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Figal (2007:179-182) – mundo

terça-feira 8 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Na maioria das vezes falamos do mundo em duas significações: “mundo” é ou bem o conjunto daquilo que é, ou bem a conexão peculiar da vida humana. Esta segunda significação pode ser pensada em contraste com a vida religiosa, de modo que o mundo se mostra como a conexão da vida meramente humana, apartada de Deus e, neste ponto, também pecaminosa. Ou o conceito é especificado, na medida em que ele designa uma conexão vital particular, por exemplo, o mundo da arte ou o mundo cientifico. Também podemos falar deste modo de religiões ou culturas como “mundos” [1]. Neste caso, o mundo é a conexão, à qual corresponde uma “imagem do mundo” ou uma “visão de mundo” determinada [2].O mundo, compreendido desta maneira, é o “mundo espiritual”; ele é a suma conceitual de uma vida, que é embebida em formas e instituições, em “valores e bens”, tal como Dilthey   o diz. e que os modifica ao mesmo tempo, forjando-os sempre uma vez mais. O mundo é “a conexão de efeitos” da vida espiritual [3].

É a esta compreensão do mundo que o conceito deve a sua posição central na filosofia orientada hermenêutica e fenomenologicamente. Em seu desenvolvimento, a outra compreensão do mundo citada em primeiro lugar serve de maneira mais ou menos aberta como papel de contraste. Como conjunto daquilo que é, o mundo é subdeterminado e, em verdade, de modo definitivo, quando tudo depende da conexão daquilo que é. Neste caso, não é mais suficiente completar a representação de um conjunto daquilo que é por meio da representação de um “mundo espiritual”; o que este conceito indica precisa ser muito mais concebido de um tal modo, que ele torna compreensível aquilo que é em sua conexão.

Foi neste sentido que Heidegger desenvolveu o conceito de mundo em Ser e tempo  . Se todo ente só é clarificável em seu ser por intermédio do ser do ser-aí, então o seu caráter “intramundano” só pode se tornar compreensível por intermédio da “mundaneidade” do ser-aí [4]. Mundo é, e, em verdade, exclusivamente, um “caráter ontológico do ser-aí” [5]. Heidegger combina com esta compreensão do mundo os dois conceitos de mundo, que podem ser considerados como predecessores dos aqui distintos. Na medida em que compreende o conjunto daquilo que é a partir de sua “significância” aberta no ser-aí, ou seja, a partir de sua significação e de sua importância para o ser-aí, ele coloca uma vez mais em jogo a compreensão do mundo enquanto um estado ordenado, uma compreensão que tinha sido visada com a palavra grega para “mundo”, a saber, κόσμος. E uma vez que Heidegger concebe esta conexão a partir do ser-aí humano, ele remonta à compreensão neotestamentária do κόσμος, ou seja, à compreensão do mundo como um “estado” e uma “conjuntura” dos homens [6]. Segundo a coisa mesma, Heidegger reage, com isto. à denúncia nominalista daquilo que Hans Blumenberg chamou o “cos-moconservadorismo”, algo que surge a partir de um “arranjo do cristianismo com [181] a metafísica antiga” [7]. Se o mundo enquanto ordem não pode se tornar mais plausível a partir da criação, ainda há agora a possibilidade de encontrar a ordem a partir do homem. O mundo do utensílio e do instrumento, tal como ele é descrito em Ser e tempo  , é uma resposta ao modo como uma tal ordem precisa ser pensada.

Heidegger não se satisfez com o conceito de mundo, tal como ele o desenvolveu em Ser e tempo  . É possível acompanhar as razões que o levaram a esta insatisfação: enquanto mundo do utensílio e do instrumento, o conjunto daquilo que é não é apreendido senão de maneira por demais estreita. Nesta medida, o conceito de mundo concebido a partir da significância não pode substituir a compreensão do mundo como o conjunto do ente. Como se estivesse buscando uma correção da concepção de Ser e tempo  , Heidegger trata em seu ensaio Da essência do fundamento da determinação kantiana do mundo como a “totalidade absoluta da suma conceitual das coisas existentes” [8]. Tal como Heidegger o expressa, o mundo compreendido de tal forma como totalidade “ultrapassa” “os fenômenos e, em verdade, de tal modo “que ele é rearticulado com eles enquanto a sua totalidade” [9]. Com o mundo enquanto totalidade conquistamos um ponto de vista que se encontra fora dos fenômenos, para nos comportarmos em relação aos fenômenos como um todo.

