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Arendt (LM): mundo das aparências

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

É evidente que propor tais questões apresenta certas dificuldades. À primeira vista, elas parecem pertencer ao que se costuma chamar “filosofia” ou “metafísica”, dois termos e dois campos de investigação que, como todos sabemos, caíram em descrédito. Se isso se devesse meramente aos ataques do positivismo moderno e do neopositivismo, talvez não precisássemos nos preocupar. A afirmação de Carnap segundo a qual a metafísica deveria ser vista como poesia certamente choca-se com as pretensões habituais dos metafísicos; mas essas últimas, assim como a própria avaliação de Carnap, podem estar baseadas em uma subestimação da poesia. Heidegger, que Carnap escolheu como alvo privilegiado, retorquiu afirmando que a filosofia e a poesia estavam de fato intimamente relacionadas; não eram idênticas, mas brotavam da mesma fonte — o pensamento. E Aristóteles  , que até agora ninguém acusou de escrever “mera” poesia, tinha a mesma opinião  : poesia e filosofia, de alguma forma, estão relacionadas. O famoso aforismo de Wittgenstein   “sobre o que não podemos falar devemos nos calar”, que argumenta pelo lado oposto, deveria aplicar-se, se levado a sério, não apenas ao que se encontra além da experiência sensorial, mas ainda mais aos próprios objetos dos sentidos. Nada do que vemos, ouvimos ou tocamos pode ser expresso em palavras que se equiparem ao que é dado aos sentidos. Hegel   estava certo quando indicou que “o Isto dos sentidos […] não pode ser alcançado pela linguagem”. [The Phenomenology of Mind, trad. J. B. Baillie (1910), Nova York, 1964, “Sense Certainty”, p. 159.] Não foi precisamente a descoberta de uma discrepância entre as palavras, o medium no qual pensamos, e o MUNDO DAS APARÊNCIAS, o medium no qual vivemos, que conduziu, pela primeira vez, à filosofia e à metafísica? Com a ressalva de que no começo era o pensamento, na forma de logos   ou de noesis  , que tinha a capacidade de alcançar a verdade ou o verdadeiro ser, ao passo que no final a ênfase havia se deslocado para o que é dado à percepção e para os instrumentos pelos quais podemos estender e aguçar nossos sentidos corporais. Parece bastante natural que o primeiro se volte contra as aparências, e o último, contra o pensamento. [Arendt  , Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

O que chegou a um fim foi a distinção básica entre o sensorial e o suprassensorial, juntamente com a noção pelo menos tão antiga quanto Parmênides   de que o que quer que não seja dado aos sentidos — Deus, ou o Ser, ou os Primeiros Princípios e Causas (archai  ), ou as Ideias — é mais real, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que aparece, que está não apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. O que está “morto” não é apenas a localização de tais “verdades eternas”, mas também a própria distinção. Enquanto isso, os poucos defensores da metafísica, em um tom cada vez mais estridente, alertaram-nos sobre o perigo do niilismo inerente a essa afirmação. Embora disponham de um importante argumento a seu favor, eles próprios raramente o invocam: de fato, é verdade que uma vez descartado o domínio suprassensível, fica também aniquilado o seu oposto, o MUNDO DAS APARÊNCIAS tal como foi compreendido ao longo de tantos séculos. O sensível como é ainda compreendido pelos positivistas não pode sobreviver à morte do suprassensível. Ninguém sabia disso melhor do que Nietzsche  , que, com sua descrição poética e metafórica do assassinato de Deus [The Gay Science, livro III, n° 125, “The madman”], tanta confusão produziu sobre esse assunto. Numa importante passagem de O crepúsculo dos ídolos, ele esclarece o que a palavra “Deus” significava na história anterior. Era meramente um símbolo para o domínio suprassensorial tal como foi compreendido pela metafísica; agora, em vez de “Deus”, utiliza a expressão “mundo verdadeiro” e diz: “Abolimos o mundo verdadeiro. O que permaneceu? Talvez o MUNDO DAS APARÊNCIAS? Mas não! Junto com o mundo verdadeiro, abolimos também o MUNDO DAS APARÊNCIAS.” [“How the ‘True World’ finally became a fable”, 6] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

