Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Derrida (2008:154-155) – O “irreconhecível” é o começo da ética, da Lei, e não do humano

quarta-feira 14 de fevereiro de 2024

Casanova

O imenso risco provém daquilo que, contudo, se mantém um fraternalismo do “semelhante”. Esse risco é duplo (e ele seria válido também para o discurso de Lévinas, digamos en passant): por um lado, esse fraternalismo nos liberta de toda obrigação ética, de todo dever de não ser criminoso e cruel, justamente com vistas a todo vivente que não é meu semelhante ou não é reconhecido como meu semelhante, porque ele é outro ou diverso do homem. Nessa lógica, não se é jamais cruel em relação ao que se chama de animal ou de um vivente não humano. De antemão, se é inocentado de todo crime em relação a todo vivente não humano. E quanto a especificar,por outro lado, como o faz Lacan  : “É a um semelhante que ela (essa crueldade) visa, mesmo em um ser de outra espécie”, isso não resolve nem muda nada. É sempre ao meu semelhante que eu viso em um ser de outra espécie. Resta, então, que eu não posso cair sob a suspeita de crueldade em relação a um animal que eu faço sofrer a pior das violências, eu não sou jamais cruel com vistas ao animal como tal. Mesmo se eu puder ser acusado de ser criminoso em relação a um animal enquanto homem, enquanto aquele a que eu viso através do animal, ou através de sua figura, meu próximo ou meu semelhante. Ainda que se tratasse de um estrangeiro como o meu próximo. Se eu sou julgado ou se eu me julgo cruel ao matar uma besta ou milhões de bestas, tal como acontece todos os dias, diretamente ou não, é somente na medida em que eu teria matado “visando”, consciente ou inconscientemente, meus semelhantes, os homens, a figura do homem através das bestas, esse “através” podendo colocar em jogo todos os tipos de lógicas ou de retóricas inconscientes. É sempre o homem, meu semelhante, o mesmo que eu, eu mesmo em suma, que eu quero fazer sofrer, matar, de modo culpado, criminoso, cruel, incriminável.

Ora, não temos o dever senão em relação ao homem e ao outro como outro homem? E, sobretudo, o que responder a todos esses que não reconhecem em certos homens seus semelhantes? Essa questão não é abstrata, como os senhores sabem. Todas as violências, as mais cruéis e as mais humanas, foram desencadeadas contra os viventes, homens ou bestas, homens em particular, [165] que não tinham reconhecida a sua dignidade como semelhantes (e não se trata apenas de uma questão de racismo profundo, de classe social etc., mas às vezes do indivíduo singular como tal). Um princípio de ética, ou mais radicalmente de justiça, no sentido mais difícil que eu tentei opor ao ou distinguir do direito, talvez seja a obrigação que engaja minha responsabilidade junto ao mais dessemelhante, ao absolutamente outro, justamente, ao monstruosamente outro, ao outro passível de desconhecimento. O “irreconhecível”, eu diria de modo algo elíptico, é o começo da ética, da Lei, e não do humano. Na medida em que algo pode ser reconhecido, em que há algo semelhante, a ética adormece. Ela dorme um sono dogmático. Na medida em que ela permanece humana, entre homens, a ética permanece dogmática, narcisista e não pensa ainda. Nem mesmo o homem do qual ela tanto fala.

O “irreconhecível” é o despertar. É aquilo que desperta, é a experiência da própria vigília.

O “irreconhecível”, portanto, o que é dessemelhante. Se nós confiamos e nos ligamos a uma Lei que não nos relaciona senão com o semelhante e não define a transgressão criminal ou cruel senão naquilo a que ela visa de semelhante, então isso quer dizer, correlativamente, que não temos obrigação senão em relação ao semelhante, seja esse o estrangeiro como semelhante e “meu próximo”, o que, de próximo em próximo, como sabemos, intensifica de fato nossas obrigações com vistas ao mais semelhante e ao mais próximo. Mais obrigação em relação aos homens do que aos animais, mais obrigação em face dos homens próximos e semelhantes do que em relação aos menos próximos e menos semelhantes (na ordem das probabilidades e das semelhanças ou similitudes supostas ou fantasiadas: família, nação, raça, cultura, religião). Dir-se-á que é um fato (mas um fato pode fundar e justificar uma ética?): é um fato que eu sinto, no interior da ordem, mais obrigações em relação àqueles que compartilham minha vida de perto, os meus, minha família, os franceses, os europeus, aqueles que falam minha língua ou compartilham a minha cultura etc. Mas esse fato jamais teria fundado um direito, uma ética ou uma política.

