Existe, então, um “há” luz, um ser da luz ou um ser-luz, exatamente como um ser-linguagem. Cada um é um absoluto, e no entanto histórico, porque inseparável da maneira pela qual cai sobre uma formação, sobre um corpus. E um torna as visibilidades visíveis ou perceptíveis, tal como o outro tornava os enunciados enunciáveis, dizíveis ou legíveis. Desta forma, as visibilidades não são nem os atos de um sujeito vidente nem os dados de um sentido visual (Foucault renega o subtítulo "arqueologia do olhar”). Assim como o visível não se reduz a uma coisa ou qualidade sensíveis, o ser-luz não se reduz a um meio físico: Foucault está mais próximo de Goethe do que [68] de Newton . O ser-luz é uma condição estritamente indivisível, um a priori que é o único capaz de trazer as visibilidades à visão e, ao mesmo tempo, aos outros sentidos, a cada vez conforme combinações também visíveis: por exemplo, o tangível é uma maneira pela qual o visível esconde outro visível. O que O Nascimento da Clínica já desvendava era um “olhar absoluto", uma “visibilidade virtual”, uma “visibilidade fora do olhar”, que dominava todas as experiências perceptivas e não convidava à visão sem convidar também os outros campos sensoriais, a audição e o tato. As visibilidades não se definem pela visão, mas são complexos de ações e de paixões, de ações e de reações, de complexos multissensoriais que vêm à luz. Como diz Magritte numa carta a Foucault , o que vê, e pode ser descrito visivelmente, é o pensamento. Será então que devemos aproximar essa luz primeira de Foucault à Lichtung de Heidegger, de Merleau-Ponty , o livre e o aberto, que só num plano secundário diz respeito à visão? Com duas diferenças, apenas: é que o ser-luz segundo Foucault é inseparável desse ou daquele modo e, sendo a priori, não deixa de ser histórico e epistemológico, mais que fenomenológico; por outro lado, ele não está aberto à fala tanto quanto à visão, pois a fala enquanto enunciado encontra uma condição de abertura totalmente diferente no ser-linguagem e em seus modos históricos. O que se pode concluir é que cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode, em função de suas condições de visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em função de suas condições de enunciado. Nunca existe segredo, embora nada seja imediatamente visível, nem diretamente legível. E, de um lado e de outro, as condições não se reúnem na interioridade de uma consciência ou de um sujeito, assim como não compõem um Mesmo: são duas formas de exterioridade nas quais se dispersam, se disseminam, aqui os enunciados, lá as visibilidades. A linguagem "contém” as palavras, as frases e proposições, mas não contém os enunciados que se disseminam segundo distâncias irredutíveis. Os enunciados se dispersam conforme seu limiar, conforme sua família. O mesmo acontece com a luz que contém os objetos, mas não as [69] visibilidades. Da mesma forma, como vimos, é um erro crer que Foucault se interessa pelos meios de internamento como tais: o hospital, a prisão, são, antes de tudo, lugares de visibilidade dispersos numa forma de exterioridade, remetendo a uma função extrínseca, a de isolar, a de enquadrar…
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Deleuze (2013:67-69) – ser-luz
domingo 27 de outubro de 2024, por
Ver online : Gilles Deleuze
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tr. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2013