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Barabas (2016) – angústia e sentimento

segunda-feira 7 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Em primeiro lugar, como já enfatizamos, a angústia tem um nome, uma vez que ela atinge o nada como nada sendo apenas por meio de uma certa relação, reconhecidamente singular e negativa, com os entes. A angústia é, portanto, ainda um afeto, enquanto o sentimento não tem outro nome além de si mesmo, é um sentimento de nada determinado. É a própria abertura não mediada para o indeterminado que é o mundo. Em sua disponibilidade constitutiva, o sentimento me projeta na frente e na profundidade do mundo: portanto, não tem mais determinação do que essa profundidade tem; está tão distante do afeto quanto o mundo, em sua plenitude dinâmica, está do ser. Tendo lembrado isso, devemos acrescentar imediatamente que o próprio conteúdo do sentimento, o que é experimentado nele, deve ser distinguido da angústia em vários aspectos, a fim de aparecer, de certa forma, como seu exato oposto. Como já dissemos, a angústia é a prova de um abalo e deslize do mundo, por meio do qual aparece o nada do ser que é o mundo. Portanto, ela tem uma dimensão opressiva e repulsiva: tudo em que eu estava fluidamente imerso se torna estranho, até mesmo hostil ou estrangeiro, e é por isso que a angústia também é uma provação de certa solidão. Não há nada parecido com isso no sentimento, pois, como vimos, ele é, ao contrário, uma forma de se exceder sem se perder. No sentimento nada acontece aos entes, às realidades percebidas, permanecem sendo o que são, mas, de repente, elas passam ao segundo plano em benefício de uma dimensão que emerge dentro dele, que não é outra senão o poder do mundo. Desse modo, o sentimento atravessa, por assim dizer, dos entes para o seu fundamento, que é propriamente o que se alcança nele; o sujeito experimenta, em sua própria passividade, um alcance maior do que o dos entes, que são subitamente como que deixados de lado. Notemos de passagem, e esta é outra diferença notável, que o sentimento pode surgir por ocasião do encontro com certos entes, em particular a obra de arte, que certos entes podem, portanto, favorecer sua própria travessia, o que obviamente não é o caso da angústia que, como tal, não pode ser provocada por nada. Assim, ao contrário da angústia, que comporta uma dimensão de clausura, na medida em que sou, por assim dizer, conduzido a mim mesmo, o sentimento é abertura e participação; não é a provação da opressão, mas a de uma expansão existencial. É verdade que a angústia tem um escopo noético, no sentido de que abre o mundo além do ser, mas é a favor de um ser afetado em que estou como que encurralado em mim mesmo e fechado em mim mesmo — e, portanto, é correto que Heidegger fale aqui de afeto. Em suma, a dimensão afetiva não coincide totalmente com a dimensão noética. De certa forma, na angústia, não saio de mim mesmo: apenas experimento um certo desaparecimento das coisas, ou melhor, sou trazido de volta a mim mesmo a tal ponto que as coisas desaparecem e, assim, testemunho o nascimento do nada. E, a rigor, não pode ser de outra forma, pois não há nada para conhecer além do próprio nada. É por isso que, na angústia, não há êxtase ou participação como tal, e é por essa razão, como já observamos, que com essa teoria da angústia não escapamos de um certo subjetivismo. Esse não é o caso do sentimento, que é inteiramente noese, que nos dá conhecimento de um outro que não nós mesmos, que é muito mais do que nós mesmos. O mergulho em si mesmo que ele implica significa a escavação de uma profundidade ou vazio — razão pela qual nada é experimentado ali, nada o afeta — e está, portanto, inteiramente a serviço da dádiva do mundo, a pura disponibilidade que convém à sua profusão.

Segue-se que, em relação à angústia, todos os sinais são invertidos. Enquanto a angústia é o acesso ao nada, ao nada de ser que é o mundo, o sentimento é o acesso à plenitude e, da mesma forma, à sua própria finitude. Assim, se, no sentimento, há de fato a conquista de um ser próximo a si mesmo e uma forma de ipseidação, é na forma de um teste de sua própria finitude, um teste possibilitado pelo acesso a essa plenitude, a esse superpoder que é o mundo. É, portanto, a partir da profusão de seu outro que o sujeito se percebe como finito, e é por isso que, como em Heidegger, a ipseidação não é sinônimo de solipsismo. É claro que se pode argumentar que, no sentimento, como na angústia, o sujeito transcende a positividade dos entes em direção a um nada de ente. Mas as negações aqui têm significados opostos. Enquanto o mundo não é nada de ente por padrão em Heidegger, ele o é, por assim dizer, por excesso em nossa perspectiva: o mundo não é nada de ente porque é infinitamente mais do que os entes, precisamente o superpoder que os dispõe incessantemente. Como a angústia de Heidegger, o sentimento é o acesso ao aparição como tal, mas é a aparição primária como a autofenomenalização do mundo. Enquanto a angústia nadifica os entes para acceder a este nada de ente, que, ao mesmo tempo, não é nenhum outro senão o ente, a que correspondem o mundo, em seguida o ser, o sentimento, ao contrário, supera os entes, os faz recuar a uma forma de insignificância em favor do arqui-movimento do mundo, de sua profusão, vis-a-vis dos quais eles se dão como nada. Ou melhor, prefigurando o trabalho da poesia, ela borra suas fronteiras, dissolve-as ou limita-as, como diz Dufrenne  , a fim de revelar sua própria carga mundana e, da mesma forma, seus eixos de comunicação com outros entes. Em suma, para Heidegger, a nadificação do ente produzida pela angústia significa um colapso no nada, enquanto que, de nossa perspectiva, significa apenas uma finitude ou uma limitação em relação à positividade e à riqueza do mundo que esse sentimento inicia. Na verdade, como já dissemos, o único nada pensável para nós se refere ao arqui-acontecimento, ou seja, àquilo que separa o mundo de si mesmo e dá origem ao sujeito; nesse aspecto, ele nem mesmo tem a positividade secreta que o nada heideggeriano ainda possui. Consequentemente e por fim, enquanto a angústia heideggeriana   é o acesso ao nada além da positividade dos estados, de nossa perspectiva, o sentimento é o acesso à positividade do mundo além da finitude dos estados; o sentimento evoca o nada em vez de revelá-lo, uma vez que nos permite atravessar o abismo do arqui-acontecimento e projetar o sujeito além de si mesmo, por assim dizer. A angústia abre o nada, enquanto o sentimento o atravessa em favor de uma positividade superior, que obviamente é apenas sugerida.

