Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Derrida (2008:147-148) – A Lei e o Crime são próprios do homem

quarta-feira 14 de fevereiro de 2024

Casanova

Lacan   começa lembrando alguma coisa muito clássica e tradicional, por mais que isso adquira um ar de novidade sob a pena de Lacan. O quê? Lacan começa declarando que o próprio do homem, a origem do homem, o lugar no qual a humanidade começa é a Lei, a relação com a Lei (com um L maiúsculo). Dito de outro modo, aquilo que separa o Homem da Besta é a Lei, a experiência da Lei, o Superego, e, então, a possibilidade da transgressão no Crime. No fundo, diferentemente da Besta, o Homem pode obedecer ou não obedecer à Lei. Somente ele tem essa liberdade. Somente ele pode, então, se tornar criminoso. A besta pode matar e fazer o que nos parece mal ou mesquinho, mas ela não será considerada como uma criminosa que mereceria ser incriminada, não se teria como fazê-la comparecer diante da lei (ainda que isso tenha acontecido, e é preciso uma vez mais lembrá-lo, mas deixemos isso de lado). Lacan se coloca aqui do lado de certo bom senso, segundo o qual a besta, não conhecendo a Lei, não é livre, nem responsável nem culpável, ela não teria como transgredir uma Lei, que ela não conhece, ela não teria como ser considerada como criminosa. Uma besta não comete jamais um crime e não tem jamais como infringir a lei. E isso que faz com que o crime, enquanto transgressão da Lei, seja o próprio do homem. Com a Lei e o Crime começa o homem. Eu cito:

“Compreende-se que, tendo recebido em psicologia tal aporte do social, o médico Freud   tenha se visto tentado a fazer alguns retornos a isso, e que, com Totem e tabu de 1912, ele tenha querido demonstrar como está no crime primordial a origem da Lei universal. Independentemente de algumas críticas em relação ao método a que seu trabalho esteve sujeito, o importante é que ele reconheceu que, com a Lei e o Crime, começava o homem, depois que o clínico lhe tinha mostrado que suas significações se mantinham até a forma do indivíduo não apenas em seu valor para o outro, mas em sua ereção para ele mesmo.
 
Assim, a concepção do superego vem à luz [,..]” [1].

Naturalmente, Lacan tendo assim reconhecido que a Lei e o Crime são próprios do homem, o começo do homem, e tendo reconhecido [2] ao mesmo tempo a emergência de um super-ego   (a besta é uma besta não apenas pelo fato de que ela não pode dizer “mim mesmo” ou “eu”, tal como pensaram Descartes   e tantos outros e tal como Kant   literalmente escreveu desde as primeiras linhas de sua Antropologia de um ponto de vista pragmático), mas sobretudo, especifica em suma aqui Lacan, o que falta à besta não é apenas um “mim mesmo”, é um “superego”. E se Lacan justapõe, coloca em contiguidade indissociável a Lei e o Crime, colocando em letra maiúscula os dois nomes (“com a Lei e o Crime começa o homem”), isso acontece porque o Crime não é apenas cometido contra a lei como transgressão da lei, mas porque a Lei também pode estar na origem do crime, a lei pode ser criminosa, o superego pode ser criminoso. E é essa possibilidade estrutural que nós não devemos esquecer, quanto ao próprio do homem, e para aquilo que nós vamos continuar a seguir na marcha de Lacan. Em todo caso, que o Superego, que é o guardião da lei, que se acha do lado da lei, pode ser também um delinquente, que pode haver aí um delito e um crime do Superego mesmo, isso é algo que Lacan também diz claramente abaixo na mesma página.

“Esses doentes e esses gestos, a significação da autopunição os cobre a todos. Será preciso, então, estender essa significação a todos os criminosos, na medida em que, segundo a fórmula que exprime o humor açucarado do legislador, a ninguém se pode atribuir a ignorância da lei, cada um pode prever o incidente e deveria, então, ser considerado como capaz de investigar os golpes?
 
