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Gadamer (VM): neokantismo

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Nisto há algo que perfaz seu status e que o distingue face ao neokantismo, que, por seu turno, procurava incluir as ciências do espírito na renovação da filosofia crítica. Ele não esquece que a experiência é, nesse terreno, algo fundamentalmente diferente que no âmbito do conhecimento da natureza. No âmbito do conhecimento da natureza trata-se somente de comprovações verificáveis, que têm lugar através da experiência; isto significa, porém, tratar-se do que se desvincula da experiência do indivíduo e constitui um acervo permanente e confiável do conhecimento empírico. Aos olhos do neokantismo, o resultado positivo da filosofia transcendental   tinha sido justamente a análise categorial desse "objeto do conhecimento". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas o que não pôde satisfazer a Dilthey   foi a mera remodelação dessa construção e sua transposição ao terreno do conhecimento histórico , empreendida pelo neokantismo por exemplo, sob a forma da filosofia dos valores. O próprio criticismo neokantiano lhe parecia dogmático, e nisso ele tinha razão, como quando chamou o empirismo inglês de dogmático. Pois o que sustenta a construção do mundo histórico não são fatos extraídos da experiência e em seguida incluídos numa referência valorativa, mas o fato de que a sua base é, antes, a historicidade interna, própria da mesma experiência. Este é um processo vital e histórico, e não tem seu caso-modelo na [226] constatação de fatos, mas na peculiar fusão de recordação e expectativa num todo que chamamos experiência e que se adquire na medida em que se faz experiência. O que prefigura o modo de conhecimento das ciências históricas e, em particular, o sofrimento e a lição que resulta da dolorosa experiência da realidade para aquele que amadurece rumo à compreensão. As ciências históricas tão-somente continuam o pensamento começado na experiência da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Com isso, o conde Yorck eleva à categoria de um princípio metódico o que Husserl  , mais tarde, irá desenvolver amplamente na sua fenomenologia. Compreende-se, dessa maneira, como foi possível que se encontrassem, no geral, dois pensadores tão diversos como Husserl e Dilthey. O retorno a posições anteriores à abstração do neokantismo torna-se comum a ambos. Yorck concorda com ambos, e no entanto, ele oferece ainda mais que isso. Pois não retrocede até a vida apenas com intenção epistemológica, senão que retém também a relação metafísica de vida e autoconsciência, da forma como Hegel   a havia elaborado. E é nisso que Yorck se mostra superior a Husserl e a Dilthey. As reflexões epistemológicas de Dilthey, como vimos, acabaram errando o alvo no momento em que derivou a objetividade da ciência, num raciocínio excessivamente curto, a partir do comportamento vital e sua busca do estável. A Husserl faltou, de modo absoluto, uma determinação mais próxima do que é a vida, embora o núcleo da fenomenologia, a investigação das correlações acompanhem, segundo a coisa em causa, o modelo estrutural da relação vital. O conde Yorck, porém, estende a ponte que sempre fazia falta entre a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Fenomenologia da subjetividade transcendental de Husserl. Não obstante, os fragmentos que nos legou não mostram como pensava evitar a metafisização dialética da vida, que ele mesmo reprova em Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seja como for, é característico o fato de que, para Husserl, essa oposição alcançava o seu ponto menos agudo, aí onde se trata do questionamento transcendental empreendido por Kant  , por seus verdadeiros precedentes e precursores. A auto-reflexão radical, que constituiu seu mais profundo impulso e que ele considerava como a essência da filosofia moderna, permitiu-lhe apelar a Descartes   e aos ingleses e seguir o modelo metódico da crítica kantiana. Sua fenomenologia "constitutiva" caracterizava-se, no entanto, por uma universalidade na colocação de suas tarefas que era estranha a Kant e que tampouco o neokantismo alcançou, o qual deixou inquestionado o "factum da ciência". