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Gadamer (VM): pre-sença

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Ao que me parece, Kierkegaard   já comprovou a insustentabilidade dessa posição, ao reconhecer a consequência destrutiva do subjetivismo, e ao ser o primeiro a descrever a autodestruição da imediaticidade estética. Sua doutrina do estágio estético da existência foi projetada do ponto de partida do ético, a quem se tornou patente a impossibilidade de salvação e a insustentabilidade de uma existência na pura imediaticidade e descontinuidade. Por isso, seu ensaio crítico é de um significado fundamental, pois a crítica apresentada aqui, referente à consciência estética, revela as contradições internas da existência estética, de tal modo que esta está necessitada de ir além de si mesma. Na medida em que o estágio estético da existência se mostra em si insustentável, reconhece-se que o fenômeno da arte coloca uma tarefa à existência: a de, em face da atualidade exigente e arrecadadora da respectiva impressão estética, alcançar a continuidade da auto-evidência, que somente a existência humana (DASEIN  ) pode sustentar. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Não obstante, se se quisesse tentar uma autodeterminação da existência estética, que construísse a mesma coisa fora da continuidade hermenêutica da existência humana, ignorar-se-ia, pelo que acredito, o direito da crítica feita por Kierkegaard. Mesmo que se possa reconhecer que no fenômeno estético são visíveis os limites da auto-evidência histórica da existência (DASEIN), limites que correspondem aos apresentados pelo que é natural, o qual, colocado também no espírito como sua condição, penetra no que é espiritual nas mais diversas formas, como mito, como sonho, como pré-formação da vida consciente. Mesmo assim não nos é dado nenhum posto que nos permita ver a partir de si próprio o que assim nos limita e condiciona e, a partir de fora, ver-nos como os assim limitados e condicionados. Inclusive aquilo que está fechado à nossa compreensão é experimentado por nós mesmos como algo que limita e pertence, assim, à continuidade da auto-evidência, na qual a existência humana se movimenta. Com o reconhecimento da “debilidade do belo e da eventualidade do artista” não se caracteriza, na verdade, uma estruturação de ser fora da “fenomenologia hermenêutica” da existência, mas antes, se formula a tarefa de preservar a continuidade hermenêutica que perfaz o nosso ser, em face de tal descontinuidade do ser estético e da experiência estética. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Quando o idealismo especulativo procurou superar o subjetivismo e o agnosticismo estético, fundamentados em Kant  , elevando-se a um ponto de partida do saber infinito, como vimos, uma tal autolibertação gnóstica da finitude encerrou em si a subsunção da arte na filosofia. Teremos de, em lugar disso, fixar-nos no ponto de partida da finitude. Parece-me que o que há de produtivo na crítica de Heidegger ao subjetivismo da modernidade é que sua interpretação temporal   do ser abriu, nesse sentido, possibilidades próprias. A interpretação do ser, a partir do horizonte do tempo, não significa, segundo mal-entendido que sempre ocorre, que a pre-sença (DASEIN) seja temporalizada tão radicalmente que já não possa mais deixar valer nada como sempre-sendo ou como eterno, mas que deve compreender-se totalmente com relação ao seu próprio tempo e futuro. Se for essa a opinião  , então não se trata, de maneira alguma, de uma crítica e da superação do subjetivismo, mas de uma radicalização “existencialista” do mesmo, cujo futuro coletivista se pode profetizar. A questão da filosofia, de que se trata aqui, se dirige justamente a esse subjetivismo. Só por isso é que este é impelido ao cume, a fim de ser questionado. A questão da filosofia é indagar o que vem a ser o ser do compreender-se. Com essa indagação, ultrapassa, em princípio, o horizonte desse compreender-se. Ao revelar o tempo como o seu fundamento oculto, não prega um engajamento cego com base num desespero niilista, mas abre-se a algo até então oculto, a uma experiência que supera o pensamento baseado na subjetividade, que Heidegger denomina de ser. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

É certo que se pode diferenciar do próprio jogo o comportamento do jogador, que, como tal, se integra com outros modos de comportamento da subjetividade. Assim, por exemplo, pode-se dizer que, para quem joga, o jogo não é uma questão séria, e que é por isso mesmo que se joga. Podemos, a partir disso, procurar determinar o conceito do jogo. O que é mero jogo não é sério. O jogar possui uma relação de ser própria para com o que é sério. Não apenas porque nisso se encontra sua “finalidade”. Joga-se “por uma questão de recreação”, como diz Aristóteles  . O que é importante é que se coloque no próprio jogo uma seriedade própria, até mesmo sagrada. E, não obstante, não desaparecem simplesmente no comportamento lúdico todas as relações-fins, que determinam a existência (DASEIN) atuante e cuidadosa, mas, de uma forma muito peculiar, permanecem em suspenso. Aquele que joga sabe, ele mesmo, que o jogo é somente jogo, e que se encontra num mundo que é determinado pela seriedade dos fins. Mas isso não sabe na forma pela qual ele, como jogador, ainda imaginava essa relação com a seriedade. Somente então é que o jogar preenche a finalidade que tem, quando aquele que joga entra no jogo. Não é a relação que, a partir do jogo, de dentro para fora, aponta para a seriedade, mas é apenas a seriedade que há no jogo que permite que o jogo seja inteiramente um jogo. Quem não leva a sério o jogo é um desmancha-prazeres. O modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo como em relação a um objeto. Aquele que joga sabe muito bem o que é o jogo e que o que está fazendo é “apenas um jogo”, mas não sabe o que ele “sabe” nisso. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2

Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença (DASEIN), procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença (DASEIN), determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como “tempo sagrado”, do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um “tempo sagrado” e legitimar teologicamente a analogia   entre a a-temporalidade da obra de arte e esse “tempo sagrado”. Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o “tempo sagrado” encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2

Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey   e a Yorck, que um e outro formularam como “conceber a partir da vida”, tendência que, em Husserl  , encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental   (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma “hermenêutica da facticidade” Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença (DASEIN), a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro “cogito  ”, como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma ideia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Gostaria de relembrar que o próprio Husserl já havia colocado a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo   não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A ideia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença (DASEIN), que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença (DASEIN), pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença (DASEIN) — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Era claro, portanto, que o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental tinha como pano de fundo o problema da história. Todavia, em breve se perceberia que, nem a solução do problema do historicismo, nem uma fundamentação originária das ciências, e até nem mesmo uma autofundamentação ultra-radical da filosofia de Husserl corresponderiam ao sentido dessa ontologia fundamental; é a própria ideia da fundamentação que experimenta agora uma inversão total. O questionamento já não é mais igual ao dé Husserl, quando Heidegger empreende a interpretação do ser, verdade e história a partir da temporalidade absoluta. Pois essa temporalidade já não era mais a da “consciência” ou a do eu-originário transcendental. E verdade que na linha de pensamentos de Ser e tempo soa, todavia, como uma intensificação da reflexão transcendental, como a conquista de uma etapa mais elevada da reflexão, quando o tempo se revela como o horizonte do ser. Pois é a carência de uma base ontológica da subjetividade transcendental, que já Heidegger havia reprovado na fenomenologia de Husserl, o que parece ficar superado na ressurreição do ser. O que o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Porém ela era mais do que isso. A tese de Heidegger era: o próprio ser é tempo. Com isso se rompe todo o subjetivismo da mais recente filosofia — sim, como logo se mostraria todo o horizonte de questionamento da metafísica, assumindo no ser como o presente (Anwesende  ). O fato de que à pre-sença (DASEIN) importe o seu ser, e o fato de que se distinga de todo outro ente por sua compreensão do ser, isso não representa, como dá a entender em Ser e tempo, o fundamento último de que deve partir um questionamento transcendental. O que está em questão é um fundamento completamente diferente, o qual é o último que possibilita toda compreensão do ser, é o próprio fato de que exista um “pré” (”dá”), uma clareira no ser, isto é, a diferença entre ente e ser. A indagação que se orienta para esse fato básico de que “há” tal coisa, pergunta, na verdade, ser, mas numa direção que ficou necessariamente impensada em todos os questionamentos anteriores sobre o ser dos entes, e que inclusive foi encoberta e ocultada pela indagação metafísica pelo ser. Sabe-se que Heidegger manifesta esse esquecimento essencial do ser que domina o pensamento ocidental desde a metafísica grega, apontando a confusão ontológica que o problema do nada provoca nesse pensamento. E, enquanto deixa manifesto que essa indagação pelo ser é ao mesmo tempo a indagação pelo nada, une o começo e o final da metafísica. O fato de que a indagação pelo ser pode ser colocada a partir da indagação pelo nada já pressupõe o pensamento do nada, ante o qual havia fracassado a metafísica. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

A fenomenologia hermenêutica de Heidegger e a análise da historicidade da pre-sença (DASEIN) buscavam uma renovação geral da questão do espírito ou uma superação das aporias do historicismo. Tratava-se meramente de problemas atuais, nos quais se pudesse demonstrar as consequências de sua renovação radical da questão do ser. Mas graças precisamente à radicalidade de seu questionamento pôde sair do labirinto em que se haviam deixado apanhar as investigações de Dilthey e Husserl sobre os conceitos fundamentais das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

