Vou limitar-me a sublinhar três pontos que me parecem ser os mais significativos.
1) O primeiro é a especificidade desta essência original em relação a todas as concepções da linguagem que nos são familiares. Tudo se passa como se Heidegger, regressava neste ponto, aquém de uma das conquistas mais decisivas do pensamento ocidental: a teoria do significado, que pensa simultaneamente na separação e no laço entre a palavra enquanto signo e aquilo que significa. Teoria verdadeiramente inaugural na medida em que, rompendo com a [58] indiferença primitiva e o mundo mágico que daí podia decorrer, cumpre pela primeira vez a partilha entre a ordem das coisas e a ordem das palavras. Ora, é precisamente a isto que Heidegger voltará, propondo uma outra aproximação do nome.
Nomear a coisa, é «fazê-la vir», «chamá-la a apresentar-se» [1]. Será que isso quer dizer que antes de ser assim chamada, não estava presente? A bem dizer, não podia estar; visto que não tinha entrado em presença, reunida naquilo que é — resumindo, não era, revelada, soltada do seu abrigo.
Seguindo a aproximação heideggeriana , não há então, primeiro o sendo, depois da linguagem que viría paralelamente juntar-se, para o designar e torná-lo comunicável. Há linguagem, e só a linguagem permite ao sendo, tornar-se ser. Isso quer dizer, que a linguagem não é um sector ou uma área do sendo: é a condição do aparecimento do estando, a abertura pela qual este pode surgir, erigir-se na presença. Na e através da linguagem, o estando torna-se o seu ser: a linguagem feita ser [2].
2) Mas se a linguagem torna assim possível a «instauração do ser» [3], o que é que torna possível a própria linguagem e lhe permite estender-se enquanto linguagem? É aqui que intervém, a dupla noção de escuta e de diálogo. Noção que teremos demasiada tendência para interpretar num registo horizontal, como se só se tratasse do desdobramento necessário da palavra dentro de uma troca inter-humana. Ora Heidegger diz muito mais. Não é uma certa palavra, é a própria linguagem que só pode desenvolver a sua essência na condição de já estar à escuta: escuta de um apelo — que não é da ordem da linguagem, e que no entanto, é o único a poder tornar possível — o apelo do ser. Dizer, tal como o faz Heidegger, que para falar é preciso ouvir primeiro, isso não significa só que, tenho que ouvir uma outra palavra, nem sequer que toda a palavra para se desenvolver tenha de estar à escuta da linguagem, mas é sobretudo e mais fundamentalmente, que a própria linguagem consagra-se a receber aquilo que pede para se abrir nela; só se desenvolve na sua essência se for dócil àquilo que reivindica. E aquilo que reivindica desta forma, é o ser — ou ainda mais precisamente, «a própria voz do ser, ressoando através toda a linguagem» [4]. [59]
A noção de diálogo apresenta a mesma dualidade de registo. Para que haja comunidade de linguagem, no diálogo, no sentido comum (inter-humano, horizontal), é preciso que «escutemos, em conjunto, uma única e mesma voz» [5]. E quando os falantes se juntam em torno desta voz que o diálogo se instala. Isso quer dizer, que mesmo antes do entendimento das palavras, e como fundamento das mesmas, convém ter em conta o entendimento vertical, entendimento ao qual se refere qualquer palavra. Daí a insistência de Heidegger, sobre o facto que toda a linguagem encontra-se num diálogo e pressupõe-o como sua condição: «O diálogo é não uma forma de utilização da língua. E a língua que tem a sua origem na conversação» [GA52 :157]; ou ainda: «a linguagem ocorre no diálogo, e é esta aventura (Geschehen) que constitui propriamente o seu ser (Seyn).» [GA39 :69-70] Porquê insistir neste ponto? E para indicar que a linguagem, que como já o vimos, permitia a instauração do ser, não cria no entanto o ser; pelo contrário, pressupõe-o.
Será um círculo? E mais um movimento de mediação. E precisamente esse movimento que constitui a essência da linguagem. Até aqui apresentei separadamente os dois aspectos: por um lado, o facto da linguagem tornar possível a abertura do ser, por outro, o facto daquilo que torna possível a própria linguagem, é já um certo apelo do ser ao qual a linguagem, desdobrando-se, responde. Mas esses dois aspectos não se podem dissociar um do outro. A linguagem permite a instauração do ser, sem que o ser seja, no entanto, redutível à única ordem da linguagem. E mesmo para isso que essa ordem é definida — tem necessariamente de ser definida — como escuta, acolhimento, compilação, etc… Desta forma, completa-se e elucida-se a conclusão anterior: não existe certamente ser sem linguagem, mas não havería linguagem, se este não fosse revelador do ser. A linguagem faz ser, mas só na medida em que permite ao ser de vir. Ou seja, a linguagem, deixa ser [6].
Ela ocupa também uma função eminente de mediadora. E é precisamente pela linguagem ser mediação que só se cumpre na poesia.
3) A poesia, sendo o local onde a linguagem permanece conforme a sua essência [7], o poeta pode ser definido como aquele que deixa esta essência desdobrar-se. Mas, visto que a linguagem já é em [60] si mediação, porque encontra a sua essência nessa unidade indissociável de uma recepção e de uma doação, de um acolhimento e de uma instauração, o poeta irá encarnar essa mediação, irá cumpri-la. E a razão pela qual, aparece na problemática heideggeriana como o mediador por excelência, o Mensageiro [8].
O terceiro ponto significativo diz respeito ao estatuto e à missão do poeta. Relembramos rapidamente as principais características [9]. O poeta é aquele que faz a recolha dos signos vindos dos deuses, para, por seu turno, fazer sinal ao povo; não inventa nada, recebe e transmite. Tendo recolhido com «as suas próprias mãos», o «raio do pai» (que não poderia brilhar fora da abertura do ser), partilha-o com «os filhos da terra»; mas só o entrega depois de o ter apaziguado; o que significa que o mesmo resta exposto à violência do raio. Porta-voz, mensageiro, receptor de sinais, mediador entre os deuses e os homens, submetido ao horror da relação directa com os deuses e fazedor de paz do terrível para os homens: tantos traços do poeta, supremo responsável da linguagem, ou seja, guardião e velador do ser — e talvez até, tal como por vezes o afirma Heidegger, o seu próprio «salvador» [GA54 :188].