Como vimos, o que levou Heidegger, em meados dos anos 20, a tematizar o método da filosofia foi a pergunta pelo sentido do histórico. Ele assume uma posição no conflito entre a experiência da vida fática e o histórico, isto é, rejeita o “caminho platônico” em que o histórico é simplesmente abandonado, ou seja, de que a auto-afirmação da ideia é feita à custa do abandono da própria história; rejeita igualmente a via da completa auto-entrega ao histórico, como o faz Spengler , e afasta-se também da alternativa de Dilthey , Simmel e Rickert de combinar esses dois caminhos [GA60 :38s]. O histórico será então considerado com base na experiência da vida fática do ser-aí. Ora, o sentido geral (allgemeine Sinn) do histórico envolve o problema da formalização e da generalização. Como se pode compreender a vida fática sem desviar-se totalmente dela? Trata-se então de tematizar o modo de explicá-la. Aparentemente instaura-se aí uma dificuldade metodológica que, na sequência de Husserl , se prolongará até SZ , em que a ordem metodológica da análise da estrutura ontológico-existencial precederá a biologia, a psicologia, a teodiceia, a antropologia, etc. Com isso, porém, ela paga um preço não apenas por afastar-se dessas disciplinas, mas também por distanciar-se da vida fática. Daí por que, do ponto de vista ôntico, seus resultados mostram o caráter formal e vazio de toda caracterização ontológica (Formalität und Leere aller ontologishen Charakteristik) [1]. Mas até que ponto uma “ontologia” não é uma teoria? A resposta de Heidegger é que a ontologia existencial antecipa-se a toda teoria, o que não quer dizer que caia no irracionalismo. No entanto, a dívida para com o método da fenomenologia não pode ser saldada facilmente. Essa é a dificuldade filosófica que o jovem Heidegger procurou resolver, como já estamos mostrando. A questão é que o que se explica continua presente na sua explicação, pois o sentido da indicação formal é mostrar o fenômeno a ser considerado. Essa conjunção entre o explicar e o explicado se encontra na definição: “o emprego metódico [332] de um sentido, que é dirigido pela explicação fenomenológica, chamamos de indício formal (formale Anzeige)” [2]. Essa confluência, porém, é destacada por Heidegger, desviando-se da busca dos fundamentos de uma teoria rigorosa; ao contrário, devem-se compreender essas considerações metodológicas sem levar para dentro desse problema nenhum tipo de opinião preconceituosa. O esclarecimento do sentido desse conceito se deve a que se corre o risco de colocar apenas em termos de uma consideração moderada (einstellungsmässige Betrachtung) ou então cair de modo absoluto em confinamentos regionais (regionale Eingrenzungen). A dificuldade presente aqui será enfrentada tematizando-se um caso concreto: o sentido do histórico. Ora, esse sentido já se encontra na vida fática. E importante entender que Heidegger apanha — já nessa época (1921) — a vida fática na singularidade do si-mesmo (Selbst). O problema metodológico dos indícios formais é enfrentado partindo dessa singularidade-solipsista-existencial. Heidegger, porém, procura escapar dos enganos da filosofia da consciência. Em suas lições ele busca alternativas à filosofia a que ele próprio esteve associado. Ora, tal como ele o recepciona, o sentido do histórico é tematizado em relação à consciência, pois o processo histórico se assemelha ao processo temporal da consciência. Habitualmente se entende o histórico como um processo temporal do que passou. A própria experiência da vida fática é entendida como um processo que se dá no tempo, como uma ocorrência temporal na consciência. Para Heidegger, porém, o sentido do histórico concebido como processo mental termina por ser tão genérico que perde precisamente seus vínculos com a experiência da vida fática. Nessa posição a experiência da vida fática torna-se apenas uma delimitada região da efetividade do histórico (das Historische), que, como tal, é um processo ilimitado. A posição de Heidegger aproxima-se da de Kierkegaard a respeito de Hegel , isto é, tenta resgatar o singular diante da universalidade indiferente das leis da história. Essa posição já se encontrava no seu texto sobre Duns Scotus , em que destacava a singularidade do aqui-agora, a “istidade” (haecceitas) [3].
A lei do processo histórico é, então, nas palavras de Heidegger, uma generalidade esvaziada de vida fática. O sentido genérico do histórico, porém, torna-se problemático à medida que se pergunta se esse modo de generalidade pode ser um princípio filosófico. Heidegger levanta, assim, duas questões:
1. Como pode esse sentido geral do histórico tornar-se acessível enquanto princípio filosófico?
2. Se essa pretensão (Anspruch) não é legítima e se o sentido, apesar disso, é um sentido geral e deve ser considerado na explicação, em que medida constitui ele um juízo apressado (präjudizierte), ainda que, como não originário, deve, contudo, ser o guia de uma consideração originária? [GA60 :56]
Esse caráter de maior generalidade (Allgemeinste) do histórico faz com que qualquer outro sentido também seja determinado, dele se originando. Mas se isso é assim, então toda generalização e formalização também o seriam. E o que restaria, pois, para a filosofia? Qual seria seu objeto? Ou seja, a filosofia, ao afastar-se do modelo explicativo, não teria mais nada com que se ocupar. Heidegger, porém, não abre mão de que se pode tratar filosoficamente da vida fática; mas se isso envolve modos de expressão que podem ser compreendidos por todos, então não se pode pura e simplesmente abandonar a generalização e a formalização. Como dar conta dessa dificuldade.5 Parece que continuamos aí num beco sem saída. Ora, essa dificuldade está em que durante séculos a filosofia colocou a generalidade no setor dos objetos (Gegenstandseite). A generalidade foi considerada como o objeto característico da filosofia. Aristóteles afirma: o ente se diz de vários modos (Met. G 2 1003 a 33). A ontologia objetivista de Aristóteles determina, segundo Heidegger, a filosofia até os dias de hoje. Ela define o modo como ainda fazemos filosofia. E, apesar do sentido do histórico ter sido alterado por Hegel à medida que introduziu a noção de verdade histórica, ainda assim a generalidade desse sentido é considerada desde o setor dos objetos. Ou seja, também o sentido genérico do histórico pode ser situado dentro da totalidade de todos os entes delimitados num domínio determinado. E essa delimitação tem sido a tarefa da filosofia (ontologia geral e ontologias regionais). À filosofia pertence então a tarefa de classificar a totalidade dos entes em suas diferentes regiões que serão repartidas por ciências diferentes. Essa posição atravessa a moderna filosofia da consciência até Husserl , inclusive. O filósofo representativo dessa posição foi Kant , para quem os objetos são constituídos segundo o modo da consciência, isto é, eles são montados na consciência e constituem o resultado do jogo entre a imaginação produtiva e as regras do entendimento. Para Heidegger, no entanto, foi a fenomenologia quem efetivamente conseguiu tratar mais concretamente dos objetos. Nesse caso, ela tem um mérito e um defeito, pois, do lado ontológico, essa filosofia tratou da constituição dos entes; do lado da consciência, ela teve de dar conta da constituição originária da própria consciência. O problema é que ela tratou também objetivamente da consciência, pois: “toda objetividade (Gegenständlich) está sob a forma dessa constituição” [GA60 :57]. O problema é [335] saber se a fenomenologia, ao recorrer ao ego transcendental, não persiste numa generalidade esvaziada de conteúdo fático. A fenomenologia, como vimos, reúne as duas posições antitéticas. E os indícios formais surgem dessa ambiguidade.