O aforismo acima reproduzido contém os elementos necessários para uma compreensão provisória e funcional do significado da morte de Deus, atendendo aos objetivos e limites impostos por esta introdução. Ele narra uma história fictícia na qual se confrontam um personagem chamado de “homem desvairado” e um grupo de homens localizado em uma praça. O anúncio da morte de Deus não é efetuado por qualquer tipo de prova racional acerca da sua inexistência. Não se trata de um gesto tradicional do ateísmo filosófico moderno, que opõe ao deísmo ou teísmo argumentos que não só invalidam suas provas da existência de Deus, como negam a viabilidade dessas provas, e sobretudo rejeitam a existência mesma do ente que elas procuram demonstrar. A situação do insensato é peculiar: ele somente registra um acontecimento. “Deus morreu!” Morreu por causa de um ato deicida cometido por todos os personagens da narrativa, inclusive pelo próprio homem desvairado. A gravidade do ato apreendido pela perspectiva do desvairado contrasta com a ridicularização dessa problemática realizada pelos personagens da praça. O que está em jogo para o insensato é a dissolução do mar, do horizonte e o afastamento de todo tipo de sol. A força imagética dessas metáforas está na caracterização do que se entende por Deus na expressão “morte de Deus”, sem que se lance mão de qualquer via argumentativa conceitual. Ao considerar Deus como sol, mar e horizonte, o desvairado o concebe como princípio de definição do campo de realização existencial do homem. Sua normatividade teria, portanto, se esvaído, o que gerou a consequente sensação de perda dos esteios asseguradores da solidez da existência humana. Mas, por que o termo Deus aparece aí como responsável pelo asseguramento do solo sustentador da existência humana?
Segundo Nietzsche , Deus é o termo que concentra em si uma diversidade de conceitos metafísicos tradicionais. Por exemplo: “todos os conceitos mais elevados, o ser, o incondicional, o Bem, o verdadeiro, o perfeito” são abarcados pelo “conceito estupendo de ‘Deus’”. [1] Trata-se de Deus enquanto conceito metafísico sintetizador de todos os demais conceitos da tradição responsáveis por caracterizar a estrutura metaempírica do mundo. Assim, Deus assegura ao devir uma estrutura que fornece sentido a uma pluralidade de elementos aparentemente caóticos. No entanto, sobretudo por causa do pensamento medieval cristão, o conceito de Deus não somente representa o princípio estruturador do devir no plano teorético, mas aparece também como princípio determinador das diversas ações humanas. Em outras palavras, o conceito de Deus aparece também como sentido existencial para as ações e, assim, justifica o devir teórica e praticamente. Com o acontecimento histórico da morte de Deus, o homem ocidental viu-se abandonado por uma estrutura sólida de caráter metafísico-existencial. Por isso, experimentou a niilização de suas ações e possibilidades de pensamento. Se Deus concentra em si o princípio metafísico e o sentido último da existência, então, isso equivale a dizer que ele mesmo era o signo conceitual para se pensar o absoluto, como aquela instância “em si” estruturadora e normatizadora de ações e pensamentos. A morte de Deus assinala, então, a dissolução do acesso ao absoluto ou ao “em si”. O devir não mais possui fundamento em um plano ontológico não deveniente e as ações não mais encontram respaldo em um sentido último e absoluto. A consequência dessa experiência é justamente o niilismo. Considerando a definição anterior do niilismo como perda dos princípios vinculativos da tradição, este só se torna patente por causa da dissolução do acesso ao absoluto. A crise dos princípios vinculativos é consequência direta da crise do acesso ao “em si”. Como disse Nietzsche em um fragmento póstumo datado entre novembro de 1887 e março de 1888: “extirpamos de nós as categorias de ‘fim’, ‘unidade’, ‘ser’, com as quais incutimos um valor no mundo — e, então, o mundo aparece como sem valor”. [2]] Conclusão: o niilismo aparece primeiramente como ausência de verdades absolutas. Desta relação entre morte de Deus e advento do niilismo emergem as perguntas do homem desvairado acerca do nada infinito em que nos encontramos, do vácuo que experimentamos e da perda dos referenciais “em cima” e “embaixo”.
