Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Agamben (2015:269-271) – próprio e impróprio

sábado 12 de outubro de 2024

É nessa perspectiva [da facticidade] que deve ser lida a dialética não resolvida de eigentlich e uneigentlich, do autêntico e do inautêntico, a que Heidegger consagrou algumas das mais belas páginas de Sein und Zeit  . Heidegger sempre fez questão de precisar que as palavras eigentlich e uneigentlich têm de ser entendidas em seu significado etimológico de “próprio” e “impróprio”. Através de sua facticidade, a abertura do Dasein é marcada por uma impropriedade original, é constitutivamente dividida em Eingentlichkeit e Uneigentlichkeit. Heidegger sublinha várias vezes que a dimensão da impropriedade e da cotidianidade do Man não é algo de derivado, no qual o Dasein cairia, digamos assim, acidentalmente: ela é, pelo contrário, tão original como a propriedade e a autenticidade. O Dasein está cooriginariamente na verdade e na não-verdade, no próprio e no impróprio. O caráter originário dessa copertença é obstinadamente reafirmado por Heidegger: “O Dasein, como verfallen, está, por sua constituição de ser, na não verdade […] Aberto em seu Da, o Dasein se mantém cooriginariamente na verdade e na não-verdade” (SuZ  , 222).

Heidegger parece por vezes retroceder perante a radicalidade dessa tese e quase lutar contra si mesmo para manter um primado do próprio e do verdadeiro. Mas uma análise mais atenta mostra que não só a cooriginariedade nunca é desmentida, mas também que outros trechos deixam inferir um primado do impróprio. Sempre que se trata, em Sein und Zeit  , de apreender a experiência do próprio (como, por exemplo, no ser-para-a-morte-própria), é sempre uma análise da impropriedade (por exemplo, o ser-para-a-morte-fáctica) que abre o acesso a ela. A ligação fáctica entre essas duas dimensões do Dasein é tão íntima e original que Heidegger pode escrever: “Die eigentliche Exsistenz ist nichts, was uber der verfallenden Alltäglichkeit schwebt, sondern existenzial nur ein modifiziertes Ergreifen dieser”, “A existência própria não é algo que plana sobre a cotidianidade decaída; existencialmente não é mais do que uma apreensão modificada desta” (SuZ  , 179); e a propósito da decisão autêntica: “[Das Dasein] eignet sich die Unwahrheit eigentlich”, “[O Dasein] se apropria propriamente da não-verdade [SuZ  , 299). A existência autêntica não tem outro conteúdo que não seja a existência inautêntica, o próprio não é senão uma apreensão do impróprio. É preciso refletir sobre o caráter incontornável do impróprio que está implícito nessas formulações. Também no ser-para-a-morte-própria e na decisão o Dasein não apreende senão sua impropriedade, não se apodera senão de uma alienação, não está atento senão a uma distração. Esse é o estatuto originário da facticidade. Mas o que pode significar: apreender uma impropriedade? Como podemos nos apropriar propriamente da não-verdade? Se não se reflete sobre essas questões, se se continua a atribuir a Heidegger um simples primado do próprio e do autêntico, não só se corre o risco de entender de maneira errônea a intenção mais profunda da analítica do Dasein, mas também nos é impedido o acesso ao pensamento da Ereignis, que constitui o conceito-chave do último Heidegger e que tem aqui, na dialética entre eigentlich e uneigentlich, sua Urgeschichte no sentido benjaminiano.


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