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A Obra de Arte Literária.

Ingarden (1965) – Prefácio da segunda edição

quarta-feira 23 de março de 2022

Apesar de as minhas investigações terem por tema principal a obra literária, e sobretudo a obra de arte literária, os motivos que, em última análise, me levaram a tratar este tema são de natureza filosófica geral e transcendem amplamente este assunto regional. Estão intimamente relacionados com o problema Idealismo-Realismo, que desde há anos me preocupa.

Passaram-se mais de trinta anos sobre a redação deste livro. Entretanto, o mundo sofreu muitas modificações. Se hoje me resolvo a publicar de novo este livro, move-me não só a circunstância de ele se encontrar esgotado desde há muitos anos, sendo até rara a possibilidade da sua consulta nas bibliotecas, mas também o fato de continuar ainda atual, apesar das enormes transformações que se operaram na atmosfera cultural, e de até nos últimos anos ser alvo de maior consideração do que na altura da sua primeira aparição. Nesse ano de 1930 foi um empreendimento arriscado tentar uma ontologia da obra de arte literária e discutir problemas não só puramente estruturais como ontológico-existenciais, tratando então a obra literária à luz do problema Idealismo-Realismo. Foi precisamente sob este aspecto que a situação se modificou profundamente nos passados 30 anos. Neste lapso de tempo, tais problemas ou outros que lhes são análogos foram abordados de diversos ângulos e sob vários aspectos, e muitas vezes tratados num espírito muito afim do meu. O interesse   por semelhantes problemas aumentou visivelmente não só na Alemanha como ainda noutros países, Se isto se deve à influência do meu livro ou se aconteceu completamente à margem dele, não tem importância de maior. Despertou entretanto a consciência de que os problemas ontológicos referentes à obra de arte literária não são de modo algum assuntos relativamente isolados da ciência da literatura, mas estão, pelo contrário, intimamente relacionados com as várias questões fundamentais da filosofia: o problema é, pois, formulado no sentido que se ajusta à intenção do presente livro. Deste modo, não ficará a obra isolada no mundo científico como nos inícios da sua existência.

Ao mesmo tempo, quer parecer-me que as suas análises e perspectivas, no que toca a problemas ulteriores, ainda não foram de maneira alguma exploradas em medida satisfatória posição é intermediária entre as duas posições antagônicas. Para evitar a extensão desnecessária do meu livro já volumoso, e ainda para ajudar o leitor a assumir uma atitude pura em relação ao objeto da investigação, desisti de uma vinculação expressa às teorias existentes. Tal vinculação tem normalmente por consequência a remissão do leitor para esquemas conceptuais preexistentes, o que essencialmente dificulta a visão pura das situações de fato presentes.