Heidegger quer se dirigir para este pensamento. O que está em questão para ele é retirar uma consequência da “transformação” kantiana da compreensão do mundo própria à “metafísica tradicional” [10], consequência esta que o próprio Kant   não tinha retirado. O fato de não se compreender mais por mundo a “totalidade” das coisas [11], mas de se refletir sobre a possibilidade de uma tal compreensão, vem à tona para Heidegger com a ideia de uma totalidade do ente que é formada a cada vez historicamente no ser-aí. Para ele, a “transcendência” do ser-aí em relação ao ente faz-se valer por meio do fato de o ser-aí ser formador de mundo, ou seja, de o ser-aí deixar o mundo acontecer como totalidade, na medida em que oferece para si “uma visão originária (imagem), que não é apreendida expressamente, mas que, contudo, funciona como modelo para todos os entes manifestos, dentre os quais se encontra o próprio ser-aí respectivo” [12].

Foi antes de tudo na preleção do semestre de inverno de 1931/32 que Heidegger explicitou o que ele entendia por isto no particular [13]. Fala-se aí de um “vincular-se projetivo” [182] do ser-aí e do fato de o ser-aí entregar a si mesmo com o projeto de um mundo uma “vinculação”, “que permanece desde o princípio imperativa, de modo que todo comportamento subsequente em particular só pode se tornar e ser um comportamento livre por meio de uma tal vinculação” [14]. Projetos de mundo deste tipo acontecem na ciência, na história e na arte. A ciência natural, compreendida desta forma, não seria apenas pesquisa empírica, mas a delimitação prévia daquilo “que (…) deve ser compreendido futuramente por natureza e por evento natural” [15]. A história, que merece este nome, projetaria “a compreensão antecipativa do acontecimento daquilo que denominamos história” [16]. Na arte seriam produzidas as “possibilidades veladas do ser para a obra”, de modo que poderia ser conquistada toda uma nova visão daquilo “que realmente é” [17]. Em todo caso, a totalidade do mundo é descoberta de maneira nova, na medida em que aquilo que é, incluindo neste caso o “próprio ser-aí respectivo”, é interpretado sob um ponto de vista uno. Projeto de mundo e formação de mundo são interpretações do ente a partir da “totalidade absoluta” do conceito de mundo.


Ver online : Günter Figal


FIGAL, Günter. Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia. Marco Antonio Casanova. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.


[1Cf. Günter Abel, Interpretationswelten. Gegenwartsphilosophie jenseits von Essentialismus und Relativismus (Mundos interpretativos. Filosofia do presente para além de essencialismo e relativismo), Frankfurt junto ao Main, 1993. Cf. também Nelson Goodman, Wags ol Worldmaklng, Indianapolis, 1978.

[2Cf. Günter Figal, Welt (philosophisch) (Mundo — pensado em termos filosóficos), in: Reli gion in Geschichte und Gegenwart, quarta edição, vol. 8, Tübingen, 2005, colunas 1390-1392 e Weltbild (philosophisch) (Imagem de mundo — pensada em termos filosóficos), colunas 1405-1407; Wilhelm Dilthey, Wellanschauungslehre: Abhandlungen zur Philosophie der Philosophie (A doutrina das visões de mundo: ensaios sobre a filosofia da filosofia), GS VIII, org. por B. Groethuysen, segunda edição, Berlim. 1960; Karl Jaspers, Psychologie der Weltanschauungen (Psicologia das visões de mundo), Berlim, 1919.

[3Cf. quanto a isto Dilthey. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. GS VIII, p. 153.

[4Quanto à distinção entre “mundano” e “intramundano”, cf. Heidegger, Ser e tempo, GA2, p. 88.

[5Heidegger. Ser e tempo, GA2. p. 86.

[6Martin Heidegger, Da essência do fundamento (1929). GA 9. p. 123-175, aqui p. 143.

[7Hans Blumenberg, Die Legitimität der Neuzeit (A legitimidade da modernidade), Frankfurt junto ao Main, 1966, p. 84.

[8Kant, Critica da razão pura. B 447. A 419; AA III. p. 289.

[9Heidegger, Da essência do fundamento, GA 9, p. 152.

[10Ibid., p. 151.

[11Heidegger já se volta contra este conceito de mundo em Ser e tempo. Cf. Heidegger, Ser e tempo. GA 2, p. 87.

[12Heidegger, Da essência do fundamento, GA 9, p. 158.

[13Quanto a uma apresentação mais detalhada desta problemática, cf. Günter Figal, Martin Heidegger zur Einführung (Introdução a Martin Heidegger), quarta edição, Hamburgo, 2003, p. 94-110.

[14Martin Heidegger, Vom Wesen der Wahrheit. Zu Platons Höhlengleichnis und Theätet (Da essência da verdade. Sobre o mito da caverna e o Teeteto de Platão), org. por Hermann Mörchen, Frankfurt junto ao Main, 1988, p. 59.

[15Heidegger, Vom Wesen der Wahrheit (Da essência da verdade), GA 34, p. 61.

[16Ibid.. p. 62.

[17Ibid., p. 64.