De Parmênides até o fim da filosofia, todos os pensadores concordaram em que, para lidar com esses assuntos, o homem precisa separar seu espírito dos seus sentidos, isolando-o tanto do mundo tal como é dado por esses sentidos quanto das sensações — ou paixões — despertadas por objetos sensíveis. O filósofo, à medida que é um filósofo e não (o que naturalmente ele também é) “um homem como você e eu”, retira-se do MUNDO DAS APARÊNCIAS; a região em que se move tem sido descrita, desde o início da filosofia, como o mundo dos poucos. Essa antiga distinção entre os muitos e os “pensadores profissionais” especializados na atividade supostamente mais elevada a que os seres humanos poderiam se dedicar — o filósofo de Platão   “será chamado o amigo dos deuses e, se alguma vez é dado ao homem tornar-se imortal, ninguém mais do que ele o consegue” [Symposium, 212a] — perdeu qualquer cabimento; e essa é a segunda vantagem de nossa atual situação. Se, como sugeri antes, a habilidade de distinguir o certo do errado estiver relacionada com a habilidade de pensar, então deveríamos “exigir” de toda pessoa sã o exercício do pensamento, não importando quão erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida essa pessoa seja. Kant   — nesse ponto praticamente sozinho entre os filósofos — aborrecia-se com a opinião corrente de que a filosofia é apenas para uns poucos, precisamente pelas implicações morais dessa ideia, e uma vez observou que “a estupidez é fruto de um coração perverso”. [Kant’s handschriftlicher Nachlass, vol. VI, Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 6900] Isso não é verdade: ausência de pensamento não é estupidez; ela pode ser comum em pessoas muito inteligentes, e a causa disso não é um coração perverso; pode ser justamente o oposto: é mais provável que a perversidade seja provocada pela ausência de pensamento. Seja como for, o assunto não pode mais ser deixado aos “especialistas”, como se o pensamento, à maneira da alta matemática, fosse monopólio de uma disciplina especializada. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

Podemos encontrar uma primeira pista relacionada com esse assunto recorrendo à velha dicotomia metafísica entre (verdadeiro) Ser e (mera) Aparência, pois ela também na verdade se fundamenta na primazia, ou pelo menos na prioridade da aparência. Para descobrir o que realmente é, o filósofo deve deixar o MUNDO DAS APARÊNCIAS entre as quais ele natural e originalmente se encontra em casa — como fez Parmênides quando foi transportado, além dos umbrais da noite e do dia, para a estrada divina, “muito distante dos usuais caminhos humanos” [Frag. 1], e como também fez Platão na alegoria da Caverna [Republic, VII, 514a-521b. The Collected Dialogues of Plato, Edith Hamilton e Huntington Cairns (ed.), “Republic”, trad. de Paul Shorey, Nova York, 1961, algumas vezes próxima à de Francis MacDonald Cornford, The Republic of Plato, Nova York, Londres, 1941.]. O MUNDO DAS APARÊNCIAS é anterior a qualquer região que o filósofo possa escolher como sua “verdadeira” morada, mas que, no entanto, não é o local onde ele nasceu. O que sugeriu ao filósofo, ou seja, ao espírito humano, a noção de que deve haver algo que não seja mera aparência sempre foi a qualidade que o mundo tem de aparecer. Nas palavras de Kant: “Nehmen   wir die Welt   als Erscheinung   so beweiset sie gerade zu das Dasein   von Etwas das nicht   Erscheinung ist.” (“Se olharmos para o mundo como aparência, ele demonstra a existência de algo que não é aparência.”) [Kant, Opus Postumum, ed. Erich Adickes, Berlim, 1920, p. 44. A data provável desta observação é 1788.] Em outras palavras, quando o filósofo se retira do mundo dado aos nossos sentidos e faz meia-volta (a periagoge de Platão) em direção à vida do espírito, ele se orienta por este em busca de algo que lhe seria revelado e que explicaria sua verdade subjacente. Essa verdade — a-letheia, o que é revelado (Heidegger) — pode ser concebida unicamente como outra “aparência”, outro fenômeno originalmente oculto, mas de ordem supostamente mais elevada, o que indica a predominância última da aparência. Embora nosso aparato espiritual possa retirar-se das aparências presentes, ele permanece atrelado à Aparência. Em sua busca — o Anstrengung des Begriffs (o esforço do conceito) de Hegel —, o espírito, não menos do que os sentidos, espera que algo lhe apareça. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 2]