Apesar de as minhas investigações terem por tema principal a obra literária, e sobretudo a obra de arte literária, os motivos que, em última análise, me levaram a tratar este tema são de natureza filosófica geral e transcendem amplamente este assunto regional. Estão intimamente relacionados com o problema Idealismo-Realismo, que desde há anos me preocupa. Como tentei demonstrar nas minhas Observações acerca do problema Idealismo-Realismo (Cf. Festschrift für E. Husserl  , pp. 159-190), o conflito entre o «Realismo» e o «Idealismo» abrange vários grupos de problemas muito intrincados que é necessário distinguir e tratar isoladamente antes de se abordar o problema principal metafísico. Em consequência disso, há várias vias que nos preparam o acesso a este problema principal. Uma delas está relacionada com a tentativa do chamado Idealismo Transcendental   de E. Husserl em conceber o mundo real e os seus elementos como objetividades puramente intencionais, que têm o seu fundamento ontológico e a sua razão determinante nas profundidades da pura consciência constitutiva. Para se tomar posição perante esta teoria, elaborada por E. Husserl com extrema subtileza e através da exposição de situações reais sumamente importantes e de difícil captação, é, entre outras coisas, necessário pôr em relevo a estrutura essencial e o modo de ser do objeto puramente intencional, para em seguida examinarmos se as objetividades reais, pela sua própria essência, podem ter essa mesma estrutura e esse mesmo modo de ser. Com este escopo, procurei um objeto cuja intencionalidade pura fosse indubitável e em que pudéssemos estudar as estruturas essenciais e o modo de ser do objeto puramente intencional sem nos submetermos às sugestões resultantes da consideração das objetividades reais. Foi assim que a obra literária se me afigurou ser um objeto de investigação particularmente adequado a este fim. Ao ocupar-me dela mais de perto rasgaram-se-me os problemas específicos da ciência da literatura, e o livro presente é o resultado do seu estudo relacionado com as tendências fundamentais que acabo de indicar. Porque me deixei guiar na redação deste livro por motivos tão diversos, diferentes situações reais foram mais rigorosamente tratadas do que seria indispensável num livro que se limitasse a estudar apenas os fundamentos filosóficos de uma teoria da obra literária. Por outro lado, foi precisamente a multiplicidade das produções pertencentes à estruturação da obra literária que me levou a uma série de considerações, indispensáveis para este problema especial e ao mesmo tempo importantes para várias disciplinas filosóficas. Assim, as investigações do 5.° capítulo são uma contribuição para a Lógica e a sua nova orientação; as considerações sobre as relações objetivas e as objetividades apresentadas na obra literária procuram desenvolver alguns problemas ontológico-formais, as investigações sobre o modo de ser dos objetos apresentados têm importância para a Ontologia existencial geral. Para não prejudicar a unidade do livro, evitei discutir as consequências muito importantes que derivam dos resultados desta investigação, tanto para o problema Idealismo-Realismo, como ainda no que respeita a outros problemas filosóficos. O presente livro foi escrito durante uma licença concedida para a realização de estudos, nos meses de Inverno de 1927/28. A preparação de outras publicações inadiáveis e as condições muito difíceis do meu trabalho arrastaram, por mais dois anos inteiros, a redação definitiva do texto a imprimir, verificando-se correspondente atraso na publicação do livro. A consequência disto foi a de muitos resultados dos meus estudos terem entretanto sido publicados noutras obras. É este o caso de muitas observações do 5.° capítulo deste livro e da Formale und transzendentale Logik  , de Husserl. A afinidade entre algumas das minhas análises e as afirmações do meu venerado mestre causou-me particular satisfação durante a leitura da sua obra recente. Ao mesmo tempo, a comparação dos dois textos revelou que, ao lado de pontos de contato, existem também grandes divergências, e porventura naqueles pontos que para mim são os mais importantes. Assim, foi-me impossível referir esta sua obra apenas pelo acréscimo posterior de uma série de citações. Deixei, pois, imprimir o texto do meu livro sem o modificar e quero indicar aqui apenas os pontos de afinidade e de divergência, esperando poder um dia dedicar uma publicação especial à nova obra tão significativa do meu venerado mestre.

As minhas afirmações concordam com as de Husserl em Formale und transzendentale Logik ao conceberem os significados das palavras, as frases e as unidades superiores de sentido como realizações que resultam das operações subjetivas da consciência. Portanto, não são objetividades ideais no sentido definido pelo próprio Husserl nas suas Logischen Untersuchungen. Enquanto Husserl conserva o termo ideal   na maior parte da sua Lógica, acrescentando só, por vezes, em parêntese a palavra irreal, eu renuncio por completo a esta nomenclatura, procurando opor, nitidamente, aquelas realizações às objetividades ideais no sentido rigoroso. Nisto revela-se a primeira divergência objetiva. Husserl considera atualmente como produtos intencionais de gênero especial todas as objetividades outrora consideradas como ideais no sentido antigo, chegando, assim, a uma ampliação universal do Idealismo Transcendental, enquanto eu continuo a insistir na rigorosa idealidade de várias objetividades ideais (dos conceitos ideais, dos objetos individuais ideais, das ideias e das essencialidades) e vejo até nos conceitos ideais um fundamento ôntico das significações das palavras que lhes torna possível a sua identidade intersubjetiva e o seu modo-de-ser ontologicamente heterônomo. Ao mesmo tempo, a nova concepção dos produtos lógicos resulta em Husserl sobretudo das investigações fenomenológicas e dos motivos idealista-transcendentais universais, enquanto as minhas considerações seguem a orientação ontológica, procurando demonstrar nos próprios produtos lógicos uma série de circunstâncias que impossibilitam o seu ser ideal no sentido rigoroso e, ao mesmo tempo, indicam como sua origem ôntica as operações subjetivas. Só depois tento acrescentar alguns esboços fenomenológicos correspondentes. Abstenho-me, no meu livro, de todo o juízo a respeito da posição idealista-transcendental e, em particular, da concepção idealista do mundo real. O meu livro contém uma série de resultados isolados que, no caso de serem verdadeiros, serão contrários a esta concepção. ’Isto diz respeito, p. ex., à singular estrutura dupla das objetividades puramente intencionais, às indeterminações que aparecem nos seus conteúdos e à sua heteronomia ontológica.

