entendemos por realidade — tanto a nossa quanto a do mundo. Em ambos os casos, nossa “fé perceptiva” [The Visible and the Invisible, pp. 28ss] — como designou Merleau-Ponty   —, nossa certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de perceber, depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os outros e de que por eles é reconhecido. Sem esse reconhecimento tácito dos outros não seríamos capazes nem mesmo de ter fé no modo como aparecemos para nós mesmos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

Por um lado, a realidade do que percebo é garantida por seu contexto mundano, que inclui outros seres que percebem como eu; por outro lado, ela é percebida pelo trabalho conjunto de meus cinco sentidos. O que, desde Tomás de Aquino  , chamamos de senso comum, sensus communis  , é uma espécie de sexto sentido necessário para manter juntos meus cinco sentidos e para garantir que é o mesmo objeto que eu vejo, toco, provo, cheiro e ouço; é a “mesma faculdade [que] se estende a todos os objetos dos cinco sentidos” [Tomás de Aquino, Summa Theologica, parte I, questões I, 3 ad. 2]. Esse mesmo sentido, um “sexto sentido” misterioso [Parece que foi Gottsched o primeiro a falar em senso comum (sensus communis) como um “sexto sentido”. In Versuch   einer Kritischen Dichtkunst   für die Deutschen, 1730. Cf. Cícero, De Oratore, III, 50.], porque não pode ser localizado como um órgão corporal, vai adequar as sensações de meus cinco sentidos estritamente privados — tão privados que as sensações, em sua qualidade e intensidade meramente sensoriais, são incomunicáveis — a um mundo comum compartilhado pelos outros. A subjetividade do parece-me é remediada pelo fato de que o mesmo objeto também aparece para os outros, ainda que o seu modo de aparecer possa ser diferente. (É a intersubjetividade do mundo, muito mais do que a similaridade da aparência física, que convence os homens de que eles pertencem à mesma espécie. Ainda que cada objeto singular apareça numa perspectiva diferente para cada indivíduo, o contexto no qual aparece é o mesmo para toda a espécie. Nesse sentido, cada espécie animal vive em um mundo que lhe é próprio e cada indivíduo animal não precisa comparar suas próprias características físicas com as de seus semelhantes para conhecê-los como tais.) Em um MUNDO DE APARÊNCIAS, cheio de erros e semblâncias, a realidade é garantida por esta tríplice comunhão: os cinco sentidos, inteiramente distintos uns dos outros, têm em comum o mesmo objeto; membros da mesma espécie têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico; e todos os outros seres sensorialmente dotados, embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas, estão de acordo acerca de sua identidade. É dessa tríplice comunhão que surge a sensação de realidade. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

É tentador equiparar esse “sentido interno”, que não pode ser fisicamente localizado, com a faculdade do pensar; porque entre as principais características do pensamento, que se dá em um MUNDO DE APARÊNCIAS e é realizado por um ser que aparece, está a de que ele próprio é invisível. Partindo do fato de que essa invisibilidade é compartilhada pela faculdade de pensar e pelo senso comum, Peirce conclui que “a realidade tem uma relação com o pensamento humano”, ignorando que o pensamento não só é ele próprio invisível, mas também lida com invisíveis, com coisas que não estão presentes aos sentidos, embora possam ser — e frequentemente são — também objetos sensíveis, relembrados e reunidos no depósito da memória e, assim, preparados para reflexão posterior. Thomas Landon Thorson elabora a sugestão de Peirce e chega à conclusão de que “a realidade mantém uma relação com o processo do pensamento da mesma forma que o ambiente se relaciona com a evolução biológica” [Op. cit., loc. cit]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