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A lógica de pergunta e resposta, desenvolvida por Collingwood, põe fim ao tema do problema permanente, que subjaz à relação dos "realistas de Oxford" com os clássicos da filosofia, assim como ao conceito da história dos problemas, desenvolvida pelo neokantismo. A história dos problemas somente seria história de verdade se reconhecesse a identidade do problema como uma abstração vazia e admitisse a mudança dos questionamentos. Pois na realidade não existe um ponto exterior à história, a partir do qual se pudesse pensar a identidade de um problema na mudança de suas tentativas históricas de solução. É verdade que toda compreensão de textos filosóficos requer que se reconheça o que neles se conheceu. Sem este reconhecimento nunca entenderíamos nada. Não obstante, nem por isso nos subtraímos ao condicionamento histórico no qual nos encontramos e a partir do qual compreendemos. O problema que reconhecemos não é, de fato, simplesmente o mesmo, se é que se quer entendê-lo em sua realização que contenha uma autêntica pergunta. Somente nossa miopia histórica nos permite tê-lo como o mesmo. O ponto de vista, a partir de um posicionamento superior, a partir do qual se poderia pensar sua verdadeira identidade, é uma pura ilusão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso confirma também a origem do conceito do "problema". Este não pertence ao âmbito daquelas "refutações bem-intencionadas", nas quais se exige a verdade das coisas, mas sim, ao âmbito da dialética como um instrumento de luta para aturdir ou desconcertar o adversário. Em Aristóteles  , "problema" diz respeito ao gênero de perguntas que se mostram como alternativas abertas, porque tudo fala a favor de ambos os lados, e porque não cremos poder resolvê-las com fundamentos, já que são perguntas demasiadamente grandes. Os problemas não são, pois, verdadeiras perguntas que sejam colocadas e que recebam com isso o prelineamento de sua resposta a partir de sua gênese de sentido, já que são alternativas da opinião   que não podemos mais que deixar de lado, e que por isso somente admitem um tratamento dialético. Este sentido dialético de "problema" não tem seu lugar na filosofia, mas na retórica. Faz parte de seu conceito que não seja possível uma decisão unívoca fundamental. Esta é a razão pela qual, para Kant, o uso do conceito de problema se restringe à dialética da razão pura. Os problemas são "tarefas que surgem por inteiro do seu seio", portanto, produtos da própria razão, cuja completa solução, esta não pode esperar. É significativo que no século XIX, com a quebra da tradição imediata do perguntar filosófico e com o surgimento do historicismo, o conceito de problema ascenda a uma validez universal. E um indício de que já não existe uma relação imediata com as perguntas da filosofia, pautadas na coisa. Desse modo, caracteriza-se o desconcerto da consciência filosófica, face ao historicismo, no fato de que buscou refúgio na abstração do conceito de problema e não viu problema algum na questão de saber como os problemas realmente "são". A história dos problemas, tal qual a cultiva o neokantismo, é um filho bastardo do historicismo. A crítica ao conceito de problema, realizada com os meios de uma lógica de pergunta e resposta, tem que destruir a ilusão de que os problemas estão aí como as estrelas no céu. A reflexão sobre a experiência hermenêutica reconduz os problemas a perguntas que se colocam e que têm seu sentido na sua motivação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Temos que admitir, também, que qualquer acusação de [419] uma terminologia científica, por mais compartilhado que seja o uso da mesma, representa uma fase desse processo. Afinal, o que é, na realidade, um termo? Uma palavra, cujo significado está delimitado univocamente, na medida em que se refere a um conceito definido. Um termo sempre é algo artificial, seja porque a própria palavra é formada artificialmente, seja — o que é mais frequente — porque uma palavra, já encontrada em uso, é recortada da plenitude e largueza de suas relações de significado e fixada em um determinado sentido conceitual. Face à vida do significado das palavras da linguagem falada, sobre o que Wilhelm von Humboldt   mostra, com toda a razão, que lhe é essencial um certo espaço de jogo, o termo é uma palavra rígida, e o uso terminológico de uma palavra é um ato de violência contra a linguagem. Todavia, diferentemente da linguagem puramente simbólica do cálculo lógico, o uso de uma terminologia continua fundido no falar uma língua (ainda que frequentemente sob a forma de um estrangeirismo). Não existe uma fala puramente terminológica e até as expressões artificiais e contrárias à língua (bom exemplo disso são todas as expressões artificiais do universo da publicidade