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GA80 (1995:34-42) – Possibilidade de uma Filosofia da Informática

segunda-feira 18 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

Ainda que a interpretação de Wilhelm von Humboldt   acerca da língua como visão do mundo [Weltansicht] constitua uma contribuição frutuosa, deixa no entanto indeterminado o que é próprio da língua, o próprio falar [Sprechen. Por razões que renunciamos expor aqui, Wilhelm von Humboldt   fica-se pela definição da língua como expressão [Ausdruck], a saber, de um interior — a alma — por um exterior — a voz e a escrita.

Mas falar é essencialmente dizer [Sagen]. Quem quer que seja pode falar sem cessar e a sua palavra não dizer nada. Um silêncio, pelo contrário, pode dizer muita coisa. Mas o que significa «dizer»? Sabê-lo-emos se prestarmos atenção ao termo. Sagan [1] significa mostrar. E que significa mostrar [zeigen]? Significa fazer ver e entender qualquer coisa, levar uma coisa a aparecer [Erscheinen]. O não dito é o ainda não mostrado, o ainda não chegado ao aparecer. Mas graças ao [35] dizer, o ente-presente ascende à aparência (i.e., ao aparecer): está presente e como; e no dizer vem também à aparência o ausente como tal. Todavia, o homem não pode verdadeiramente dizer, isto é, mostrar e fazer aparecer senão aquilo que se mostra a ele de si próprio, que aquilo que de si próprio aparece se manifesta e se dirige a ele.

Mas o dizer como mostrar pode igualmente ser concebido e efectuado de tal maneira que mostrar significa somente: dar sinais. O sinal [Zeichen] torna-se então uma mensagem [Meldung] e uma instrução [Nachricht] acerca de uma coisa que, em si mesma, não se mostra. Um som que retine, uma luz que brilha, não são, tomados em si próprios, sinais. Não são produzidos e impostos como sinais senão para que aquilo que devem significar à vez seja antecipadamente admitido, seja dito. Pensemos nos sinais em morse, que são limitados ao ponto e ao traço e nos quais o número e a ordem são associados às sonoridades da língua falada. O sinal particular, de cada vez, não pode ter senão uma de duas formas, ponto ou traço. A série dos sinais é neste caso reconduzida a uma série de decisões sim-não. As máquinas são coagidas à produção de tais séries: estas, graças aos fluxos de corrente e aos impulsos eléctricos, seguem este modelo abstracto de produção de sinais e fornecem as mensagens correspondentes. Para que uma tal espécie de informação se torne possível cada sinal deve ser definido de maneira unívoca; da mesma maneira cada conjunto de sinais deve significar de maneira unívoca um enunciado determinado. O único carácter da língua que permanece na informação é a forma abstracta da escrita, que é transcrita nas fórmulas de uma álgebra lógica. A univocidade dos sinais e das fórmulas,’que é necessariamente exigida por isto, assegura a possibilidade de uma comunicação certa e rápida.

É sobre os princípios tecno-calculadores desta transformação da língua — como dizer em língua como mensagem e como simples produção de sinais — que repousam a construção e a eficácia dos computadores gigantes. O ponto decisivo para a nossa reflexão atém-se a isto: são as possibilidades técnicas da máquina que prescrevem como é que a língua pode e deve ainda ser língua. O gênero (Art) e o estilo da língua determinam-se a partir das possibilidades técnicas de produção formal de sinais, produção que consiste em executar uma série contínua de decisões sim-não com a maior rapidez possível. A [37] natureza dos programas que podem servir de entradas para o computador, entradas com as quais podemos, como se diz, alimentá-lo, regula-se sobre o tipo de funcionamento da máquina. O modo da língua é determinado pela técnica. Mas o contrário não é verdadeiro? O modelo da máquina não se regula sobre os objectivos linguageiros, como, por exemplo, os da tradução? Mas mesmo neste caso os objectivos da linguagem são, antecipadamente e por princípio, ligados à máquina, que exige sempre a univocidade dos sinais e da sua sucessão. É por isso que um poema, por princípio, não pode ser programado.

Com a dominação absoluta da técnica moderna cresce o poder — tanto a exigência como a eficácia — da língua técnica adaptada para cobrir a latitude de informações mais vasta possível. É porque se desenvolve em sistemas de mensagens e de sinalizações formais que a língua técnica é a agressão mais violenta e mais perigosa contra o carácter próprio da língua, o dizer como mostrar e fazer aparecer o presente e o ausente, a realidade no sentido mais lato.

Mas porquanto a relação do homem, tanto quanto ao ente que o rodeia e o sustenta como ao ente que é ele próprio, repousa sobre o [38] fazer aparecer, sobre o dizer falado e não falado, a agressão da língua técnica sobre o carácter próprio da língua é ao mesmo tempo uma ameaça contra a essência mais própria do homem.

Se, avançando no sentido da dominação da técnica que determina tudo, temos a informação pela forma mais alta da língua por causa da sua univocidade, da sua segurança e da sua rapidez na comunicação de informação e de directivas, então o resultado é a concepção correspondente do ser-homem e de vida humana. Assim lemos em Norbert Wiener  , um dos fundadores da cibernética, disciplina avançada da técnica moderna: «Ver o mundo inteiro e dar ordens ao mundo inteiro é quase a mesma coisa que estar em todo o lado» (Homem e máquina humana [2], 95). E noutro lugar: «Viver activamente significa viver com a informação apropriada» (op. cit., p. 114).

