O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato de manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicando no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões — desde as mais primitivas às mais elaboradas — é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofonia — por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore — e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” — de uma realidade que não pertence ao nosso mundo — em objetos que fazem parte integralmente do nosso mundo “natural”, “profano”. [1]
A passagem acima assinala uma série de elementos primordiais da caracterização eliadeana do fenômeno do sagrado. Toda ela gira em torno do conceito de hierofania, que, pelo que parece, é um neologismo criado pelo próprio Eliade. Se a hierofania diz respeito ao fato de que “algo de sagrado se nos revela”, isto mostra que o envio do sagrado não é posicionado por qualquer tipo de subjetividade autônoma. Antes, o campo onde o sagrado aparece é enviado “intencionalmente” por ele mesmo. Isso mostra a influência da fenomenologia na obra de Eliade. No entanto, suas considerações iniciais não se reduzem à ideia de que o campo de manifestação do sagrado se desencobre por si só. Eliade fala-nos sobretudo de uma certa descontinuidade no momento mesmo da experiência da hierofania. Ele encerra “a manifestação de algo de ordem diferente”,” ou seja, o acontecimento do sagrado na existência humana é acompanhado de uma certa descontinuidade. A vigência da chamada ordem “natural” ou “profana” dá lugar a uma nova ordem instaurada pelo sagrado. Isso pode se manifestar tanto em uma pedra quanto na ideia cristã de encarnação divina. Consequentemente, a hierofania descerra um campo significativo singular, que não se coaduna com o campo correlato da experiência profana. Por isso, os entes profanos do cotidiano se renovam, mesmo que continuem de algum modo sendo o que são.
Há um paradoxo que se manifesta inicialmente na compreensão da hierofania: “manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente.” Em outras palavras, o sagrado é uma modulação do profano. Ele não destrói o ente profano, mas o ressignifica. Nesse sentido, para aquele que experimenta o sagrado, uma simples pedra, cujo caráter é “natural” e efêmero no cotidiano, manifesta uma “realidade sobrenatural”. Esse paradoxo é interpretado a partir da apropriação da ideia de ganz andere presente na obra de Otto. Na hierofania, um ente “natural” deixa vir a lume o “sobrenatural”, sem deixar de ser o que ele é. O sagrado é, nesse caso, o ganz andere que se manifesta no ente natural, ou seja, o sagrado é o totalmente outro revelado no ente natural conhecido no cotidiano. Ora, esse paradoxo revela uma experiência ontológica suis generis. Para o homem religioso, a transfiguração do natural na hierofania não é o mascaramento do que o ente efetivamente é. Antes disso, o ente profano não é dotado de plenitude ontológica; ele é um menos-ser se comparado com o ente sagrado. Por isso, Eliade afirma que o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à “realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser”. Conclusão: “Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudorreal”. Isso equivale a dizer que toda hierofania é uma ontofania. Quando o sagrado se manifesta, irrompe uma nova densidade de ser nos entes em geral. Por isso, o homem religioso experimenta uma plenitude ontológica mais elevada que o homem profano. Aliás, pode-se mesmo dizer que só há plenitude ontológica mais elevada para o homem religioso, pois, ante a sua experiência de mundo, toda experiência possui certa precariedade ontológica. O mundo profano sempre assinala, portanto, um tipo de déficit ontológico. O paradoxo, portanto, da hierofania, que diz que em toda hierofania o sobrenatural irrompe no natural sem destruir objetivamente suas propriedades (a pedra, por exemplo, não se transforma em Deus), pode ser traduzido ontologicamente do seguinte modo: na hierofania, um ente mundano ganha densidade ontológica, sem perder as propriedades objetivas que cotidianamente apreendemos nele. Isso mostra que em toda hierofania há um acréscimo de plenitude ou poder de ser, o que explica a carência ontológica que se dá na experiência profana dos entes. Dessas informações, advém a questão: como se caracteriza ontologicamente o mundo, quando transfigurado pela hierofania? Uma resposta adequada a essa questão pode ser encontrada ria relação entre espacialidade e hierofania, descrita por Eliade no primeiro capítulo (“O espaço sagrado e a sacralização do mundo”) de O sagrado e o profano.