moderna) acabam sempre voltando à vida da linguagem. Uma confirmação indireta disso é o fato de que às vezes uma determinada distinção terminológica não consegue impor-se e se vê constantemente desautorizada pelo uso linguístico normal. Isso quer dizer, com toda evidência, que tem de se submeter às exigências da linguagem. Recorde-se, por exemplo, a impotência da pedantería escolástica com a qual o neokantismo difamou o uso de "transcendental" por "transcendente", ou no uso de "ideologia" no sentido dogmático-positivo, que se impôs, apesar de sua cunhagem originária polêmico-instrumentalista. Por isso, também como intérprete de textos científicos, temos de contar normalmente com essa coexistência de um uso terminológico e um uso corrente de uma palavra. Os intérpretes modernos dos textos antigos se incluam facilmente a menosprezar essa exigência, porque o conceito no uso científico moderno é mais artificial e portanto mais fixo do que na Antiguidade, na qual não se conheciam estrangeirismos e havia menos palavras artificiais. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão   por referência a Kant, e a ideia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito   já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento "mecânico" da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da ideia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo  , o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit  ) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal   do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria   abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache  ), que ainda tem a dignidade da "coisa" ("Ding"). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por consequência, [460] temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

É o que pode ser visto a partir de uma posição contrária e seus limites: a chamada história dos problemas. À luz de nossas reflexões, pode mostrar-se por que esse modo tradicional de considerar a história da filosofia — vigente no neokantismo, ou seja, nos últimos 50-100 anos — é na verdade insuficiente. Aqui, as grandes contribuições da história dos problemas tornam-se inquestionáveis. A sua pressuposição é em si bastante razoável. Se os sistemas doutrinais dos filósofos não se ordenam num curso progressivo do conhecimento, nos moldes da lógica e da matemática, se o vai-e-vem do ponto de vista da filosofia — apesar de Kant — não permite se transformar no avanço sereno de uma ciência, pelo menos os problemas a que estas doutrinas buscam responder, foram sempre os mesmos, podendo sempre de novo ser reconhecidos como tais. Foi assim que a história dos problemas conseguiu banir o perigo de uma relativização histórica de todo pensar filosófico. Talvez ela não quis e nem pode afirmar de maneira estrita que na análise e no trato destes problemas idênticos, a história da filosofia acaba sempre sendo considerada como o desenrolar de um progresso retilíneo. Nicolai Hartmann, a quem agradecemos muito aqui, encontrou uma fórmula mais cautelosa: O verdadeiro sentido da história do problema seria o aguçamento (e a constante afinação) da consciência do problema. Ali estaria o progresso da filosofia. A partir das reflexões que venho propondo, esse método da história do problema acaba denunciando um momento dogmático. Contém pressupostos que assim não podem convencer. Um exemplo pode esclarecer isto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

Para lembrar sumariamente qual o conteúdo que a reflexão filosófica sobre a história considerou no passado como essencial e que problemas assumiu como fundamentais, vou considerar a filosofia da história desenvolvida no sudoeste da Alemanha, ou seja, na escola neokantiana de Heidelberg (se é que se pode chamar de filosofia da história à teoria do conhecimento das ciências históricas) e a filosofia da história de Dilthey (se é que se pode chamar de filosofia da história à dissolução da metafísica em história). A reflexão epistemológica que o neokantismo de Heidelberg, em ultrapassando Kant, expandiu até a ciência historiográfica aborda a seguinte questão: O que distingue um objeto da investigação histórica e o modo de doação que constitui o objeto de investigação das ciências naturais. O que transforma um fato em fato histórico? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Examinemos, por outro lado, Wilhelm Dilthey, o principal adversário dessa filosofia epistemológica da história desenvolvida pelo neokantismo, considerando Dilthey desde as consequências de seu próprio enfoque, que assume uma psicologia como ciência do espírito. Percebemos que ele de fato investiga a estrutura básica do curso histórico e tenta formular, mediante conceitos adequados, a continuidade do contexto histórico disperso no tempo. Em Dilthey o ponto de partida desta empresa é, porém, a psicologia, a autocerteza humana que reside em suas próprias vivências. Essa mesma certeza deverá legitimar também a continuidade do processo histórico. Essa autocerteza da continuidade de um processo encontra sua expressão mais característica e mesmo sua realização literária mais sólida na autobiografia. Aqui encontramos realmente a tentativa, numa visão retrospectiva, de extrair do conjunto das vivências, de sua sucessão e das constelações que presidiram a própria vida, uma espécie de estrutura de sentido: a unidade de um todo histórico-vital. E contudo inegável que a autobiografia só reflete isso que chamamos história em aspectos particulares. O que se compreende na autobiografia sempre se encontra na luz íntima da auto-interpretação do observador. O que se encadeia retrospectivamente numa unidade compreensível é o passado vivido e a história autovivenciada. Mesmo deixando de lado todo o difícil problema do autoconhecimento, não fica claro como dessa continuidade psicológica das vivências pode resultar a continuidade tão diversa e sustentada numa escala tão ampla dos nexos históricos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher  , administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto "cultura", convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da "facticidade" do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da [328] natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxônica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre "o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito" pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua consequência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito "puro", o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis  , acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Nesse sentido, o encontro com o cenário francês significa um verdadeiro desafio para mim. Derrida   assevera que o Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo sentido do ser, Heidegger segue falando, segundo Derrida, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nessa questão, Nietzsche   teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da "vontade de poder". Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das ideias de Heidegger por obra sobretudo de Derrida, e que se apresenta como a radicalização dessas ideias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo Derrida, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como um logos   a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece uma nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa [334] de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de "compreender". Sobretudo ao defrontar-me com os seguidores franceses, tenho plena consciência de que minhas próprias tentativas de "traduzir" Heidegger denunciam meus limites, e mostrando sobretudo até que ponto eu mesmo estou preso à tradição romântica das ciências do espírito e do legado humanista. Mas é exatamente frente a essa tradição do "historicismo" na qual estou imerso que adotei uma postura crítica. Numa carta pessoal já publicada, Leo Strauss já me chamara a atenção de que se Nietzsche constituía o ponto de orientação crítica para Heidegger, Dilthey o era para mim. Talvez a característica determinante da radicalidade de Heidegger tenha sido o fato de que sua própria crítica ao neokantismo fenomenológico de cunho husserliano acabou levando-o a considerar Nietzsche como o ponto extremo do que ele chama história do esquecimento do ser. Mas essa é uma afirmação eminentemente crítica que não se detém aquém de Nietzsche, mas ultrapassa-o. Na corrente nietzschiana francesa, sinto falta de um esclarecimento do que significa a dimensão sedutora do pensamento nietzschiano. Creio que é por causa dessa falta que chegam a pensar que a experiência do ser que Heidegger buscou descobrir por trás da metafísica é superada pela radicalidade do extremismo nietzschiano. Na verdade, a imagem de Nietzsche apresentada por Heidegger mostra melhor a profunda ambiguidade que se apresenta em seu pensamento quando se alcança segui-lo até seu ponto extremo e de ver em ação, justamente ali, o absurdo da metafísica, uma vez que a criação