A transformação da verdade em mera veracidade deriva primeiramente do fato de que o cientista permanece ligado ao senso comum através do qual nos orientamos em um MUNDO DE APARÊNCIAS. O pensamento retira-se — radicalmente e por sua própria conta — deste mundo e de sua natureza evidencial, ao passo que a ciência se beneficia de uma possível retirada em função de resultados específicos. Em outras palavras, nas teorias científicas, é o raciocínio do senso comum que, em última análise, se aventura no âmbito da pura especulação; e a principal fraqueza do senso comum nessa esfera sempre foi não possuir as salvaguardas inerentes ao mero pensamento, a saber: sua capacidade crítica que, como veremos, guarda em si uma forte tendência autodestrutiva. Mas, voltando ao pressuposto do progresso ilimitado, a falácia básica foi muito cedo descoberta. Sabe-se bem que não foi o progresso per se, mas a ideia de sua não-limitação, que teria tornado a ciência moderna inaceitável para os antigos. Mas é menos conhecido o fato de que os gregos tinham uma razão para seu “preconceito” contra o infinito. (Platão   descobriu que tudo o que admite um comparativo é, por sua natureza, ilimitado; e a ausência de limite era, para ele, como para os demais gregos, a causa de todos os males [Philebus, 25-26]. Daí sua grande confiança nos números e nas medidas: eles põem limite naquilo que por si — o prazer, por exemplo — “não contém e nunca conterá, e do qual não deriva e nunca derivará nem começo [arché], nem meio, nem fim [telos  ]”.) [Ibidem, 31a] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]

Uma vez que as atividades do espírito, por definição não-aparentes, ocorrem em um MUNDO DE APARÊNCIAS e em um ser que participa dessas aparências por meio de seus órgãos sensoriais receptivos, bem como de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros, elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências. Trata-se não tanto de uma retirada do mundo — somente o pensamento, por sua tendência a generalizar, isto é, por sua preocupação especial com o geral em contraposição ao particular, tende a retirar-se completamente do mundo —, mas de uma retirada do mundo que está presente para os sentidos. Todo ato espiritual repousa na faculdade do espírito de ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos. A re-presentação, o fazer presente o que está de fato ausente, é o dom singular do espírito. E uma vez que toda a nossa terminologia é baseada em metáforas retiradas da experiência da visão, esse dom é chamado de imaginação, definida por Kant como “a faculdade da intuição mesmo sem a presença do objeto” [“Anthropologie  ”, n° 28, Werke, vol. VI, p. 466]. A faculdade do espírito ter presente o que está ausente naturalmente não é restrita às imagens espirituais de objetos ausentes; a memória quase sempre armazena e mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais; e a vontade antecipa o que o futuro poderá trazer, mas que ainda não é. Somente pela capacidade do espírito tornar presente o que está ausente é que podemos dizer “não mais”, e constituir um passado para nós mesmos, ou dizer “ainda não”, e nos preparar para um futuro. Mas isso só é possível para o espírito depois de ele ter se retirado do presente e das urgências da vida cotidiana. Assim, para querer, o espírito deve se retirar da imediaticidade do desejo que, sem refletir e sem reflexividade, estende imediatamente a mão para pegar o objeto desejado; pois a vontade não se ocupa de objetos, mas de projetos, como, por exemplo, com a futura disponibilidade de um objeto que ela pode ou não desejar no presente. A vontade transforma o desejo em uma intenção. E, por último, o juízo, seja ele estético, legal ou moral  , pressupõe uma retirada decididamente “não-natural” e deliberada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos tal como são estabelecidos pela minha posição no mundo e pela parte que nele desempenho. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