Para dizer o mínimo, é altamente duvidoso que a ciência moderna, em sua incansável busca de uma verdade por trás das meras aparências, venha a ser capaz de resolver esse impasse; quanto mais não seja porque o próprio cientista pertence ao MUNDO DAS APARÊNCIAS, embora sua perspectiva com relação a esse mundo possa diferir da perspectiva do senso comum. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3]

Se olharmos mais de perto, entretanto, verificamos que o que é verdadeiro para o espírito, a saber, que a linguagem metafórica é a única maneira que ele tem de “aparecer externamente para os sentidos” — mesmo essa atividade muda, que não aparece, já constitui uma espécie de discurso, o diálogo silencioso de mim comigo mesmo —, não é verdadeiro para a vida da alma. O discurso metafórico conceitual é, de fato, adequado para a atividade do pensamento, para as operações do nosso espírito; mas a vida da alma, em sua enorme intensidade, é muito melhor expressa em um olhar, em um som, em um gesto, do que em um discurso. O que fica manifesto quando falamos de experiências psíquicas nunca é a própria experiência, mas o que quer que pensemos dela quando sobre ela refletimos. Diversamente dos pensamentos e das ideias, os sentimentos, as paixões e as emoções têm a mesma dificuldade dos nossos órgãos interiores para se tornar parte essencial do MUNDO DAS APARÊNCIAS. O que aparece no mundo externo além dos sinais físicos é apenas o que deles fazemos por meio do pensamento. Toda demonstração de raiva distinta da raiva que sinto já contém uma reflexão que dá à emoção a forma altamente individualizada, significativa para todos os fenômenos de superfície. Demonstrar raiva é uma forma de autoapresentação: eu decido o que deve aparecer. Em outras palavras, as emoções que sinto não são mais apropriadas para ser exibidas, em seu estado não adulterado, do que os órgãos interiores pelos quais vivemos. É verdade que eu jamais poderei transformar as emoções em aparências se elas não me impelissem a isso e se eu não as sentisse como sinto outras sensações que me mantêm cônscio do processo vital interior. Mas o modo como elas se manifestam sem a intervenção da reflexão e a transferência para a linguagem — pelo olhar, pelo gesto, pelo som inarticulado — não é diferente da maneira pela qual as espécies animais superiores comunicam emoções similares entre si ou para nós. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]