e transmutação de todos os valores acabam convertendo o próprio ser num conceito axiológico a serviço da "vontade de poder". A tentativa de Heidegger de pensar o ser supera essa conversão da metafísica em pensamento axiológico, ou melhor, retrocede para além da própria metafísica, sem conformar-se com o extremismo de sua autodissolução, como acontece em Nietzsche. Esse perguntar retrospectivo não suspende o conceito de logos e suas implicações metafísicas, mas descobre sua unilateralidade e, por fim, sua "superficialidade". Nesse sentido, o fato de o ser não se esgotar em sua automanifestação, mas, com a mesma originariedade com que se mostra, também se retraia e subtraia, isso reveste-se de uma importância decisiva. Essa é uma intuição autêntica defendida primeiramente por Schelling   contra o idealismo lógico de Hegel. Heidegger retoma esta questão, reforçando-a com uma riqueza conceitual da qual Schelling carecia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloquente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano "ou isso ou aquilo" exerceu sobre o lema "tanto isso quanto aquilo", próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl, revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença, apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de [363] "cura" da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Quando chamo de dialética à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma dialética especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard   e Nietzsche. Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, [369] aprendido em Aristóteles. Dialética significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o "lógico" em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de "o passo para trás" foi um distanciamento da dialética. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Vale a pena recordarmos aqui que o monumental volume deixado por Max Weber e editado pela primeira vez em 1921, sob o título Wirtschaft und Gesellschaft  , já havia sido planejado por ele próprio como um "esboço da sociologia compreensiva". As partes [389] mais desenvolvidas dessa sociologia, preparada para o esboço de economia social, tratam particularmente de sociologia da religião, de sociologia do direito e de música, enquanto que, por exemplo, a sociologia do Estado recebeu um desenvolvimento apenas fragmentario. Aqui interessa sobretudo a parte introdutória, composta em 1918-20 e hoje intitulada como "Sociologische Kategorienlehre" (Doutrina sociológica das categorias). Trata-se de um imponente catálogo de conceitos, composto em uma base nominalista extrema, que de resto — diferente do conhecido artigo logos, de 1913 — evita o conceito de valor (evitando com isso uma base de apoio última no neokantismo vindo do sudoeste da Alemanha). Max Weber chama essa sociologia de "compreensiva", porque toma como objeto o sentido a que se refere a ação social. O certo é que o sentido "da intenção subjetiva", no âmbito da vida sociológico-histórica, não pode ser somente o sentido que cada indivíduo atuante tem em mente de fato. Desse modo aparece o tipo puro, enquanto conceito substitutivo hermenêutico-metodológico, como construção conceitual (a "construção ideal  -típica"). Sobre essa base, que Max Weber chama de "racionalista", ergue-se todo o edifício — idealmente "livre de valores" e neutro — , um monumental baluarte-limite da ciência "objetiva", que defende sua univocidade metodológica através da sistemática classificatória. Nas partes de conteúdo mais desenvolvido, essa ciência conduz a uma grandiosa panorâmica sistemática sobre o mundo da experiência histórica. O verdadeiro envolvimento na problemática do historicismo é evitado aqui através de uma ascese metodológica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Desse modo, a hermenêutica filosófica insere-se num movimento filosófico de nosso século que superou a orientação unilateral do factum da ciência, que era evidente e natural tanto para o neokantismo quanto para o positivismo da época. Mas a hermenêutica tem sua relevância para a teoria da ciência, na medida em que com sua reflexão no âmbito das ciências descobre condicionamentos de verdade que não pertencem à lógica da investigação, mas que a precedem. Em certa medida, esse é o caso, embora não exclusivamente, das assim chamadas ciências do espírito, cujo termo inglês equivalente (moral   sciences) mostra que essas ciências tomam por objeto algo que pertence necessariamente ao próprio