No horizonte de representação da língua, seguindo a teoria da informação, interpreta-se igualmente de maneira técnica uma actividade como a de aprender. Assim escreve Norbert Wiener  : «Aprender é fundamentalmente uma forma de retroacção [Rückkopplung] pela qual o modelo de comportamento é modificado pela experiência que precede» (op. cit., p. 63). «A retroacção… é um carácter absolutamente universal das formas de comportamento» (ibid.). «A retroacção é a condução de um sistema pela reintrodução no próprio sistema dos resultados do trabalho cumprido» (op. cit., p. 65).

Uma máquina executa o processo técnico de retroacção, definido como circuito de regulação, assim como — senão de maneira tecnicamente mais reflectida — o sistema de mensagens da língua humana. É por isso que a última etapa, se não for a primeira, de todas as teorias técnicas, é explicar «que a língua não é uma capacidade reservada ao homem, mas uma capacidade que partilha até um certo grau com as máquinas que desenvolveu» (Wiener  , op. cit., p. 78). Uma tal proposição é possível se se admite que o próprio da língua está reduzido, isto é, limitado à produção de sinais, ao envio de mensagens.

No entanto, também a teoria da informação [Informationstheorie] vai, necessariamente, de encontro a um limite. Porque «cada tentativa de tomar unívoca uma parte da língua (pela sua formalização num sistema de sinais) pressupõe o uso da língua natural, mesmo não sendo ela unívoca» (C. Fr. von Weizsäcker, A língua como informação [3]). A língua «natural», quer dizer, a língua que não foi por princípio inventada e imposta pela técnica, é sempre conservada e permanece, por assim dizer, como pano-de-fundo de toda a transformação técnica.

Aquilo que é aqui nomeado por língua «natural» — a língua corrente não tecnicizada —, nós denominámo-la no título da conferência por língua da tradição (überlieferte Sprache). Tradição não é uma pura e simples outorga, mas a preservação do inicial, a salvaguarda de novas possibilidades da língua já falada. É esta que encerra o informulado e o transforma em dádiva. A tradição da língua é transmitida pela própria língua, e de tal maneira que exige do homem que, a partir da língua conservada, diga de novo o mundo e por aí chegue ao aparecer do ainda-não-apercebido. Ora eis aqui a missão dos poetas.

O título desta conferência, «Língua da tradição e língua técnica» [Überlieferte Sprache und
technische Sprache], não designa, pois, apenas oposição. Atrás do título da conferência esconde-se a alusão a um perigo a crescer constantemente e que ameaça o homem no mais íntimo da sua essência — a saber, na sua relação com a totalidade daquilo que foi, do que vai vir e que presentemente é. O que num primeiro momento se apresenta somente como uma diferença de dois gêneros de língua, afirma-se como um acontecimento que domina o homem e que não toca e não abala mais nada do que a relação do homem com o mundo. É um desmoronamento do mundo do qual o homem nota, contristado, os sobressaltos, porque é continuamente coberto pelas últimas informações.

Também imporia examinar se face às forças da época industrial o ensinamento da língua materna não se toma outra coisa senão a simples transmissão de uma cultura geral por oposição à formação profissional. Era preciso considerar se este ensinamento da língua não mereceria ser, mais do que uma formação, uma meditação sobre o perigo que ameaça a língua, quer dizer, a relação do homem com a língua. Ora uma tal meditação revelaria ao mesmo tempo a dimensão [42] salvadora que se abriga no segredo da língua, na medida em que é ela que sempre nos conduz de um só golpe à proximidade do inefável e do inexprimível.


Ver online : Vorträge [GA80]


O texto abaixo é para nós a inspiração para a reflexão sobre uma possível Filosofia da Informática. Encontra-se em um manuscrito de Heidegger de 1962 [4].

Heidegger, Martin. Língua de Tradição e Língua Técnica. Tr. (do francês) Mário Botas. Lisboa: Vega, 1995


[1Sagan: como em Unterwegs zur Sprach, 252, Heidegger recorreu à ortografia arcaica para sublinhar aquilo que, segundo ele, é o sentido primeiro de Sagen, dizer como mostrar.

[2Norbert Wiener, Sprache und Dichtung, Francfort: Kösel-Verlag 1952.

[3Carl Friedrich von Weizsäcker, Sprach als Information, in: Die Sprache, quinto lançamento da publicação anual Gestalt und Gedanke, Munich: Verlag R. Oldenburg 1959, p. 70.

[4Este texto reproduz um manuscrito até agora inédito — depositado no Deutsches Literaturarchiv de Marbach — da conferência que Martin Heidegger proferiu em 18 de Julho de 1962 quando de uma sessão para os professores das escolas profissionais, na Academia de Estado para a Formação Contínua, em Combourg (Schwäbich Hall). A conferência foi feita por incitação e graças à intercedência do filho de Martin Heidegger, Jörg Heidegger, que ensinava então como engenheiro diplomado numa escola profissional.