À luz da ressuscitada questão do ser, Heidegger dá uma mudança nova e radical a tudo isso. Segue a Husserl no fato de que o ser histórico não precisa destacar-se, como em Dilthey, face ao ser da natureza para legitimar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências históricas. Ao contrário, a forma de conhecer das ciências da natureza evidencia-se como uma forma desviada de compreensão, “que se perdeu na tarefa apropriada de acolher o que é simplesmente dado em sua incompreensibilidade essencial”. Compreender não é um ideal   resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey, mas tampouco, como em Husserl, um ideal metódico último da filosofia frente à ingenuidade do ir-vivendo, mas ao contrário, é a forma originária de realização da pre-sença (DASEIN), que é ser-no-mundo. Antes de toda diferenciação da compreensão nas diversas direções do interesse   pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da pre-sença (DASEIN), na medida em que é poder-ser e “possibilidade”. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Diante do pano de fundo dessa análise existencial da pre-sença (DASEIN), com todas as suas amplas e mal exploradas consequências para os interesses da metafísica geral, de repente o círculo de problemas da hermenêutica das ciências do espírito porta-se totalmente diferente. Nosso trabalho tem por escopo desenvolver esse novo aspecto do problema hermenêutico. Na medida em que Heidegger ressuscita o tema do ser e, com isso, ultrapassa toda a metafísica precedente — e não somente o seu ponto mais alto no cartesianismo da ciência moderna e da filosofia transcendental — ganha ele, face às aporias do historicismo, uma posição fundamentalmente nova. O conceito da compreensão já não é mais um conceito metódico como em Droysen. A compreensão não é, tampouco, como na tentativa de Dilthey de fundamentar hermeneuticamente as ciências do espírito, uma operação que só se daria posteriormente na direção inversa, ao impulso da vida rumo à idealidade. Compreender é o caráter ôntico original da própria vida humana. Se, a partir de Dilthey, Misch tinha reconhecido no “livre distanciamento de si mesmo” uma estrutura fundamental da vida humana, sobre a qual repousa toda a compreensão, a reflexão ontológica radical de Heidegger procura cumprir a tarefa de esclarecer essa estrutura da pre-sença (DASEIN) mediante uma “analítica transcendental da pre-sença (DASEIN)”. Revelou o caráter de projeto que reveste toda compreensão e pensou a própria compreensão como o movimento da transcendência, da ascensão acima do ente. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen  ) designa também um saber fazer prático (”er versteht nicht   zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença (DASEIN) humana. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Portanto, dado que o conhecimento histórico recebe sua legitimação da pré-estrutura da pre-sença (DASEIN), ninguém há de querer atacar os critérios imanentes daquilo que quer dizer conhecimento. Nem mesmo para Heidegger o conhecimento histórico é um projetar planejador, não é uma extrapolação de metas da vontade, nem pôr em ordem as coisas de acordo com desejos, preconceitos ou sugestões dos poderosos, mas é e continua sendo uma adequação à coisa, uma mesuratio ad rem. Só que a coisa, aqui, não é um factum brutum, algo simplesmente dado constatável e mensurável mas, em última instância, algo que ele próprio tem o modo de ser da pre-sença (DASEIN). VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Mas o que importa agora, naturalmente, é compreender corretamente essa reiterada constatação. Essa constatação não significa uma mera “homogeneidade” do conhecedor e do conhecido, sobre o que se poderia alicerçar a especificidade da transposição psíquica, como “método” das ciências do espírito. Nesse caso a hermenêutica histórica tornar-se-ia uma parte da psicologia (no que, de fato, Dilthey pensava). Na verdade, a adequação de todo conhecedor ao conhecido não se baseia no fato de que ambos possuam o mesmo modo de ser, mas que receba seu sentido da especificidade do modo de ser que é comum a ambos. E esta consiste em que nem o conhecedor nem o conhecido estão simplesmente dados “onticamente”, mas “historicamente”, isto é, são do mesmo modo de ser que a historicidade. Nesse sentido, como dizia o conde Yorck, tudo depende da “diferença genérica entre o ôntico e o histórico”. Quando o conde Yorck faz frente ao conceito da “homogeneidade” com o conceito da “pertença”, torna-se claro o problema que somente Heidegger desenvolveu em toda a sua radicalidade: o fato de que somente fazemos história na medida em que nós mesmos somos “históricos”, significa que a historicidade da pre-sença (DASEIN) humana em toda a sua mobilidade do atender e do esquecer é a condição de possibilidade de atualização do vigor-de-ter-sido, como tal. O que a princípio parecia somente uma barreira que atrapalhava o conceito usual de ciência e método, ou uma condição subjetiva de acesso ao conhecimento histórico, passa agora a ocupar o lugar central de um questionamento fundamental. A pertença é condição para o sentido originário do interesse histórico, não porque a eleição de temas e o questionamento estejam submetidos a motivações subjetivas e extracientíficas (nesse caso a pertença não seria mais um caso especial de dependência emocional do tipo da simpatia), mas porque a pertença a tradições pertence à finitude histórica da pre-sença (DASEIN) tão originária e essencialmente como seu estar-projetado para possibilidades futuras de si mesmo. Foi com razão que Heidegger se manteve firme na afirmação de que aquilo que ele chama de estar-lançado (Geworfenheit  ), e o que é projeto, encontra-se numa pertença mútua. Assim, não existe compreensão nem interpretação em que não entre em funcionamento a totalidade dessa estrutura existencial, mesmo que a intenção do conhecedor seja apenas a de ler “o que está aí”, e de extrair das fontes “como realmente foi”. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Por isso, aqui colocamos a questão de se saber se podemos ganhar algo para a construção de uma hermenêutica histórica a partir da radicalização ontológica que Heidegger leva a cabo nesse caso. Certamente que a intenção de Heidegger era outra, e não seria correto extrair consequências precipitadas de sua analítica existencial da historicidade da pre-sença (DASEIN). A analítica existencial da pre-sença (DASEIN) não inclui em si, segundo Heidegger, nenhum ideal de existência histórico determinado. Nesse sentido ela própria reivindica uma validez apriórico-neutral, inclusive para uma proposição teológica sobre o homem e sua existência na fé, como mostra, por exemplo, a polêmica em torno a Bultmann  . E, inversamente, com isso não se exclui, de modo algum, que tanto para a teologia cristã como para as ciências do espírito históricas haja premissas (existenciais), determinadas quanto ao seu conteúdo, e às quais estejam submetidas. Mas precisamente por isso, ter-se-á de outorgar reconhecimento ao fato de que a analítica existencial, ela mesma, segundo seu próprio propósito, não contém uma formação “existencial” de ideais, não sendo portanto criticável nesse sentido (por mais que se tenha tentado). VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Bem outra questão representa o fato de que mesmo o ser das crianças e dos animais — em oposição àquele ideal da “inocência” — continua sendo um problema ontológico. Em todo caso, seu modo de ser não é “existência” e historicidade no mesmo sentido que Heidegger reivindica para a pre-sença (DASEIN) humana. Caberia indagar também o que significa que a existência humana encontre sustentação, por sua vez, em algo extra-histórico, natural. Se se quer romper o cerco da especulação idealista, não se pode evidentemente pensar o modo de ser da “vida” a partir da autoconsciência. Quando Heidegger empreendeu a revisão de sua autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo, o problema da vida teria de chamar-lhe a atenção novamente e de modo consequente. Assim, na Carta sobre o humanismo, fala do abismo que se abre entre o homem e o animal. Não há dúvida de que a fundamentação transcendental da ontologia fundamental realizada por Heidegger na analítica da pre-sença (DASEIN) ainda não permitia o desenvolvimento positivo do modo de ser da vida. Aqui ficaram questões abertas. Todavia, tudo isso não muda nada no fato de que se perde completamente o sentido do que Heidegger chama “existencial”, quando se crê poder opor ao existencial da “cura” um determinado ideal de existência, seja qual for. Quem faz isso perde a dimensão do questionamento que Ser e tempo abre desde o princípio. Face a essas polêmicas míopes, Heidegger podia apelar com razão à sua intenção transcendental, no mesmo sentido em que era transcendental o questionamento kantiano. O seu questionamento estava, desde os seus primórdios, acima de toda diferenciação empírica e, por consequência, também de toda diferenciação de um ideal de conteúdo. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Nesse sentido, também nós nos reportamos ao sentido transcendental do questionamento heideggeriano. Através da interpretação transcendental da compreensão de Heidegger o problema da hermenêutica ganha uma feição universal, e até, o surgimento de uma dimensão nova. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora, por fim, um sentido concretamente demonstrável e é tarefa da hermenêutica demonstrar este sentido. Também para a realização da compreensão que se dá nas ciências do espírito, vale a ideia de que a estrutura da pre-sença (DASEIN) é um projeto lançado, e de que a pre-sença (DASEIN) é, segundo a realização de seu próprio ser, compreender. A estrutura geral da compreensão atinge a sua concreção na compreensão histórica, na medida em que na própria compreensão tornam-se operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro. A pre-sença (DASEIN), que se projeta para seu poder-ser, é já sempre “sido”. Este é o sentido do existencial do estar-lançado. O fato de que todo comportar-se livremente com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade deste ser, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade e de sua oposição à investigação transcendental da constituição na fenomenologia de Husserl. A pre-sença (DASEIN) já encontra como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar. Essa estrutura existencial da pre-sença (DASEIN) tem de encontrar sua cunhagem também na compreensão da tradição histórica, e por isso seguiremos em primeiro lugar a Heidegger. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon   das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas consequências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença (DASEIN). Essas consequências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Este conceito da compreensão rompe, evidentemente, o círculo traçado pela hermenêutica romântica. Na medida em que já não se refere à individualidade e suas opiniões, mas à verdade da coisa, um texto não é entendido como mera expressão vital, mas é levado a sério na sua pretensão de verdade. O fato de que também isso, ou até precisamente isso, se chame “compreender” era antes uma obviedade — nisso recordo-me da citação de Chladenius. No entanto, a dimensão do problema hermenêutico foi desacreditada pela consciência histórica e pela versão psicológica que Schleiermacher   deu à hermenêutica, e só pôde ser recuperada quando se tornaram patentes as aporias do historicismo e quando estas conduziram finalmente àquela mudança de rumo, nova e fundamental, para a qual, na minha opinião, o trabalho de Heidegger deu o mais decisivo impulso. Pois a distância de tempo em sua produtividade hermenêutica só pôde ser pensada a partir da mudança de rumo ontológico que Heidegger deu à compreensão como um “existencial” e a partir da interpretação temporal que aplicou ao modo de ser da pre-sença (DASEIN). VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Na escrita, a linguagem chega à sua verdadeira espiritualidade, pois, face à tradição escrita, a consciência compreensiva alcançou sua plena soberania. Em seu ser, já não depende de nada. Assim, a consciência leitora se encontra na possessão potencial de sua história. Não é em vão que o conceito da filologia, do amor aos discursos, se transformou com o aparecimento da cultura literária na arte oni-abrangente da leitura, perdendo sua relação originária com o cultivo do falar e argumentar. A consciência leitora é necessariamente histórica, é consciência que se comunica livremente com a tradição histórica. Nesse sentido está justificada a ideia hegeliana de equiparar o começo da historia com o surgir de uma vontade de tradição, de “permanência da recordação”. A escrita não é um simples acaso ou uma mera adição que não altera qualitativamente nada no progresso da tradição oral. É claro que também sem escrita pode dar-se uma vontade de sobrevivência, de permanência. Mas somente a tradição escrita pode ir mais além da mera permanência de resíduos de uma vida passada, a partir dos quais é possível à existência (DASEIN) reconstruir outra existência. VERDADE E MÉTODO PARTE III 1