original

L’immense risque demeure de ce qui reste néanmoins un fraternalisme du « semblable ». Ce risque est double (et il vaudrait aussi pour le discours de Lévinas, soit dit en passant) : d’une part, ce fraternalisme nous libère de toute obligation éthique, de tout devoir de ne pas être criminel et cruel, justement, à l’égard de tout vivant qui n’est pas mon semblable ou n’est pas reconnu comme mon semblable, parce qu’il est autre ou autre que l’homme. Dans cette logique, on n’est jamais cruel envers ce qu’on appelle un animal, ou un vivant non humain. On est d’avance innocenté de tout crime à l’endroit de tout vivant non humain. Et quant à préciser, d’autre part, comme le fait Lacan : « C’est un semblable quelle [cette cruauté] vise, même dans un être d’une autre espèce », cela n’arrange ni ne change rien. C’est toujours mon semblable que je vise dans un être d’une autre espèce. Il reste donc que je ne peux être soupçonné de cruauté à l’égard d’un animal que je fais souffrir de la pire violence, je ne suis jamais cruel à l’égard de l’animal comme tel. Même si je peux être accusé d’être criminel à l’égard d’un animal en tant qu’homme, en tant que je vise à travers lui, ou à travers sa figure, mon prochain ou mon semblable. Fût-ce un étranger comme mon prochain. Si je suis jugé ou si je me juge cruel en tuant une bête ou des millions de bêtes, comme cela arrive tous les jours, directement ou non, c’est seulement dans la mesure où j’aurais tué en « visant », consciemment ou inconsciemment, des semblables, des hommes, des figures de l’homme à travers ces bêtes, cet « à travers » pouvant mettre en jeu toutes sortes de logiques ou de rhétoriques inconscientes. C’est toujours l’homme, mon semblable, le même que moi, moi-même en somme, que je fais souffrir, tue, de façon coupable, criminelle, cruelle, incriminable.

Or n’a-t-on de devoir qu’à l’endroit de l’homme et de l’autre comme autre homme ? Et surtout, que répondre à tous ceux qui ne reconnaissent pas dans certains hommes leurs semblables? Cette question n’est pas abstraite, comme vous savez. Toutes les violences, et les plus cruelles, et les plus humaines, se sont déchaînées contre des vivants, bêtes ou hommes, et hommes en particulier, [154] qui justement ne se voyaient pas reconnaître la dignité de semblables (et ce n’est pas seulement une question de racisme profond, de classe sociale, etc., mais parfois d’individu singulier comme tel). Un principe d’éthique ou plus radicalement de justice, au sens le plus difficile que j’ai essayé d’opposer au ou de distinguer du droit, c’est peut-être l’obligation qui engage ma responsabilité auprès du plus dissemblable, du tout autre, justement, du monstrueusement autre, de l’autre méconnaissable. Le « méconnaissable », dirais-je de façon un peu elliptique, c’est le commencement de l’éthique, de la Loi, et non de l’humain. Tant qu’il y a du reconnaissable, et du semblable, l’éthique sommeille. Elle dort d’un sommeil dogmatique. Tant quelle reste humaine, entre hommes, l’éthique reste dogmatique, narcissique et ne pense pas encore. Pas même l’homme dont elle parle tant.

Le « méconnaissable », c’est le réveil. C’est ce qui réveille, c’est l’expérience de la veille même.

Le « méconnaissable », donc le dissemblable. Si on se fie et se lie à une Loi qui ne nous rapporte qu’au semblable et ne définit la transgression criminelle ou cruelle que dans ce quelle vise de semblable, cela veut dire, corrélativement, qu’on n’a d’obligation qu’à l’endroit du semblable, fût-ce de l’étranger comme semblable et « mon prochain », ce qui, de proche en proche, comme nous le savons, intensifie en fait nos obligations à l’égard du plus semblable et du plus proche. Plus d’obligation à l’endroit des hommes que des animaux, plus d’obligation à l’endroit des hommes proches et semblables qu’à l’endroit des moins proches et des moins semblables (dans l’ordre des probabilités et des ressemblances ou des similitudes supposées ou phantasmées : famille, nation, race, culture, religion  ). On dira que c’est un fait (mais un fait peut-il fonder et justifier une éthique ?) : c’est un fait que je me sens, dans l’ordre, plus d’obligations à l’endroit de ceux qui partagent ma vie de près, les miens, ma famille, les Français, les Européens, ceux qui parlent ma langue ou partagent ma culture, etc. Mais jamais ce fait n’aura fondé un droit, une éthique ou une politique.

[DERRIDA  , Jacques. Séminaire La bête et le souverain. Paris: Galilée, 2008]

[DERRIDA, Jacques. A besta e o soberano I: seminário (2001-2002). Tr. Marco Casanova  . Rio de Janeiro: Via Verita, 2016]


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