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Horizonte e Complementaridade

Eudoro de Sousa (HCSM:118-123) – interpretação da República VI e VII (504d-517c)

Ensaio sobre a relação entre mito e metafísica, nos primeiros filósofos gregos

sábado 9 de outubro de 2021

[DE SOUSA, Eudoro. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 118-123]

REPÚBLICA VI e REPÚBLICA VII

68. Só para desentranhar todas as implicações destas poucas páginas da República, necessário seria escrever um livro inteiro. Supondo que não nos tenhamos omitido de ler com a devida atenção nenhum dos mais importantes comentários que constam da bibliografia especializada, digamos, para começar, que só nos ocorre uma excepção (Fergusson) ao quase unânime parecer acerca da convergência das três imagens em um único sentido; o que, aliás, Platão expressa por inequívocas palavras: «esta imagem […] toda ela se aplica ao que antes dizíamos, se assimilarmos o mundo visível à estadia na prisão, e a luz do fogo, que a alumia, ao efeito do Sol», etc. A excepção a que nos referimos consiste em objectar contra a «Linha Segmentada», unindo o «Sol» à «Caverna». Quanto à absoluta maioria dos defensores da unidade do tríptico, as diferenças não vão além do modo como devem sobrepor-se as três imagens e, sobretudo, no que se refere à questão de existir ou não existir uma rigorosa correspondência dos estágios, no caminho de acesso à verdade e à certeza, assinalados na «Linha» e na «Caserna». O último trabalho publicado (Lier) talvez exorbite da mais legítima existência de rigor, dando a entender que no «Sol» a ascensão se processa em dois graus, na «Linha» em quatro, e na «Caverna» em oito, isto é, que Platão teria passado de um a outro, dividindo sempre em dois, cada um dos precedentes estágios. Na «Caverna», por conseguinte, teríamos: 1) o prisioneiro, impedido de se mover e de se voltar, 2) o voltar-se para objectos iluminados pelo fogo, 3) a obrigação de olhar o mesmo fogo, 4) a subida, ainda dentro da caverna, até à luz do dia, 5) o dever cingir-se à contemplação de sombras e imagens, 6) a passagem para a visão das próprias coisas que produzem sombras e imagens, 7) a contemplação do céu nocturno e [118] 8) a final visão do sol, em todo o seu esplendor. É possível, no entanto, que esta interpretação acerte no essencial, se levarmos em conta o princípio da proporcionalidade, para o qual já acenara Frankel, escrevendo acerca de Heráclito (v. infra § 76). «Ambos os grupos de quatro, foram postos por Platão numa relação reciprocamente proporcional, para cada uma de suas partes: assim, correspondem os estágios 1 e 2, em sua contraposição de sombras e objectos, aos estágios 5 e 6, enquanto o trânsito do estágio 3 para o estágio 4, do fogo na caverna obscura para a clara luz do dia, tem sua correspondência no trânsito de 7 para 8, do estrelado céu nocturno para a resplandescente luz do Sol.» (Lier, p. 214.) Quanto a nós, só pomos em dúvida que a Ideia do Bem se represente na «Linha Segmentada» pelo princípio não hipotético, pois, enquanto Platão diz claramente, no «Sol», que o Bem reside epekeina tes ousias («para além da essência»), tão claramente afirma, na «Linha Segmentada», que o princípio não hipotético se atinge no andamento do raciocínio, por via da dialéctica ascendente. Preferimos entender, ainda que sob protesto do racionalismo mais mitigado, que à Ideia do Bem, residindo para além do horizonte extremo — nas «moradas da Noite», di-lo-íamos, não parecesse a «simbólica da luz», em Platão, como obstáculo intransponível —> ninguém acede senão pelo que, em linguagem filosófica se denomina «intuição», e, em linguagem mítica, «excepcional mercê dos deuses». Em abono da intuição necessária e, por conseguinte, da insuficiência de qualquer tipo de raciocínio, cita-se justamente uma curta passagem do «excursus filosófico» da Sétima Epístola. Sobre este excursus, com especial intenção de refutar as actuais tendências para descobrir o conteúdo de um hipotético escrito de Platão «Acerca do Bem», Kurt von Fritz publicou há pouco o mais esclarecedor trabalho que conhecemos sobre o assunto (1966, 1972). A passagem em questão, é a seguinte: «só após longa meditação sobre estes problemas, o íntimo convívio com os mesmos, a verdade jorra de súbito na alma, do mesmo modo que a luz brota do fogo; e só então cresce por si». Na opinião de Kurt von Fritz «esta passagem foi mal entendida, já na Antiguidade tardia, como se ela se referisse a qualquer espécie de iluminação mística» (p. 142); mas, prossegue ele, «para o que ela aponta, não é senão o mais alto estágio de algo que, nos mais baixos, acontece em todo o tempo e em todo o lugar» (pp. 412-413), e em abono do que afirma, vai alinhando casos de súbita compreensão de obras de arte poética ou de difíceis lições transmitidas de mestre a discípulo, estes, que ele muito bem conhece por sua vasta e profunda experiência de professor universitário: de súbito, salta a [119] chispa da compreensão, que se escusara durante horas, dias, meses ou anos de estudo e de meditação. Só não vemos como essa experiência refuta a tese da «iluminação mística», pois também se verifica que a tal compreensão súbita, para muitas pessoas e vezes sem conto, jamais sucede. E ninguém poderá assegurar de ciência certa, que os casos de repentina compreensão não sejam precisamente aqueles que na Antiguidade se designaram por «iluminação mística». Demais, se pensássemos que a iluminação súbita resulta do bom exercício de uma inteligência superior, ainda iríamos ao encontro de Platão, quando, na mesma Epístola, declara que «nem a facilidade de aprender nem a memória serão capazes de outorgar o dom da visão a quem não sinta afinidade pelo objecto, pois que ele não pode radicar-se de maneira nenhuma em natureza estranha», e assim, também ao encontro de seus intérpretes da Antiguidade tardia.