conhecente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Mesmo no campo da filosofia já não era viável para nós, os jovens, prosseguir simplesmente o que havia sido criado pela geração anterior. O neokantismo que gozava de uma verdadeira vigência mundial, embora contestada, havia desmoronado nas frentes de batalha junto com a orgulhosa consciência cultural da época liberal, com sua fé no progresso da ciência. Nós, na época jovens, buscávamos uma nova orientação em um mundo desorientado. Nessa [480] situação, vimo-nos reduzidos praticamente ao cenário alemão, onde a amargura e o afã de renovação, a pobreza, a desesperança e a vontade inquebrantável de viver da juventude combatiam entre si. Sua expressão cultural foi inequívoca. O expressionismo na vida e na arte passou a ser a força dominante. Com o prosseguimento do predomínio das ciências naturais, chamando a atenção sobretudo com a teoria da relatividade de Einstein, imperava um verdadeiro sentimento catastrofista nos setores ideológicos da literatura e da ciência, sentimento que induzia a recolher-se em si mesmo, propiciando a ruptura com as antigas tradições. A derrocada do idealismo alemão (como dizia um livro muito citado de Paul Ernst  ) era só a variante acadêmica da nova consciência histórica. A outra vertente, muito mais ampla, encontrou sua expressão no êxito sensacional da obra A decadência do Ocidente de Oswald Spengler  , esse romance sobre a história mundial, entre ciência e fantasia, "tão admirado quanto censurado"… e que acabou sendo o fator decisivo da precipitação de um sentimento histórico como uma incitação própria a questionar a fé moderna no progresso e seus orgulhosos ideais de produtividade. Nessa situação surgiu mais um escrito, de segunda categoria, que teve um efeito revolucionário para mim. Foi o livro de Theodor Lessing (que em um período posterior, muito mais confuso, caiu vítima de um atentado nazista), Europa   und Asien, que questionava todo o pensamento produtivo europeu desde a perspectiva da sabedoria do Oriente. Pela primeira vez, vi como se relativizava todo o horizonte que a tradição, a educação, a escola e o entorno haviam formado ao meu redor. Iniciou-se algo que talvez se pudesse chamar de pensamento. Certos escritores importantes me deram alguma orientação. Recordo a grande impressão que, já no primeiro ano de curso de instituto, o escrito de Thomas Mann   Betrachtungen eines Unpolitischen (Considerações de um apolítico) produziu em mim. A contraposição fanática entre arte e vida expressada em Tonio Kroger me afetou, e o tom melancólico das primeiras novelas de Hermam Hesse me encantava. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Quem representou uma primeira introdução na arte de pensar conceitual para mim foi Richard Hönigswald, cuja dialética bem cinzelada defendia com elegância, embora não sem uma certa monotonia, a posição idealista transcendental do neokantismo contra todo psicologismo. Tomei caligráficamente e transcrevi mais tarde seu curso sobre Grundfragen der Erkenntnistheorie   (Questões fundamentais sobre a teoria do conhecimento). Mais tarde remeti os dois cadernos ao Hönigswald-Archiv, criado por Hans Wagner. Era uma boa introdução à filosofia transcendental. Desse modo, cheguei a Marburgo em 1919 com um certo preparo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Eu não podia negar sobretudo que a experiência da arte afetava de certo modo a filosofia. Que a arte é um verdadeiro órgão da filosofia ou quem sabe até seu interlocutor-mor era uma verdade que havia preocupado a filosofia do romantismo alemão até o final da era idealista. A filosofia universitária da época pós-hegeliana teve que pagar pelo desconhecimento dessa verdade com sua própria desolação. Isso pôde e pode ser aplicado tanto ao neokantismo quanto ao novo positivismo até hoje. Nosso legado histórico convidava-nos a recuperar essa verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Também na escola de Marburgo, abriu caminho esse novo sentimento da época. Era impressionante ver o entusiasmo sensível com que o astuto metodólogo da escola de Marburgo, Paul Natorp  , se lançou em idade avançada para a inefabilidade mística do inconcreto e, além de Platão e Dostoievski, conjurou a Beethoven e a Rabindranath Tagore, à tradição mística de Plotino   e do Mestre Eckhart   — até os Quakers. Não menos impressionante era a energia selvagem com que Max Scheler   — como conferencista convidado para Marburgo — demonstrou seu penetrante talento fenomenológico em campos sempre novos