A determinação kantiana fundamental do prazer estético, como um gosto isento de todo interesse, não somente se refere ao fato puramente negativo de que o objeto desse gosto não seja nem empregado como útil nem desejado como bom, mas quer dizer também positivamente que o “estar-aí” (”DASEIN”) não pode acrescentar nada ao conteúdo estético do prazer, à “pura contemplação”, precisamente porque o ser estético é representar-se. Somente a partir do ponto de vista moral   é que se pode encontrar um interesse pela existência (DASEIN) do belo, por exemplo, pelo canto do rouxinol, cuja enganosa imitação   é para Kant, até certo ponto, uma ofensa moral. A questão seria, naturalmente, até que ponto podemos assumir, como consequência real dessa constituição do ser estético, o fato de que aqui não há porque procurar verdade alguma, já que aqui não se conhece nada. Nas nossas análises estéticas já consideramos a estreiteza do conceito do conhecimento que condiciona, nesse ponto, o questionamento kantiano, e partindo da questão da verdade da arte tínhamos encontrado o caminho para a hermenêutica, na qual encontramos fundidas no uno a arte e a história. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Por outro lado, é quase impossível subtrair-se ao fechamento interno do idealismo da consciência e ao empuxo do movimento reflexivo que tudo suga para dentro da imanência. Será que Heidegger não tinha razão quando abandonou a analítica transcendental da pre-sença (DASEIN) e o ponto de partida da hermenêutica da facticidade? Nesse sentido, qual foi o caminho que busquei tomar? VERDADE E METODO II Introdução 1