69. É certo que mais tem sido o abuso do que o bom uso do «misticismo» platônico (sobre o misticismo em Platão, v. Carter); mas, aqui, haveria que perguntar se o inegável misticismo dos neo-platônicos alguma vez teria entrado para a história do pensamento filosófico, se, de algum modo, Platão lhe não tivesse entreaberto as portas. Os mal-entendidos que se atribuem aos antigos comentadores do filósofo, resultam de não haverem eles ententido que a Verdade do mestre estava na convergência da codificação lógica e da codificação mítica do que através de todo este ensaio, vimos chamando de «mistério do horizonte». O ponto de convergência oculta-se por detrás de um horizonte inacessível, percorrendo um ou outro de dois caminhos: o que se assinala pela codificação mítica ou o que se inicia pela codificação lógica. O espantoso paradoxo do pensamento platônico é uma exigência que nunca chega à expressão directa — só com a alma dividida, poderíamos caminhar por ambas as vias, a um tempo, mas também, só com a alma inteira podemos ver que nem uma nem outra nos levava aonde pretendíamos chegar. Aqui emerge a cifra da «reminiscência»; o «aonde queremos chegar» é o «donde nós viemos». A cifra pertence, originalmente, à codificação mítica; por isso, ela apresenta-se na obra de Platão com a ambiguidade característica de todo mito; e quando transposta para a codificação lógica verifica-se que uma vez se deduz a imortalidade da alma da reminiscência, outra vez, a reminiscência, da imortalidade da alma. Atendemos só à segunda alternativa, que é a de um breve trecho do Menon (80 D-81 E): «M) Mas como vais tu procurar uma coisa, ó Sócrates, nada absolutamente sabendo do que ela é? Entre tantos que não conheces, que ponto [220] proporás à tua inquirição? Ou, supondo que por acaso o encontres, como o reconhecerás, posto que não o conheces? — S) Entendo o que pretendes dizer, Menon. Belo assunto de discussão sofistica nos apresentas! É a doutrina segundo a qual não é possível buscar nem o que se conhece nem o que se não conhece; o que se conhece, porque, conhecido, não há necessidade de procurá-lo; o que se não conhece, porque nem sequer se sabe o que se há-de procurar. — Μ) E não te parece, Sócrates, que seja este um belo raciocínio? — S) Não, a meu ver. — M) Podes dizer-me onde falha? — S) Certamente. Escutei homens e mulheres hábeis nas coisas divinas […]. — M) Que diziam eles? — S) Em minha opinião, coisas verídicas e belas. — M) Que coisas, e quem as dizia? — S) Os que as dizem são sacerdotes e sacerdotisas que se aplicam em explicar as funções que exercem; é, ainda, Píndaro   e uma multidão de poetas, daqueles que, em verdade, são divinos. Eis o que eles dizem; vê tu, se te parecem falar a verdade. Dizem, pois, que a alma do homem é imortal, e que ora sai da vida — é o que chamam morrer — ora à vida regressa, mas que nunca perece, e que, por conseguinte, é preciso viver esta vida tão santamente quanto possível; pois ‘aqueles que a Perséfone pagaram tributo por seus erros passados, desses, para o Sol nas alturas, a deusa, no ano nono, reenvia as almas, e destas elevam-se as dos reis ilustres, dos varões poderosos pela força, ou grandes pelo saber, que para sempre, como heróis sem mancha entre os mortais são venerados’. [Pínd., frg. 133, Sandys.] Assim, a alma, sendo imortal e muitas vezes renascendo, tendo contemplado todas as coisas, quer na Terra quer no Hades, não pode deixar de tudo haver aprendido; de modo que de assombrar não é, que possua, acerca da virtude e do resto, lembrança do que anteriormente conheceu. Como toda a natureza é homogênea e a alma tudo aprendeu, nada impede que uma única recordação — o que os homens denominam saber — faça que ele torne a achar todas as outras, previsto que se tenha a coragem e não se desista da busca; pois a inquirição e o aprender, não são mais, em seu todo, do que reminiscência (anamnesis).» É claro que a «alma» de Platão, neste lugar, rigorosamente se identifica com o daimon de Empédocles  ; uma e outro caíram na caverna que é o mundo.