e inesperados. A isso acrescenta-se a fria nitidez com que Nicolai Hartmann tentou apagar seu próprio passado idealista com uma argumentação crítica; um pensador e mestre de uma tenacidade impressionante. Quando eu escrevi [483] minha dissertação sobre Platão e me doutorei em 1922, muito jovem ainda, estava sob a influência dominante de Nicolai Hartmann, que enfrentou o sistematismo idealista de Natorp. O que havia de vivo em nós era a esperança de uma reorientação filosófica ligada sobretudo à obscura palavra mágica "fenomenologia". Mas depois que o próprio Husserl, que com todo seu gênio analítico e sua inegável paciência descritiva buscava sempre uma evidência última, não encontrou um melhor apoio filosófico do que o do idealismo transcendental de cunho neokantiano, donde poderia surgir algum amparo intelectual? Foi Heidegger quem o trouxe. Alguns aprenderam dele o que foi Marx  , outros o que foi Freud  , e todos nós, definitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podíamos "repetir" a filosofia dos gregos, uma vez que a história da filosofia escrita por Hegel e reescrita pela "historia dos problemas" do neokantismo havia perdido seu fundamentum inconcussum: a autoconsciência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

É verdade que também o neokantismo, com sua "história dos problemas", tentara descobrir as próprias perguntas. Mas a pretensão de que esses problemas supratemporais, "eternos", se reiterassem em contextos sistemáticos sempre novos era incomprovada, e na verdade esses problemas "idênticos" se extraíam ingenuamente do material de construção da filosofia idealista e neokantiana. Contra essa suposta supratemporalidade, a objeção do ceticismo histórico-relativista era óbvia e irrefutável. Mas quando aprendi com Heidegger a conduzir o pensamento histórico para a recuperação dos questionamentos da tradição, que as velhas questões tornavam-se tão compreensíveis e vivas que se convertiam em verdadeiras perguntas. O que estou descrevendo é a experiência hermenêutica fundamental, como a caracterizaria hoje. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

No mais, a constante atividade docente foi dando frutos. Meu velho amigo Karl Löwith   retornou do estrangeiro e lecionava comigo em Heidelberg, criando uma tensão muito sadia entre nós. Durante anos, mantive um fecundo intercâmbio de ideias com Jürgen Habermas, a quem havíamos convidado como jovem professor extraordinário, depois de termos tomado conhecimento de seu embate com Horkheimer e Adorno. Quem fora capaz de desunir, ainda que apenas parcialmente, a Max e Teddy em sua fraternidade espiritual deveria ter algo a dizer. O manuscrito que apresentou confirmou de fato o talento do jovem investigador que já me havia surpreendido tempos atrás. Mas eu também tive discípulos dedicados apaixonadamente à filosofia, dos quais só quero mencionar aqui alguns que atualmente atuam como professores na especialidade acadêmica de filosofia. De Frankfurt, eu trouxe um bom grupo de estudantes, entre os quais Dieter Henrich, que fora influenciado inicialmente pelo neokantismo marburguense de Ebbinghaus e Klaus Reich. Em Heidelberg agregaram-se muitos outros. Menciono apenas os que trabalham diretamente na pesquisa ou como professores no campo da filosofia: Wolfgang Bartuschat, Rüdiger Bubner, Theo Ebert, Heinz Kimmerle, Wolfgang Künne, Ruprecht Pflaumer, J.H. Trede, Wolfgang Wieland. Mais tarde veio mais um grupo de Frankfurt, entre os quais, Wolfgang Cramer — à margem da famosa Escola de Frankfurt — exerceu uma grande influência; entre eles Konrad Cramer, Friedrich Fulda e Rainer Wiehl. Foram chegando também estrangeiros, integrando o círculo de meus alunos, especialmente da Itália, Valério Verra e G. Vattimo  , da Espanha E. Lledó e um notável número de americanos. Voltei a encontrar muitos desses em minhas viagens à América durante os últimos anos, ocupando cargos e postos de responsabilidade. Para mim representa uma satisfação muito grande o fato de alguns dos meus discípulos terem se destacado em outras especialidades, o que deve ser creditado à ideia da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin  , enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua "própria" linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de Aristóteles para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e [507] da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em "formar" conceitos arbitrários e "defini-los" com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.