Isso mostra-se claramente quando, hoje, procuro repensar o meu próprio relacionamento com Heidegger e minha adesão ao seu pensamento. A crítica viu este relacionamento de modo muito diverso. Em geral, essa determinou-se pelo fato de eu empregar o conceito de “consciência histórico-efeitual”. O fato de voltar a empregar o conceito de “consciência”, cuja preconceptualidade ontológica foi demonstrada claramente por Heidegger em Ser e tempo, significa para mim apenas uma adaptação a um uso de linguagem que me parece natural. Por certo, isso deu a impressão de um atrelamento ao questionamento do primeiro Heidegger, o qual parte da pre-sença (DASEIN), em que está em jogo seu ser e que se caracteriza pela compreensão de ser. O Heidegger tardio tratou de superar expressamente a autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo. A minha própria motivação de introduzir o conceito de consciência histórico-efeitual consistiu justamente em abrir caminho para o Heidegger tardio. Quando o pensamento de Heidegger se projetou para fora da linguagem dos conceitos da metafísica, ele viu-se enredado numa carência de linguagem que o levou a apoiar-se na linguagem de Hõlderlin e num dizer quase poético. Numa série de pequenos trabalhos sobre o Heidegger tardio, tentei esclarecer que a conduta do Heidegger tardio no que se refere à linguagem não é uma recaída na poesia, mas já estava contida na linha de seu pensamento, o qual me introduziu em minhas próprias questões. VERDADE E METODO II Introdução 1

Há muitos problemas, pelos quais a fé na ilimitação da razão histórica pode se tornar questionável. Refiro-me à questão das constantes naturais do espírito histórico, suas pressuposições biológicas, e à questão do começo da história. Será que a história só principia realmente onde a humanidade começa transmitir uma consciência de si própria? Será que as decisões que fazem história já de há muito não a precederam? Haverá um feito de maior significado do que a invenção do arado, que precede a qualquer tempo histórico? E o que é o mito, no qual os povos históricos se espelham, bem antes de adentrar seu destino histórico? Desde que a investigação filosófica deu alguns passos decisivos para além de Dilthey, o próprio problema a respeito da compreensão histórica se nos revela, hoje, a partir de uma nova luz. Martin Heidegger, em Ser e tempo, levou a historicidade da pre-sença (DASEIN) humana a contextos fundamentais de questionamento. A problemática da história viu-se assim liberada das pressuposições ontológicas, sob as quais era vista também por Dilthey. Demonstrou que o ser não significa sempre e necessariamente objetividade (Gegenständlichkeit  ), mas que importa sobretudo “elaborar a diferença genérica entre o ôntico e o histórico”. O ser da pre-sença (DASEIN) humana é um ser histórico. Isso significa, porém, que não está dado como a existência dos objetos da ciência da natureza, mas de modo mais vulnerável e oscilante do que estes. A historicidade, isto é, a temporalidade é ser em sentido mais originário do que o ser simplesmente dado, que a ciência natural busca conhecer. Há uma razão histórica, somente porque a pre-sença (DASEIN) humana tem caráter temporal e histórico. Há uma história do mundo somente porque esta pre-sença (DASEIN) temporal do homem “tem um mundo”. Há uma cronologia somente porque a própria pre-sença (DASEIN) histórica do homem é tempo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 2

Surge aqui um segundo aspecto: A significação não se revela no distanciamento do elemento compreensivo como pensava Dilthey, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no nexo de efeitos da história. A compreensão histórica é ela própria, sempre, a experiência de um efeito e o prolongamento de sua efetividade. Seu envolvimento prévio significa sua força histórica de produzir efeitos. Por isso, o que é historicamente significativo torna-se acessível de modo mais originário na plenitude da ação do que no compreender. A existência (DASEIN) histórica guarda sempre uma situação, uma perspectiva e um horizonte. É um caso semelhante ao da pintura: A perspectiva, isto é, a ordenação de “proximidade” ou “distância” das coisas inclui um ponto de vista, que precisa ser levado em conta. Assim, entramos numa relação de ser com as coisas e fazemos parte de sua ordenação, à medida que com elas nos alinhamos. Só assim torna-se representável a singularidade de um acontecimento, a plenitude do instante. A pintura pré-perspectivística, pelo contrário, mostra todas as coisas numa eternidade dilatada e pela ótica de um significado transcendente. A verdade histórica, correspondentemente, não é o transparecer de uma ideia, mas o vínculo de uma decisão irrepetível. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 2