Se considerarmos somente desse modo a relação entre a morte de Deus e o niilismo, então, encontraremos primordialmente o princípio legitimador da assunção da ideia negativa de niilismo enquanto supressão dos princípios vinculativos da tradição, uma vez que estes sempre estiveram assentados no plano suprassensível do qual Deus é o signo linguístico-conceitual por antonomásia. Assim, estaríamos aparentemente referendando as posturas nostálgicas e remoralizadoras hodiernas perante o niilismo. No entanto, o acontecimento da morte de Deus, que nada mais é do que um imperativo histórico de nosso tempo, permite a abertura de um novo campo hermenêutico que se diferencia do pensamento metafísico, por não se desdobrar com vistas ao em si. Isso porque a morte de Deus deflagra, dentre outras coisas que ainda devem ser tematizadas ao longo da investigação, a inviabilidade da perpetuação das metanarrativas ocidentais, o que produz o descerramento de um horizonte interpretativo não mais marcado pelo gesto metafísico de busca por fundamentos últimos ou absolutos dos entes e do mundo. [3] O que aqui está sendo chamado de metanarrativa confunde-se com o tipo de discurso inerente à tradição metafísica, que se caracteriza por formular conceitos dotados de universalidade que deem conta da descrição das propriedades ontológicas hipostasiadas dos entes em geral. Para Nietzsche , as mencionadas categorias de fim, unidade e ser, dentre outras, remetem diretamente à sua compreensão da ideia metafísica de Deus. À medida que o niilismo surge primeiramente da morte de Deus, ele corrompe as categorias metafísicas em geral, já que estas convergiam para a própria ideia de Deus. Consequentemente, o colapso da metafísica e a dissolução das metanarrativas não desvalorizam o mundo, pois a consequência extrema do niilismo é permitir a compreensão de que o mundo desvalorizado é um mundo interpretado. Como ainda será visto em seus pormenores, com a morte de Deus, a interpretação metafísica do mundo não é mais a interpretação do mundo, ela aparece como mais uma interpretação possível do mundo. A crise das metanarrativas, consequência da morte de Deus, suprime consigo as razões para se desvalorizar o mundo. Isso equivale a dizer que a morte de Deus, enquanto supressão do “em si” e das metanarrativas que o acessavam, transforma o niilismo em veículo de novas possibilidades de interpretação do mundo. [4]
A assunção da morte de Deus posiciona o niilismo positivamente. Ainda que aqui o niilismo esteja sendo tematizado de modo encurtado, o que importa é que ele não se manifesta somente de modo “apocalíptico”, mas também como índice de rearticulação hermenêutica do modo como entendemos o mundo. Como a morte de Deus deflagra a impossibilidade de perpetuação das metanarrativas da tradição, o novo modo de interpretação do mundo possui característica sui generis. Se as metanarrativas sempre se caracterizaram por acessar o “em si” hipostasiado dos entes, com sua dissolução, diversos aspectos do pensamento ocidental tornaram-se inviáveis. Dentre eles, provar a existência ou inexistência de Deus tornou-se impossível, pois o pressuposto desta prova é a ideia de que a razão acessa objetivamente o real e, a partir deste acesso, consente ou não com a ideia de Deus. Considerando a objetividade como característica daquilo que o ente é independentemente de sua relação com o sujeito cognoscente, a problemática da existência de Deus é suprimida com a dissolução das metanarrativas. Ora, se isso abala os fundamentos do teísmo, deísmo, ateísmo, abre simultaneamente a possibilidade de reinscrever nos átrios da filosofia o problema da hierofania, isto é, da manifestação do sagrado. Não se trata de problematizar o sagrado à luz da ideia de mistério, que, no sentido tradicional entendido como o que foge do poder de compreensão da razão, ainda pensa o sagrado à luz da objetividade do “em si”, sendo este agora inapreensível pela razão. Como disse Nietzsche , a partir da assunção prévia da morte de Deus: “As aplicações místicas são consideradas profundas; em verdade, elas não chegam a ser superficiais”. [5] A mística, portanto, o meio de acesso ao mistério, não pode ter lugar a partir da morte de Deus. Ela referenda, ainda que negativamente, a ideia de “em si” ou de fundamento último. O discurso hierofânico, por sua vez, é viável. No entanto, ele se vê desafiado a perfazer-se sem perpetuar os múltiplos elementos pertencentes às metanarrativas metafísicas.