70. As imagens do tríptico da República facilmente se reduzem ao esquema mais simples, uma vez traçada a linha principal que, no «Sol», separa o sensível, onde reina o astro do dia, do inteligível, onde reina a Ideia do Bem; na «Linha», o mundo das coisas, do mundo das ideias; e na «Caverna», o que se passa no interior, do [227] que se passa no exterior. Essa linha é, designando-a por uma só palavra, a do horizonte. Na codificação mítica, não vemos nem o mais insignificante vestígio de que no «para lá do horizonte» alguma vez se degrade o sensível do «para cá do horizonte». Em Homero   ou Hesíodo  , ou em qualquer dos poetas que ampliam ou enriquecem a imagem do que há para além dos limites da terra, não se vê que o sensível, para o lado de lá, seja menos do que o sensível, para o lado de cá. Dir-se-ia até que o para além do horizonte, com seu Jardim das Hespérides ou Horto dos Deuses, Ilhas dos Beatos, e tudo o mais que sugere o paradisíaco estado-lugar e estádio-tempo em que o Céu e a Terra ainda se mantêm unidos, se nos apresenta como uma glorificação da sensitividade. Nem os monstros-guardiães do Oceano ou a nevoenta penumbra do Tártaro ou os temíveis vórtices do Caos, contribuem para moderar a impressão de que tudo, no único reino do sensível, é, para lá, um mais, do menos que está para cá. Na codificação filosófica, Parmênides é o primeiro que desenha uma linha divisória do que Platão parece decididamente opor: o sensível, para aquém, e o inteligível, para além do horizonte. E claro e insofismável que a posição de um ponto de arranque para a desvalorização do mundo sensível só se encontra na codificação filosófica, e que Platão, com sua filosofia equacionada a uma «preparação para a morte» se representaria na história do pensamento ocidental, como o arquetípico detractor da vida. No entanto, há qualquer coisa naquela tripla imagem da gno-siologia de Platão, que nos deixa inquietos perante a corrente ideia de que a oposição sensível-inteligível seja tão absoluta e irredutível quanto parece; algo que nos faz pressentir que a codificação filosófica, mesmo e apesar do khorismós parmenídeo e platônico, continua concorrendo com a codificação mítica do mistério do horizonte. Comum às três extensas metáforas da República é, como se sabe e já o dissemos, a separação (khorismós) do sensível e do inteligível, que no «sujeito» se representa pela oposição corpo-alma, e no «objecto», pela oposição matéria-espírito; mas tão comum às três, é também a gradação ascendente: há um «mais» nas coisas, do «menos» que havia nas sombras e nas imagens, e, nas ideias, mais um «mais», do «menos» que havia nas coisas, e, por fim, o «mais do que tudo», na Ideia do Bem; esta última é a Perfeição, o «tudo em um». É claro que, na ordem inversa, o caminho é do «mais» para o «menos». Será que a gradação, ascendente ou descendente, se detém na linha do horizonte, isto é, na linha que separa o sensível do inteligível, de modo que teríamos só um mais ou menos sensível e um mais ou menos inteligível, irremediavelmente apartados, para além e para [122] aquém daquela linha? Ou a gradação não se detém e, por exemplo, nas ideias há um «mais», do «menos» que havia nas coisas? Decerto, a resposta a esta última pergunta só pode ser negativa, quando se entenda que das coisas se passa às ideias, por via de abstracção. «Abstrair» significa literalmente «tirar de», e a mais completa abstracção, o total esvaziamento. Será a ideia um vazio da coisa? O absurdo, ou, pelo menos, o paradoxal, da pergunta, resulta desta outra: será a coisa um vazio de qualquer de suas sombras ou de suas imagens «reflectidas na superfície da água ou sobre todos os corpos que são ao mesmo tempo compactos, lisos e brilhantes»? E depois, como se poderia dizer que as coisas são «imitações» das ideias, sem pressupor que estas são incomparavelmente mais ricas do que aquelas? Mas, donde lhes viria a riqueza? De tudo quanto se queira, excepto da abstracção! Por conseguinte, tudo leva a crer que o tríptico da República, à medida que propõe um inteligível separado do sensível, na mesma medida parece impor que, por exemplo, todos os verdes que existem na natureza estejam realmente contidos no Verde que é. E não nos venham, agora, com o que só depois será dito; que isto ou aquilo se diz de vários modos. De nenhum modo, senão por aquele como Platão o disse, podia ser dito que no Verde estão todos os verdes. Verdadeiro khorismos, talvez seja só o limite do dizível, e do indizível.