Foi aqui que a questão da essência da verdade, colocada por Heidegger, realmente ultrapassou o âmbito da problemática da subjetividade. Seu pensamento percorreu o caminho desde o “instrumento”, passando pela “obra” e chegando à “coisa”, um caminho que ultrapassou amplamente a questão da ciência e inclusive a das ciências históricas. É tempo de não esquecermos que a historicidade do ser vige mesmo onde a pre-sença (DASEIN) tem consciência de si e onde se comporta historicamente como ciência. A hermenêutica das ciências históricas, desenvolvida desde Schleiermacher até Dilthey no romantismo e na escola histórica, assume uma tarefa totalmente nova, quando na esteira de Heidegger busca se desprender da problemática da subjetividade. O único e pioneiro nessa linha foi Hans Lipps, cuja lógica hermenêutica, mesmo não oferecendo uma verdadeira hermenêutica, libera com êxito a vinculabilidade da linguagem do nivelamento lógico. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4

Não me parece um acaso que o fenômeno da linguagem nas últimas décadas tenha ocupado o centro do questionamento filosófico. Talvez possamos dizer que, sob este signo, começa-se a transpor o maior abismo filosófico hoje existente entre os povos, qual seja, a oposição entre o extremo do nominalismo anglo-saxão, por um lado, e a tradição metafísica do continente, por outro. Em todo caso, a análise da linguagem, que começa refletindo sobre a problemática das lógicas das linguagens artísticas na Inglaterra e na América, aproxima-se surpreendentemente da reflexão e investigação da escola fánomenológica de E. Husserl. Assim como o reconhecimento da finitude e historicidade da pre-sença (DASEIN) humana, desenvolvidas por M. Heidegger, transformou essencialmente a tarefa da metafísica, da mesma forma, o reconhecimento da significação autônoma da linguagem falada acabou por dissolver o afeto antimetafísico do positivismo lógico (Wittgenstein  ). Da informação ao mito e à saga, que é igualmente uma “mostração” (Zeige) (Martin Heidegger), a linguagem perfaz o tema comum de todos. Quando se quer pensá-la verdadeiramente, parece-me que devemos nos perguntar se no fundo a linguagem não precisa significar “linguagem das coisas”. Se não é na linguagem das coisas que se revela a correspondência originária entre alma e ser, de tal modo que até uma consciência finita pode tomar conhecimento dela. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença (DASEIN) no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana   da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela ideia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como consequência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma ideia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença (DASEIN) como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença (DASEIN). O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença (DASEIN), delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9

Heidegger, porém, não ficou preso ao esquema transcendental, que ainda determinava o conceito de autocompreensão em Ser e tempo. Já em Ser e tempo a verdadeira questão não era de que maneira se pode compreender o “ser”, mas de que maneira a compreensão é “ser”. A compreensão de ser constitui a caracterização existencial da pre-sença (DASEIN) humana. Já aqui não se compreende ser como o resultado de uma produção objetivadora da consciência, como ainda era o caso na fenomenologia de Husserl. Quando a pergunta pelo ser visa o ser da pre-sença (DASEIN) que compreende a si própria, assume-se uma dimensão inteiramente diversa. Nessa pergunta, o esquema transcendental acaba fracassando. Assume-se no questionamento ontológico a contraposição infinita do ego   transcendental. Nesse sentido, já em Ser e tempo se começa a superar aquele esquecimento do ser que Heidegger caracterizou mais tarde como a essência da metafísica. O que ele chama de “virada” (die Kehre  ) nada mais é que o reconhecimento da impossibilidade de superar o esquecimento do ser na reflexão transcendental. Nesse sentido, todos os conceitos posteriores, o “acontecer do ser”, o “pré” como a “clareira” do ser etc. são consequências implícitas no primeiro enfoque de Ser e tempo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9

Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (DASEIN) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença (DASEIN) elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão “círculo hermenêutico” em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão “círculo hermenêutico” sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença (DASEIN) levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença (DASEIN) conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa “hermenêutica da facticidade” que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E METODO II OUTROS 24

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença (DASEIN) humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida   estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel   não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos  , demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche  , com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E METODO II OUTROS 24

Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma metodologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fundamento de uma ontologia da “pre-sença (DASEIN)”, a dimensão hermenêutica já não representou um estrato superior na investigação da intencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas fez aflorar sobre uma base europeia e dentro da orientação da fenomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simultaneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler  , a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt   (”mundo da vida”). VERDADE E METODO II OUTROS 25

O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloquente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano “ou isso ou aquilo” exerceu sobre o lema “tanto isso quanto aquilo”, próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl, revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença (DASEIN), apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de “cura” da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E METODO II OUTROS 25

A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a dialética do idealismo alemão na direção da dialética platônica, mas aponta o pressuposto da dialética que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis   buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma conversação”. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen (essência) como verbo, como palavra temporal, “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (”reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro  , submete a Weile   (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre   “a essência da pre-sença (DASEIN) é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz   (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E METODO II OUTROS 25

Nisso baseia-se o conceito teológico da autocompreensão. Também esse conceito foi desenvolvido a partir da analítica transcendental da pre-sença (DASEIN) de Heidegger. O ente cujo ser está em jogo, pelo fato de compreender seu ser, apresenta-se como o caminho de acesso para a questão do ser. A própria mobilidade da compreensão do ser é demonstrada como histórica, como a constituição fundamental da historicidade. Isso é de grande importância para o conceito bultmanniano de autocompreensão. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

