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Zarader (2000:86-88) – o pensamento

quarta-feira 30 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

A segunda parte da aula O que chamamos pensar? [GA8  ] — que pode aqui ser considerada como texto de referência — segue um movimento de conjunto especialmente revelador. Desde a primeira aula, estamos confrontados com a «clivagem»: apresentando os múltiplos sentidos da sua interrogação, Heidegger distingue logo entre a determinação do pensamento que tem, desde sempre, força de lei («como é que aquilo que é aqui nomeado pensamento está circunscrito na doutrina tradicional do pensamento?» [1]) e a essência verdadeira («Quais as condições que têm de ser reunidas para que sejamos capazes de pensar conforme a essência (Wesensgerecht) […], para cumprirmos bem o pensamento?» [2].) No seguimento do curso, depressa irá aparecer que a doutrina tradicional desenvolve-se a partir do grego logos, visto como enunciado — o pensamento definindo-se então como lógica e julgamento. No que diz respeito à outra essência, exige que se abandone, pelo menos provisoriamente, a derivação anterior (do logos ao enunciado, do enunciado ao princípio da não contradição e outras regras lógicas), a favor de uma outra língua de sentido que tem a sua origem, já não na língua grega, mas na língua [86] alemã (a velha palavra Gedanc) — o pensamento definindo-se então enquanto memória, recolha e reconhecimento.

Uma vez desdobrada esta clivagem, resta mais uma vez, compreender o «salto» que leva a definição dominante do pensamento à sua essência até aqui escondida. Segundo uma primeira aparência, poderia parecer que os dois termos da clivagem estejam aqui representados por duas línguas distintas, e que bastaria, por conseguinte, passar de uma língua para outra. Não é aqui o caso. Porque a essência impensável à qual Heidegger, nas primeiras lições dessa aula (lição 1 a 4), consegue através de uma meditação do alemão, revela-se finalmente ser a mesma que se abrigava no dizer original do logos (lições 5 a 11). Logos original que, nos textos de Heráclito   e de Parménides, tinha então de facto não o sentido do logos-enunciado (lições «medianas» 4 e 5), mas sim o sentido do alemão Gedanc.

Assim encontramos os nossos dois caminhos: para dar o salto que sai da doutrina tradicional, em direcção à essência impensável, abrem-se-nos duas vias, aparentemente diferentes e que no entanto no seu termo, juntam-se até à coincidência. Por um lado, a meditação do logos original, tal como ressoa ainda nos fragmentos pré-socráticos, a meditação que nos ensina a essência do pensamento experimentado na alvorada da linguagem. Por outro, uma escuta da língua alemã, apoiando-se nas palavras directoras Gedanc, Denken ou Gemüt. No entanto, essa escuta só está orientada na língua porque no seu início é uma atenção concedida à «própria coisa», tal como se apresenta — e só se apresenta, só vem à «presença» (como o ensinou a meditação da linguagem) apenas na sua palavra.

Vimos simultaneamente, a diferença e a proximidade entre os caminhos tomados para pensar na linguagem e aqueles cujas aulas Was heisst Denken? [GA8  ] estabelecem o plano. Diferença porque a essência impensável é procurada e alcançada, no segundo caso através da interrogação da única língua alemã — que só intervinha no primeiro caso, a título de acessório (quando por exemplo, Heidegger, para enunciar a essência da designação interrogava o verbo heissen [3]). No entanto, proximidade porque através desta mediação, aquilo que ainda está em questão, é o próprio desenvolver da coisa. Mas que a própria coisa (a do pensamento) só pudesse vir na sua palavra, eis aquilo que apenas a meditação prévia da linguagem podia tornar audível.

Portanto são dois caminhos, um que tem origem no passado mais longínquo, o outro que é susceptível de abrir-se a cada instante, [87] se soubermos deixar desenvolver aquilo em que somos apanhados. Dois caminhos, que no fim dizem a mesma coisa — e que no fundo, segundo as premissas de Heidegger não saberiam dizer outra coisa. Isso porque, a própria coisa estava sempre abrigada nas palavras inaugurais, as palavras inaugurais nunca dizem nada mais do que a própria coisa (por mais que as deixamos falar). Se então os dois caminhos se juntam sempre, isso é tanto em virtude do seu próprio plano do que do quadro mais geral onde estamos apanhados, e que prescreve logo a sua reunião final.

De facto, tudo se passa como se Heidegger, empenhado desde a viragem, num pensamento que se esforça para romper com as categorias da presença (e que de facto, se afasta delas, afirmando que o ser dispensa-se enigmaticamente como retirada), não conseguisse ir até ao fim dessa ruptura. O ser é certamente visto como retirando-se essencialmente, ou seja como estando esquecido, mas é necessário (ao que parece pensar Heidegger) que nem sempre foi esquecido; é necessário que tenha, pelo menos, por um instante, revelado como a retirada que é, e que então, o acto decisivo através do qual se subtrai tenha de facto ocorrido; é necessário, resumindo, que nem que fosse num tempo «relâmpago» e no único registo da «experiência», que tenha ocorrido a verdade do ser.


Ver online : MARLÈNE ZARADER


ZARADER, Marlène. A Dívida Impensada. Heidegger e a Herança Hebraica. Lisboa: Instituto Piaget, 2000


[1GA8:WhD, p. 79 (Qu’appelle-t-on…, 127).

[2Ibid., p. 79 (128).

[3Ibid., pp. 81-83 (131-134).