Essa irônica observação deve, ao nos obrigar a definir aquilo que a psicanálise reconhece como crimes ou delitos que emanam do superego, nos permitir formular uma crítica da envergadura dessa noção em antropologia”.

original

Lacan commence par rappeler quelque chose de fort classique et traditionnel, quelque air de nouveauté que cela se donne sous la plume de Lacan. Quoi ? Lacan commence par déclarer que le propre de l’homme, l’origine de l’homme, le lieu où l’humanité commence, c’est la Loi, le rapport à la Loi (avec un grand L). Autrement dit, ce qui sépare l’Homme de la Bête, c’est la Loi, l’expérience de la Loi, le Surmoi, et donc la possibilité de la transgresser dans le Crime. Au fond, à la différence de la Bête, l’Homme peut obéir ou ne pas obéir à la Loi. Seul il a cette liberté. Seul il peut donc devenir criminel. La bête peut tuer et faire ce qui nous paraît mal ou méchant, mais elle ne sera pas tenue pour criminelle a incriminer, on ne saurait la faire comparaître devant la loi (encore que cela soit arrivé, et encore faut-il le rappeler, mais laissons). Lacan se tient ici du côté d’un certain bon sens, selon lequel la bête, ne connaissant pas la Loi, n’est pas libre, ni responsable ni coupable, elle ne saurait transgresser une Loi quelle ne connaît pas, elle ne saurait être tenue pour criminelle. Une bête ne commet jamais de crime et n’est jamais en infraction à la loi. Ce qui fait que le Crime, comme transgression de la Loi, serait le propre de l’homme. Avec la Loi et le Crime commence l’homme. Je cite :

On conçoit qu’ayant reçu en psychologie   un tel apport du social, le médecin Freud ait été tenté de lui en faire quelques retours, et qu’avec Totem et Tabou en 1912, il ait voulu démontrer dans le crime primordial l’origine de la Loi universelle. À quelque critique de méthode que soit sujet ce travail, l’important était qu’il reconnût qu’avec la Loi et le Crime commençait l’homme, après que le clinicien [147] eut montré que leurs significations soutenaient jusqu’à la forme de l’individu non seulement dans sa valeur pour l’autre, mais dans son érection pour lui-même.
 
Ainsi la conception du surmoi vint-elle au jour […] [3]

Naturellement, Lacan ayant ainsi reconnu que la Loi et le Crime sont le propre de l’homme, le commencement de l’homme, et reconnue [4] du même coup l’émergence d’un sur-moi (la bête est une bête non seulement en ce quelle ne peut pas dire « moi » ou « je », comme Descartes et tant d’autres l’ont pensé et comme Kant l’a littéralement écrit dès les premières lignes de son. Anthropologie   d’un point de vue pragmatique) mais surtout, précise en somme ici Lacan, ce qui manque à la bête, ce n’est pas seulement un « moi », c’est un « surmoi ». Et si Lacan juxtapose, met en contiguïté indissociable la Loi et le Crime, en majusculant les deux noms (« avec la Loi et le Crime commençait l’homme »), c’est que le Crime n’est pas seulement commis contre la loi en transgression de la loi, mais que la Loi peut aussi être à l’origine du crime, la loi peut être criminelle, le surmoi peut être criminel. Et c’est cette possibilité structurelle que nous ne devons pas oublier, quant au propre de l’homme, et pour ce que nous allons continuer à suivre dans la démarche de Lacan. En tout cas, que le Surmoi, qui est le gardien de la loi, du côté de la loi, puisse être aussi un délinquant, qu’il puisse y avoir délit et crime du Surmoi lui-même, Lacan le dit aussi clairement au bas de la même page.

Ces maux et ces gestes, la signification de l’auto-punition les couvre tous. Va-t-il donc falloir l’étendre à tous les criminels, dans la mesure où, selon la formule où s’exprime l’humour glacé du législateur, nul n’étant censé ignorer la loi, chacun peut en prévoir l’incidence et devrait donc être tenu pour en rechercher les coups ?

[DERRIDA  , Jacques. Séminaire La bête et le souverain. Paris: Galilée, 2008]

[DERRIDA, Jacques. A besta e o soberano I: seminário (2001-2002). Tr. Marco Casanova  . Rio de Janeiro: Via Verita, 2016]


Ver online : Jacques Derrida


[1Jacques Lacan, “Introdução teórica…”, em: Escritos, op. cit., p. 130.

[2É o que se encontra no texto datilografado. Talvez se precisasse ler a frase assim: “Naturalmente, Lacan tendo reconhecido que a Lei e o Crime são o próprio do homem, o começo do homem, tenha reconhecido ao mesmo tempo a emergência de um super-ego […]”. (N. E.)

[3J. Lacan, « Introduction théorique aux fonctions de la psychanalyse en criminologie », dans Écrits, p. 130.

[4Tel dans le tapuscrit. Peut-être faudrait-il lire la phrase ainsi : « Naturellement, Lacan ayant ainsi reconnu que la Loi et le Crime sont le propre de l’homme, le commencement de l’homme, est reconnue du même coup l’émergence d’un sur-moi […]. » (NdE)