A atual discussão hermenêutica que se apoia em Bultmann parece querer superá-lo apenas numa certa direção. Se para Bultmann o apelo do anúncio cristão se dirige ao homem, no sentido de que deve renunciar à vontade de dispor de si mesmo, a própria convocação desse apelo é de certo modo uma experiência privada que o homem faz enquanto dispõe de si mesmo. Nesse sentido, Bultmann interpretou o conceito heideggeriano da inautenticidade da pre-sença (DASEIN) de uma maneira eminentemente teológica. Em Heidegger, porém, a inautenticidade não está ligada à autenticidade no mesmo sentido em que a decadência é tão própria à existência humana quanto a “decisibilidade”, e que o pecado (a falta de fé) lhe é tão próprio quanto a fé. Em Heidegger, a origem comum de autenticidade e inautenticidade ultrapassa o ponto de partida baseado na autocompreensão. É a primeira forma sob a qual, no pensamento de Heidegger, o próprio ser veio à fala em sua polaridade de desvelamento e velamento. Assim como Bultmann se apoia na analítica existencial da pre-sença (DASEIN), de Heidegger, para explicitar a existência escatológica do homem entre fé e falta de fé, pode-se também tomar esta dimensão da questão do ser a partir do ponto de vista teológico, na medida em que se traz para a “linguagem da fé” o significado central que possui a linguagem nesse acontecimento do ser. Essa dimensão aparece melhor explicitada no Heidegger tardio. Já na discussão hermenêutica feita por Ott, marcada por um tom altamente especulativo, encontramos uma crítica dirigida a Bultmann, muito próxima à Carta sobre o humanismo de Heidegger. Corresponde à sua própria tese positiva, p. 107: “A linguagem, na qual ‘vem à fala’ a realidade, na qual e com a qual se realiza a reflexão sobre a existência humana, essa linguagem acompanha a existência em todas as épocas de seu acontecer”. Creio que também as ideias hermenêuticas do teólogo Fuchs   e Ebeling têm sua origem no Heidegger tardio, na medida em que priorizam decisivamente o conceito da linguagem. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

Foi nesse ponto que o trabalho da escola fenomenológica mostrou-se fecundo. Hoje, uma vez tendo ganho uma visão de conjunto das diversas fases de desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, parece-me claro que foi ele quem deu o primeiro passo radical nessa direção, ao demonstrar o modo de ser da subjetividade como historicidade absoluta, ou seja, como temporalidade. A obra a que se costuma referir nesse contexto e que marcou época, Ser e tempo de Heidegger, tinha uma intenção bem diferente e muito mais radical: colocar a descoberto a inadequação da concepção ontológica prévia que domina a compreensão moderna da subjetividade e da “consciência”, incluindo ainda sua formulação extrema como fenomenologia da temporalidade e da historicidade. Essa crítica serviu à tarefa positiva de recolocar a questão do “ser”, à qual os gregos deram uma primeira resposta com a metafísica. Mas Ser e tempo não foi compreendido nessa sua intenção autêntica, mas no que Heidegger tinha em comum com Husserl, uma vez que se viu nessa obra a defesa radical da absoluta historicidade da “pre-sença (DASEIN)”, tal como essa procedia já da análise husserliana da fenomenalidade originária da temporalidade (”fluir” = Strömen). Argumentava-se assim, por exemplo: O modo de ser da pre-sença (DASEIN) ganha agora uma determinação ontologicamente positiva. Não é um ser simplesmente dado, mas tem o caráter do porvir. Não há verdades eternas. Verdade é a abertura do ser que se dá juntamente com a historicidade da pre-sença (DASEIN). Aqui poder-se-ia encontrar o fundamento para justificar a crítica ao objetivismo histórico que se dava nas próprias ciências. É, por assim dizer, um historicismo de segunda ordem, que não apenas contrapõe a relatividade histórica de todo conhecimento à reivindicação absoluta de verdade, mas também pensa seu fundamento, a historicidade do sujeito conhecente, e por isso não pode mais considerar a relatividade histórica como uma restrição da verdade. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

É verdade que a historiografía de um Heródoto, e mesmo a de um Plutarco, por exemplo, sabe descrever muito bem as alternâncias da historia humana, como um acervo de exemplos morais, sem refletir pura e simplesmente sobre a historicidade do próprio presente e a historicidade da existência (DASEIN) humana. O paradigma das ordenações cósmicas, onde tudo que se desvirtua da norma e que é contrário à norma acaba desvanecendo-se e sendo reassumido no grande equilíbrio do curso da natureza, pode descrever também o curso das coisas humanas. A melhor ordenação das coisas, o estado ideal, é na ideia uma ordenação que dura tanto quanto o universo, e mesmo que uma realização da mesma não consiga perdurar e acabe dando lugar a uma nova confusão e desordem (o que chamamos de história), isto é consequência de um erro de cálculo da razão que conhece o que é justo. A ordenação justa não tem história. História é história de decadência e, em todo caso, restabelecimento da ordenação justa. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