Mencionei anteriormente que a linguagem, o único meio no qual o invisível pode tornar-se manifesto em um MUNDO DE APARÊNCIAS, não é assim tão adequada para exercer aquela função quanto os nossos sentidos são adequados à tarefa de lidar com o mundo perceptível. Sugeri que a metáfora pode, a seu modo, curar o defeito. A cura tem os seus perigos e jamais chega, tampouco, a ser completamente adequada. O perigo está na evidência esmagadora que a metáfora fornece, apelando para a evidência inquestionada da experiência sensível. As metáforas podem, portanto, ser usadas pela razão especulativa, que, na verdade, não as pode evitar; mas quando elas invadem o raciocínio científico, como é sua tendência, são usadas e “abusadas” para fornecer evidência plausível para teorias que, na realidade, são hipóteses a serem provadas ou refutadas pelos fatos. Hans Blumenberg, em seu Paradigemen zu einer Metaphorologie, investigou certas figuras de retórica bastante comuns, tais como a metáfora do iceberg, ou as diversas metáforas marinhas através de séculos de pensamento ocidental; e então, quase por acidente, descobriu em que medida as pseudociências tipicamente modernas devem sua razoabilidade à aparente evidência da metáfora, que substitui a falta de evidência dos dados. O melhor exemplo é a teoria da consciência da psicanálise, em que a consciência é vista como a ponta de um iceberg, uma simples indicação da massa flutuante de inconsciência que está submersa [Bonn, 1960, p. 200s]. Não só essa teoria jamais foi demonstrada, como é indemonstrável em seus próprios termos: no momento em que um fragmento de inconsciência alcança a ponta do iceberg, ele terá se tornado consciente e terá perdido todas as propriedades de sua alegada origem. Ainda assim, a evidência da metáfora do iceberg é tão esmagadora que a teoria dispensa argumentos ou demonstração; o uso da metáfora nos pareceria inquestionável se nos dissessem que estávamos lidando com especulações sobre algo desconhecido — do mesmo modo que os séculos anteriores usaram analogias nas especulações sobre Deus. O único problema é que cada uma dessas especulações traz em si um constructo espiritual em cuja ordem sistemática cada dado pode encontrar seu lugar hermenêutico, com uma consistência ainda mais rigorosa do que a fornecida por uma teoria científica bem-sucedida, uma vez que, sendo um constructo exclusivamente espiritual, sem necessidade de qualquer experiência real, não tem de lidar com as exceções à regra. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Píndaro  , no poema perdido sobre Zeus, deve ter esclarecido tanto o aspecto subjetivo como o objetivo dessas primeiras experiências de pensamento: se o homem e o mundo não receberem louvores, sua beleza não poderá ser reconhecida. Já que os homens aparecem em um MUNDO DE APARÊNCIAS, eles precisam de espectadores; os que comparecem como espectadores ao festival da vida são tomados por pensamentos de admiração, que são então postos em palavras. Sem espectadores, o mundo seria imperfeito. O participante absorvido em coisas específicas e pressionado por afazeres urgentes não pode ver como todas as coisas particulares do mundo e como todos os feitos particulares ajustam-se uns aos outros e produzem uma harmonia que não é, ela mesma, dada à percepção sensorial. Esse invisível no visível permaneceria para sempre oculto se não houvesse um espectador para cuidar dele, admirá-lo, endireitar as histórias e pô-las em palavras. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]

Tudo o que nos diz respeito existencialmente, enquanto vivemos em um MUNDO DE APARÊNCIAS, são as “impressões” por meio das quais somos afetados. Se aquilo que nos afeta existe ou é mera ilusão depende de nossa decisão de reconhecê-lo ou não como real. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

Se, quando percebo um objeto fora de mim, decido concentrar-me na minha percepção, no ato de ver, em vez de concentrar-me no objeto visto, é como se eu tivesse perdido o objeto original, porque ele perdeu seu impacto sobre mim. Eu mudei o tema, por assim dizer — em vez de lidar com a árvore, agora lido apenas com a árvore percebida, isto é, com o que Epiteto chama de “impressão”. A grande vantagem é que não estou mais absorvido pelo objeto percebido, algo externo a mim; a árvore percebida está dentro de mim, invisível ao mundo exterior, como se nunca tivesse sido um objeto dos sentidos. O que importa aqui é que a “árvore vista” não é uma coisa-pensamento, mas uma “impressão”. Ela não é algo ausente que precise de uma memória que a guarde para o processo dessensorializante que prepara os objetos do espírito para o pensamento, e que é sempre precedido pela experiência em um MUNDO DE APARÊNCIAS. A árvore vista está “dentro de mim” na sua total presença sensorial, ela é a própria árvore, apenas privada de realidade [realness], uma imagem, e não um re-pensar sobre árvores. O truque descoberto pela filosofia estoica foi usar o espírito de tal modo que a realidade não pudesse atingir o seu possuidor mesmo que ele não tivesse se retirado dela. Em vez de ter se retirado espiritualmente de tudo o que está presente e à mão, o espírito carregou para dentro de si as aparências. E sua “consciência” tornou-se um substituto completo para o mundo exterior, apresentado como impressão ou imagem. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

A parábola de Kafka sobre o tempo não se aplica ao homem em suas ocupações cotidianas, mas apenas ao ego   pensante, à medida que ele se retirou da rotina diária. A lacuna entre passado e futuro só se abre na reflexão, cujo tema é aquilo mesmo que está ausente — ou porque já desapareceu ou porque ainda não apareceu. A reflexão traz essas “regiões” ausentes à presença do espírito; dessa perspectiva, a atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo. É apenas porque “ele” pensa, e, portanto, deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em um MUNDO DE APARÊNCIAS, que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma que “ele” pode tomar consciência de um não-mais que o empurra para a frente e de um ainda-não que o empurra para trás. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]