Daí uma dimensão do sentimento, já mencionada, que está completamente ausente da angústia, ou seja, a exaltação, a alegria, uma certa aceleração existencial. A razão disso é que, no sentimento (particularmente no amor ou na estética: não podemos especificar o sentimento, mas podemos apontar para campos privilegiados de manifestação), há um vislumbre da possibilidade de superar a finitude e, portanto, de entrar na própria fonte do mundo, de coincidir, pelo menos parcialmente, com seu superpoder. De repente, sinto-me conectado a uma fonte diferente de mim, deixando de estar preso a mim mesmo e expandindo-me para as dimensões do próprio mundo. Ou então, uma energia que eu nem sabia que era possível me invade, e é como se eu estivesse passando para o lado da arqui-vida em minha própria finitude como ser vivo. É claro que se pode objetar que, como nós mesmos observamos, essa abertura de longo alcance não vem sem um profundo abalo, uma espécie de perda de pontos de apoio, uma depressão existencial semelhante à angústia. A condição para essa abertura para o mundo é que eu tenha de abrir mão de um certo fundamento, de tudo o que coloriu minhas relações com o mundo e que, portanto, eu tenha de ser, por assim dizer, desafeto. O acesso à profundidade do mundo pressupõe que uma certa profundidade também seja aberta em mim, o que não se refere a uma camada positiva final, mas significa uma forma de despojamento e, portanto, uma certa vulnerabilidade. Portanto, podemos estar inclinados a equiparar esse momento em si, que é o momento de arqui-passividade que essa abertura de longo alcance exige, com angústia. Mas essa assimilação seria superficial, pois diz respeito apenas aos efeitos, às repercussões dessa experiência no mundo. Mesmo nesse nível, ainda teríamos de identificar diferenças, porque, no sentimento, as coisas não se tornam tão instáveis quanto indiferentes, se não invisíveis. Mas mesmo que uma certa deserção do mundo seja aparente em ambos os casos, o fato é que a provação como tal não é a mesma em nenhum dos lados. A experiência da angústia é opressiva; não há luz, não há horizonte: é a provação de um tipo de contração ou estreitamento existencial. Em contraste, a experiência de flexão existencial que está no cerne do sentimento, por mais “devastadora” que seja, em e por meio de seu próprio vazio, abre um horizonte, promete algo além de si mesma e envolve um tipo de alegria incipiente. O vazio no qual o sujeito é engolfado não é o puro nada, pois também é pleno, pois anuncia a plenitude do mundo. Isso também significa que, enquanto o efeito da angústia é ao mesmo tempo o de uma interrupção ou imobilização do tempo, o sentimento, por sua vez, abre um futuro, é essencialmente promissor, funda uma busca, e o desejo é exatamente o nome dessa busca.

Ainda há uma observação final a ser feita, que diz respeito à própria angústia. Heidegger se atém a uma descrição bastante resumida da angústia, que obviamente se concentra essencialmente em seus efeitos, e não em seu conteúdo real, que ele toma como certo. A verdade, porém, é que esse não é o caso, e é legítimo perguntar o que é exatamente a angústia e se ela envolve algo além de opressão e vazio. Mais precisamente, a angústia deveria estar situada no lado do tremor e do deslize, de um tipo de deserção da realidade? Na verdade, a angústia geralmente surge de experiências de saturação, da impossibilidade de criar uma lacuna ou uma distância. Isso é o que Alain quis dizer em termos psicológicos quando afirmou que a angústia surge da concentração excessiva. Mais radicalmente, a definição de Lacan   de angústia como “falta de falta” nos parece tocar em uma dimensão da angústia que é, sem dúvida, mais profunda do que a que apresentamos até agora com Heidegger. A angústia não surge da falta, que é fértil e energizante, mas da falta dessa falta, ou seja, da tentativa de preenchê-la com o que, no entanto, é incomparável. Ora, se minha existência é, na verdade, baseada nessa falta, é inevitável que ela comece a vacilar e que eu me perca nela quando não mais existir, por assim dizer, no nível dessa falta. Em outras palavras, a angústia está do lado do gozo e da pulsão de morte, não do lado do desejo, do prazer e da pulsão de vida.


Ver online : Renaud Barbaras


BARBARAS, R. Métaphysique du sentiment. Paris: Editions du Cerf, 2016