Isto, e não um puro irracionalismo, é a contribuição feita pela filosofia da existência, a saber, reconhecer a decisão, a escolha ou como se queira chamar esse momento de todo juízo, como uma modalidade de razão. Jaspers   formulou o caráter racional desse saber com a ideia de uma elucidação da existência enxertada nas situações-limite, nas quais a ciência como saber apodíctico deixa o homem sozinho. Para descrever esse fenômeno seguiu-se utilizando o conceito de saber próprio da ciência, e nesse sentido Heidegger foi mais radical quando tomou o conceito de situação-limite como ponto de partida de uma guinada ontológica. Heidegger contrapôs-se ao conceito ontológico do ente simplesmente dado (Vorhanden  ), que forma a base da ciência. Partindo do conceito do “estar à mão” (zuhanden) e do ser-compreendido-em-função-de (Sich-auf  -etwas-Verstehens), próprios do domínio prático-técnico do mundo, ele definiu a estrutura ontológica da “pre-sença (DASEIN)” humana como “compreensão do ser”, quer dizer, recorrendo à verdadeira ação clarificadora da razão. Desse modo, o conceito de hermenêutica adotado por Dilthey, ou seja, a arte de compreender estruturas de sentido, se converteu no paradoxo de uma “hermenêutica da facticidade”. Essa hermenêutica continha uma crítica ontológica aos conceitos tradicionais de norma, especialmente ao conceito de valor (Rickert, Scheler) e ao conceito “platônico” de significado unívoco e ideal (Husserl). O ser em si, liberto da interpretação psicológica para poder ser atribuído à esfera do normativo na lógica e na ética, do ponto de vista puramente ontológico não passava de “ser simplesmente dado”, carente de todo fundamento. Esse ser em si só não se encontrava carente de fundamento na medida em que o jovem Scheler pressupunha uma fundamentação baseada na teologia da criação que poderia servir de base ao conceito de valor, de bem e para o conceito de uma ordem de valores e de bens. VERDADE E METODO II ANEXOS 28

Foi assim que Heidegger transferiu para o centro da própria filosofia a hermenêutica que antes se incluía na problemática dos fundamentos das chamadas ciências do espírito. Do ponto de vista ontológico, o paradoxo de uma hermenêutica da facticidade implicava a crítica aos conceitos de consciência, de objeto, de fato e de essência, de juízo e de valor. Foi a radicalidade desse enfoque que deu um impulso revolucionário à obra Ser e tempo. Mas a forma de reflexão transcendental adotada por Heidegger então, limitando-se a aprofundar os fundamentos transcendentais da filosofia, não se ajustava a sua verdadeira intenção nem pôde cumprir a tarefa de tomar a finitude e historicidade da “pre-sença (DASEIN)” (em lugar da infinitude do que é perene) como fio condutor para elucidar a pergunta pelo sentido do ser. Nessa época e à luz dessa problemática pôde-se entrever pela primeira vez o lugar central que ocupa a questão da linguagem no pensamento de Heidegger. O que ocorre no fenômeno da linguagem ultrapassa a reflexão da filosofia transcendental e supera radicalmente o conceito de uma subjetividade transcendental como base de toda demonstração última (cf. Heidegger). VERDADE E METODO II ANEXOS 28

Isso eu não o sabia desde o princípio. Pouco a pouco cheguei à convicção de que aquele Aristóteles tão próximo, cuja precisão conceitual estava insuspeitavelmente unida à intuição, à experiência e ao contato com a realidade, simplesmente não fora o pioneiro a expressar o novo pensamento. Heidegger seguiu, antes, o princípio do Sofista platônico de fortalecer o adversário, e parecia ser quase um Aristóteles redivivas que o atraía globalmente com toda a força da intuição e a audácia de seus conceitos originais. Mas essa identificação a que nos induziam as interpretações de Heidegger era para mim um enorme desafio. Dei  -me conta de que meus estudos anteriores, que me levaram por muitos terrenos, sobretudo a ciência da literatura e a história da arte, no campo da filosofia antiga não serviam para nada, campo que servira de base para minha dissertação. Comecei assim um novo estudo planificado da filologia clássica (sob a condução de Paul Friedländer), dando preferência, além dos filósofos gregos, sobretudo a Píndaro  , iluminado pelo pensamento de Hölderlin  , à época já acessível… Estudei também retórica, cuja função complementar da filosofia pressenti então, e que me acompanhou até a elaboração de minha hermenêutica filosófica. Devo a esses estudos, definitivamente, minha resistência ao forte apelo de identificar-me com o pensamento de Heidegger. Permanecer próximo dos gregos, embora sabendo de sua heterogeneidade, descobrir em sua diferença verdades que estavam esquecidas e talvez continuassem exercendo sua influência de maneira inadvertida, foi para mim o Leitmotiv mais ou menos expresso de todos os meus estudos. Isso porque a interpretação dos gregos por Heidegger implicava um problema que jamais me abandonou, sobretudo depois de Ser e tempo. Por aquela época, para o objetivo a que Heidegger se propunha, era possível, sem dúvida, opor ao conceito existencial da “pre-sença (DASEIN)” o puro “ser simplesmente dado” como conceito contrário e derivado extremo, sem distinguir entre a ideia grega do ser e o “objeto dos conceitos das ciências naturais”. Mas isso continha uma provocação, e eu me deixei levar por ela e, sob o estímulo de Heidegger, acabei aprofundando-me na física aristotélica e na gênesis da ciência moderna, sobretudo em Galileu  . É possível que publique ainda fragmentos de um comentário incompleto sobre a Física. VERDADE E METODO II ANEXOS 30