Quanto a pormenores sobre a aludida afinidade com a Lógica de Husserl, bastará salientar as seguintes observações como afins das correspondentes de Husserl: 1.°, a concepção das operações subjetivas elaboradoras das frases e a distinção entre a pura proposição e o juízo; 2°, a distinção entre o conteúdo material e formal   da significação nominal da palavra e o confronto da plenitude de significação de uma palavra isolada com os momentos sintácticos próprios da sua significação na frase; 3.°, a análise da constituição de uma objetividade puramente intencional numa multiplicidade de períodos. Finalmente, acontece por vezes que onde Husserl se limita a aludir só de passagem a uma afirmação ou a um problema, porque no contexto respectivo não os pode aprofundar, eu, para os fins que tenho em vista, ofereço análises pormenorizadas. Refere-se isto, p. ex., à minha consideração do modo de ser das objetividades apresentadas na obra literária, enquanto Husserl só duas vezes observa que «também as ficções têm o seu modo de ser» (l. c, pp. 149 e 226). Na página 230 da sua obra, Husserl põe o «problema delicado» da possibilidade de «a subjetividade em si mesma criar, unicamente a partir das origens da sua espontaneidade, produtos susceptíveis de passar por objetos ideais de um "mundo" ideal. E mais (como problema de outra ordem) o do modo detestas idealidades poderem receber existência vinculada ao espaço e tempo no mundo da cultura exigido como real enquanto encerrado no universo espaço-temporal  , existência essa na forma da temporalidade histórica, como é o caso das teorias e ciências». Estes «problemas delicados», em particular o segundo, constituíram outrora o ponto de partida da minha reflexão sobre a obra literária. O resultado foi a exclusão destas realizações não só do âmbito das idealidades no sentido rigoroso, mas também do mundo real. Se consegui ou não justificar este resultado, o leitor deste livro poderá julgar por si mesmo.

Todas estas observações permitem ao leitor orientar-se com facilidade nas relações que existem entre o meu livro e a Formale und Transzendentale Logik de Husserl. Embora eu tenha de referir alguns pontos de divergência em relação às opiniões do meu venerado mestre, não esqueço quanto lhe devo. Hoje, depois de doze anos de trabalho pessoal, sei, melhor do que nunca, quanto Edmund Husserl, com as suas profundas intuições e o domínio de horizontes ilimitados, a todos nos supera. Se conseguirmos descobrir algo que a Husserl passou despercebido, devemo-lo, sobretudo, às grandes facilidades que o seu trabalho incansável de investigador nos proporcionou.

Por fim, não queria deixar de exprimir os meus melhores e mais calorosos agradecimentos a todos aqueles que me auxiliaram na preparação do presente livro. Foram, sobretudo, os Professores Julius Kleiner e Zygmunt Lempicki, que me ajudaram com os seus conselhos preciosos e crítica. Alguns capítulos discuti-os com o Dr. W. Auerbach (que também me ajudou na revisão das provas tipográficas) e com a Dr.a M. Kokoszynska e fico-lhes muito grato por muitas observações acertadas. A Dr.a Edith Stein   teve a amabilidade de se encarregar do grande trabalho da correção linguística do texto, prestando-me, assim, um precioso serviço de amizade.

Os meus especiais agradecimentos vão para Max Niemeyer, que, apesar da crise geral, resolveu publicar o meu livro na sua Casa Editora, empenhando-se em lhe dar a melhor apresentação possível.

Lemberg, Outubro de 1930.


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