Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Ricoeur (1991:71-72) – corpo próprio

terça-feira 6 de fevereiro de 2024

Lucy Moreira Cesar

Não se pode, na minha opinião  , a não ser saindo da filosofia da linguagem e interrogando-se sobre a espécie de ser que pode assim prestar-se a uma dupla identificação como pessoa objetiva e como sujeito que reflete. O fenômeno ancoragem sugere por ele próprio a direção na qual precisaria engajar-se; é a mesma que a análise precedente já indicou, a saber, a significação absolutamente irredutível do corpo próprio. Lembramos que a possibilidade de atribuir à mesma coisa predicados físicos e psíquicos nos parecera fundada numa estrutura dupla do corpo próprio, a saber, seu estatuto de realidade física observável e sua dependência ao que Husserl   chama na quinta Meditação cartesiana, a “esfera do próprio” ou do “meu”. O mesmo alívio duplo de corpo próprio funda a estrutura mista do “eu-um tal”; como corpo entre os corpos, ele constitui um fragmento da experiência do mundo; como meu, ele divide o status do “eu” compreendido como ponto de referência limite do mundo; em outras palavras, o corpo é ao mesmo tempo um fato do mundo e o órgão de um sujeito que não pertence aos objetos dos quais ele fala. Essa estranha constituição do corpo próprio estende-se do sujeito da enunciação ao próprio ato da enunciação: como voz impulsionada para fora pelo sopro e articulada pela fonação e toda a gesticulação, a enunciação divide a sorte dos corpos materiais. Expressão do sentido visado por um sujeito falante, a voz é o veículo do ato de enunciação enquanto remete ao “eu”, centro de perspectiva insubstituível sobre o mundo.

[RICOEUR  , Paul. O si-mesmo como um outro. Tr. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991, p. 71-72]

Original

On ne le peut, à mon avis, qu’en sortant de la philosophie   du langage et en s’interrogeant sur la sorte d’être qui peut ainsi se prêter à une double identification en tant que personne objective et que sujet réfléchissant. Le phénomène d’ancrage suggère de lui-même la direction dans laquelle il faudrait s’engager ; c’est celle même que l’analyse précédente a déjà indiquée, à savoir la signification absolument irréductible du corps propre. On se souvient que la possibilité d’attribuer à la même chose des prédicats physiques et psychiques nous avait paru fondée dans une structure double du corps propre, à savoir son statut de réalité physique observable et son appartenance à ce que Husserl appelle, dans la cinquième Méditation cartésienne, la « sphère du propre » ou du « mien ». La même allégeance double de corps propre fonde la structure mixte du « je-un tel » ; en tant que corps parmi les corps, il constitue un fragment de l’expérience du monde ; en tant que mien, il partage le statut du « je » entendu comme point de référence limite du monde ; autrement dit, le corps est à la fois un fait du monde et l’organe d’un sujet qui n’appartient pas aux objets dont il parle. Cette étrange constitution du corps propre s’étend du sujet de l’énonciation à l’acte même d’énonciation : en tant que voix poussée au-dehors par le souffle et articulée par la phonation et toute la gestuelle, l’énonciation partage le sort des corps matériels. En tant qu’expression du sens visé par un sujet parlant, la voix est le véhicule de l’acte d’énonciation en tant qu’il renvoie au « je », centre de perspective insubstituable sur le monde.


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