Para o homo-religiosus, o espaço possui heterogeneidade, ou seja, o espaço não é um conceito matemático destituído de diferenciações qualitativas, que une pontos diferenciados que ocupam posições distintas em um mesmo plano. Para o religioso, “há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras.” Como diz Deus no episódio da sarça ardente para Moisés: “Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa” (Ex 3,5). A diferença qualitativa dos espaços sagrados, se comparados com os profanos, relaciona-se diretamente com o caráter ontofânico da hierofania. Na hierofania, o espaço sagrado é denso, forte ou significativo; já os espaços não sagrados não possuem consistência, são “amorfos”, pois são informes, destituídos de diferenciação qualitativa. Por isso, o espaço real é sempre sagrado. Dessa diferença qualitativa, fundada em uma diferença ontológica, surge o caráter cosmogônico de toda hierofania. A gênese do espaço sagrado funda o mundo (kosmos). O espaço homogêneo e amorfo que circunda o homem dá lugar ao mundo ordenado, que manifesta a irrupção da densidade ontológica na totalidade do espaço em que a existência se desdobra. As coordenadas do real são fundadas pela hierofania. Por isso, Eliade diz que na hierofania surge um centro para o real articular-se. Este centro é um ponto fixo absoluto em torno do qual a existência humana se realiza. Nas suas palavras:
E preciso dizer, desde já, que a experiência religiosa da não-homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial, que corresponde a uma “fundação do mundo”. Não se trata de uma especulação teórica, mas de uma experiência religiosa primária, que precede toda a reflexão sobre o mundo. E a rotura operada no espaço que permite a constituição do mundo, porque é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo central de toda a orientação futura. Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não só há rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e finita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo absoluto, um “centro”.
A hierofania é a gênese do absoluto para a existência. O caráter absoluto do sagrado relaciona-se diretamente com a existência humana. Por isso, a hierofania é um fenômeno existencial. O centro do mundo é o “ponto absoluto” estruturador da existência. O mundo fundado pela hierofania não é, portanto, o conjunto ou o somatório dos entes que circundam geograficamente o homem. O mundo é sempre o espaço existencial estruturado em que o homem atualiza seus comportamentos. Assim, o “espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso”. Mais: o homem religioso necessita da cosmogonia advinda da hierofania. Por quê? Por causa da aformidade da experiência profana do real. Sem diferenças qualitativas — como no espaço geométrico —, o espaço profano não possui um ponto absoluto norteador da existência humana. Trata-se, portanto, de um espaço dotado de homogeneidade e relatividade. Consequentemente, “não é possível nenhuma verdadeira orientação, porque o ‘ponto fixo’ já não goza de um estatuto ontológico único; aparece e desaparece segundo as necessidades diárias.” Espaço fragmentado e desestruturado, o real profanizado não possui mundo. Essa desmundanização assinala claramente o caráter caótico da experiência profana dos entes. É justamente contra o caos que age a cosmogonia provinda da hierofania, razão pela qual o homem religioso opõe-se à profanização do real. […]
[…] na hierofania, o sagrado emerge como princípio ordenador do real, subsumindo o caos pelo cosmos. Toda hierofania se dá como acontecimento de ordenação dos entes. A partir dela um mundo se estrutura. Por isso, pode-se dizer que toda hierofania tem como correlata uma cosmogonia (mundificação do real). Ao mesmo tempo, essa cosmogonia funda um eixo fixo norteador da pluralidade de comportamentos existenciais do ser humano. Ao destronar o caos, a hierofania fornece densidade ontológica para o real, consequentemente, para a existência humana. Essa densidade pode ser perenizada à medida que o homem sempiternamente a recupere ao longo de sua existência. A possibilidade de recuperar a cada vez a densidade ontológica da existência apresenta o tempo como circular, pois, para o homem religioso, o tempo é reversível, uma vez que ele se determina recuperando a ontofania presente no mito da criação divina do cosmos. Sabendo que tudo isso se dá apenas no horizonte da existência do homo religiosus, pode-se afirmar que a hierofania não é um dado objetivo real. Ela se dá como correlato de um tipo de existência específico, a saber, o tipo religioso. Exatamente a partir desse horizonte compreensivo emerge a metafísica cristã e a objetivação discursiva da hierofania. Nela o sagrado aparece objetivamente. Por isso, pode-se reconhecer nela a cristalização conceitual do horizonte hermenêutico em que se move o homo religiosus.