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Grondin (1987:55-60) – temporalidade [Zeitlichkeit]

segunda-feira 7 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] o que impulsiona a preocupação [Sorge]? Como o Dasein é caracterizado como o ser para o qual esse mesmo ser está em jogo em seu ser, a resposta é óbvia: o sentido da preocupação não pode ser outro senão o ser do Dasein, uma concepção que devemos especificar agora. A preocupação é, mais precisamente, sobre o poder-ser (Seinkönnen) do Dasein. Quando o homem lida com o ser em geral, é sempre o seu poder-ser que está em questão. O ser do Dasein é um ser de tensão. Em outras palavras, o futuro constitui o ser do Dasein. O sentido da preocupação reside no futuro e, consequentemente, como veremos, no tempo.

[…]

[…] o Dasein deve ser compreendido com base em sua estrutura “tensional”. Tematizar o Dasein em termos de seu poder-ser é entendê-lo em termos de futuro. Primo do possível, o futuro não indica um instante que será realizado “em um determinado momento”. Heidegger acredita que tornar o futuro um presente que ainda não é é confiná-lo a uma ontologia de ser-subsistente-à-mão [Vorhandenheit] e, portanto, à metafísica que congela o ser do tempo no presente. Catapultar o futuro para um instante vindouro é ignorar sua estrutura existencial e, como resultado, objetivar um poder-ser que se rebela contra toda objetivação.

Heidegger está em processo de descoberta de uma concepção mais original do tempo. O tempo não será mais interpretado à luz da ontologia metafísica, repleta de escolhas ontocrônicas não refletidas, mas a partir da facticidade do Dasein. A aposta revolucionária de Heidegger consistirá em conduzir uma interpretação do tempo centrada no futuro. Estamos testemunhando uma importante mudança de paradigma, já que na ontologia clássica o presente carregava todo o peso ontológico do tempo, sendo o futuro um presente ainda desprovido de realidade e o passado um presente que perdeu o seu próprio.

Favorecer o futuro não significa, entretanto, negligenciar as outras dimensões do tempo. Esse seria o caso se seguíssemos a ontologia de Vorhandenheit, que faz questão de opor os três momentos do tempo de acordo com seu grau ontológico, objetivando-os assim de acordo com uma hierarquia piramidal:

De acordo com Heidegger, esse caráter mensurável do “tempo objetivo”, por si só, trai um mal-entendido do tempo original, o do Dasein. De fato, antes de nos comprometermos a medir o tempo a fim de garantir sua disponibilidade, o tempo, o mestre absoluto, já havia tomado medido do Dasein e disposto de sua existência.

Portanto, Heidegger não colocará mais os momentos do tempo uns contra os outros. Ao invés, tentará compreender sua inter-relação ou, se pudermos usar a expressão, sua simultaneidade essencial. Sob a égide da preocupação, o Dasein não é apenas seu futuro, ele também vive seu passado. Não apenas no sentido de que o Dasein deve assumir as consequências de suas experiências passadas, mas, ontologicamente falando, no sentido de que ele é chamado a assumir seu ser projetado, sua Geworfenheit. Enquanto o comportamento humano continuar a ser ditado pelo imperativo do poder-ser, o Dasein voltará ao pretérito de já ter sido projetado em uma possibilidade de ser. Não há poder-ser sem uma relação constitutiva com a existência que já passou e é restrita em suas possibilidades, assim como não há passado sem a ideia reguladora de um poder-ser. Heidegger não usará mais a expressão “passado” (Vergangenheit), um resquício da ontologia da Vorhandenheit, mas a expressão “ter-sido” (Gewesenheit). A primeira expressão sugeriria que o passado está por trás e fora do Dasein, enquanto ter-sido, retém a ideia de um “ter” inalienável que constantemente pesa sobre o poder-ser. Ter-sido designa a realidade insuperável de ter sido projetado no ser. Podemos supor que esse passado pode ser assumido de diferentes maneiras. Ele pode ser o objeto de uma memória explícita na ideia — será que é realmente mais do que um ideal? — de existência autêntica, assim como pode cair no esquecimento sob a influência da inautenticidade. Esse esquecimento do ter-sido-projetado-no-Ser representa o eco existencial do esquecimento do Ser na história da metafísica, um esquecimento característico de um declínio (Verfallen) com relação a uma possibilidade de compreensão ontológica, uma possibilidade constitutiva de um Dasein especificamente histórico.

Heidegger finalmente chega ao presente, no final de um desvio programático que relativiza o domínio da presença na concepção tradicional do tempo. É o futuro como poder-ser e a lembrança do ter-sido que abrem o horizonte da presença. O poder-ser, o volume de um ter-sido, me apresenta a situação do instante (Augenblick). O presente não mais incorpora um agora situado na borda de dois não-entes, mas o ponto de encontro do projeto passado e a projeção de um poder-ser. O presente, imbuído de preocupação, é, portanto, repleto de sentido, longe de ser o momento fugaz da metafísica. O presente é mantido (um verbo que deve ser tomado em um sentido forte) no horizonte de um projeto de existência e no contexto do passado que eu sou. A palavra alemã para “presente” é “Gegenwart”, literalmente (Gegen-wart) “aquilo que me espera”. A expectativa e, portanto, o futuro, consegue falar por meio do presente. O tempo não é mais uma forma vazia, como era para Aristóteles   e Kant  , mas uma totalidade plena, uma concepção que pode ter sido sugerida ao jovem Heidegger pela experiência do tempo dos primeiros cristãos: para o Dasein, o tempo se apresenta menos como um chronos anônimo do que como o chamado de um kairos aguardando decisão.

Heidegger vê na inter-relação, mal delineada aqui, do futuro, do ter-sido e do presente o fenômeno original da temporalidade: “A unidade original do futuro, do ter-sido e do presente assim caracterizada incorpora o fenômeno do tempo original que designamos sob o nome de ‘Zeitlichkeit’ (temporalidade)” [GA24  :376]. É importante enfatizar que essa temporalidade pretende ser um fenômeno unitário: “O ter-sido nasce do futuro, de modo que o futuro passado (ou tendo-sido) libera o presente de si mesmo. Chamamos de Zeitlichkeit esse fenômeno unitário constituído de ter-sido futuro e presente” [SZ  :326].

As três dimensões do tempo devem encontrar sua unidade nessa temporalidade. Mas como podemos falar de unidade se a tripartição permanece? A unidade da essência, a l’homoousia da trindade temporal, precisa ser elucidada. O ponto de partida deve ser a unidade. A diversidade dimensional é introduzida por meio da “autotemporalização” da temporalidade: “A temporalidade temporaliza, e mais, as possíveis formas de temporalizar a si mesma” [SZ  :328]. Observe que o vocabulário está se tornando cada vez mais elusivo. Heidegger usa deliberadamente essa terminologia incongruente. É uma questão de fechar a porta para a ontologia do ser-subsistente-à-mão [Vorhandenheit], que gostaria de fazer do tempo um ente. No entanto, insiste Heidegger, “a temporalidade não é absolutamente um ente” [SZ  :328]. Para entender por que, precisamos lembrar o objetivo ontológico de Ser e Tempo  : o sentido do ser deve ser revelado com base no tempo. Se o tempo (ou a temporalidade) não é nada do ser, é porque ele “é” (!) a condição de possibilidade do ser, a luz ou, como Heidegger escreveria mais tarde, a clareira do ser [Lichtung]. Heidegger renuncia ao caminho batido da metafísica. Obviamente, nem todas as dificuldades são resolvidas ou desculpadas. Portanto, devemos seguir a máxima de prudência que Heidegger aplica a Kant  : “Devemos, ao mesmo tempo, estabelecer o limite até o qual a exposição kantiana é clara e a partir do qual começam a confusão e o embaraço” [GA25  ]. O embaraço será tanto maior quanto Heidegger havia prometido descobrir na temporalidade a “resposta concreta à questão do sentido do ser” [SZ  :19], portanto, uma resposta que não escapa à exigência da ilustração fenomenológica. Munidos dessa exigência, cuja urgência o próprio Heidegger reconheceu, tentemos seguir o fio das análises relativas à automaturação da temporalidade.


Ver online : Jean Grondin


GRONDIN, Jean. Le Tournant dans la pensée de Martin Heidegger. Paris: PUF, 1987