Nossas atividades espirituais, ao contrário, são concebidas em palavras antes mesmo de ser comunicadas, mas a fala é própria para ser ouvida e as palavras são próprias para ser compreendidas por outros que também têm a habilidade de falar, assim como uma criatura dotada do sentido da visão é própria para ver e ser vista. É inconcebível pensamento sem discurso, “pensamento e discurso antecipam um ao outro. Continuamente um toma o lugar do outro” [Merleau-Ponty  , Signs, introdução, p. 17]; realmente contam um com o outro. E embora a capacidade discursiva possa ser fisicamente localizada com melhor precisão do que muitas emoções — amor e ódio, vergonha e inveja —, seu locus   não é um “órgão” e ela não tem nenhuma das propriedades estritamente funcionais tão características de todo o processo orgânico da vida. É verdade que todas as atividades espirituais retiram-se do MUNDO DAS APARÊNCIAS, mas essa retirada não se dá em direção a um interior, seja ele do eu, seja da alma. O pensamento, e a linguagem conceitual que o acompanha, necessita — à medida que ocorre em e é pronunciado por um ser que se sente em casa no MUNDO DAS APARÊNCIAS — de metáforas que lhe possibilitem preencher a lacuna entre um mundo dado à experiência sensorial e um domínio em que tais apreensões imediatas de evidência não podem existir. Mas as nossas experiências de alma são de tal modo corporalmente limitadas, que falar de uma “vida interna” da alma é tão pouco metafórico quanto falar de um sentido interno graças ao qual temos claras sensações sobre o funcionamento ou o não funcionamento dos órgãos interiores. É óbvio que uma criatura privada de espírito não pode viver nada semelhante a uma experiência de identidade pessoal; ela está completamente à mercê de seu processo vital interno, de seus humores e emoções, cuja mudança contínua não é de modo algum diferente das contínuas transformações de nossos órgãos corporais. Toda emoção é uma experiência somática; meu coração dói quando estou magoado, aquece quando sinto simpatia, abre-se nos raros momentos em que o amor e a alegria me dominam, e sensações físicas similares apoderam-se de mim junto com a raiva, o ódio, a inveja e outros afetos. A linguagem da alma em seu estágio meramente expressivo, anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento, não é metafórica; ela não se afasta dos sentidos, nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas. Merleau-Ponty, que eu saiba, o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana, mas que tentou firmemente dar início a uma “filosofia da carne”, confundiu-se ainda com a antiga identificação entre espírito e alma quando definiu “o espírito como o outro lado do corpo”, já que “há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre eles” [The Visible and the Invisible, p. 259]. Precisamente a ausência de tais quiasmas ou conexões é o enigma principal dos fenômenos espirituais, e o próprio Merleau-Ponty, em outro contexto, reconheceu essa ausência com bastante clareza. O pensamento, escreve ele, “é ‘fundamental’ porque não está fundado em nada, mas não fundamental porque com ele não chegamos a um fundamento no qual devemos nos basear e ali permanecer. Por princípio, o pensamento fundamental não tem fundo. Ele é, se se quiser, um abismo” [Signs, p. 21]. Mas o que é verdadeiro para o espírito não é verdadeiro para a alma, e vice-versa. A alma, embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser, não é desprovida de fundo; ela realmente “transborda” do corpo; “ultrapassa seus limites, esconde-se nele — e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele” [The Visible and the Invisible, p. 259]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]

Há, em primeiro lugar, a circunstância ordinária — em vez da conclusão de Kant, mencionada anteriormente — de que toda coisa viva, já que aparece, possui uma “base que não é aparência”, mas que pode ser forçada a aparecer e a tornar-se o que Portmann chama de “aparência não autêntica”. De fato, segundo a compreensão de Kant, as coisas que não aparecem espontaneamente, mas cuja existência pode ser demonstrada — órgãos internos, raízes de árvores e plantas etc. —, também são aparências. Assim, sua conclusão de que as próprias aparências “devem ter uma base que não é, ela mesma, uma aparência” e, portanto, devem “apoiar-se em um objeto transcendente [Critique of Pure Reason. B565-B566. Kant escreve aqui “transcendental  ”, mas quer dizer “transcendente”. Esta não é a única passagem em que ele se confunde com aquilo que é uma das armadilhas montadas pela sua obra para o leitor. A mais clara e mais simples explicação sobre o uso das duas palavras pode ser encontrada nos Prolegomena, em que ele responde a um crítico, na nota da página 252 (Werke, vol. III), em que está escrito o seguinte: “Meu lugar é o fértil bathos da experiência, e a palavra transcendental […] não significa algo que transcenda a experiência, mas o que (a priori  ) a precede de forma a torná-la possível. Se esses conceitos transcendessem a experiência, eu denominaria seu uso transcendente.” O objeto que determina as aparências, distinto da experiência, claramente transcende-as como experiências.] que as determina como meras representações” [Critique of Pure Reason, B566], ou seja, devem apoiar-se em algo que em princípio é de uma ordem ontológica totalmente distinta, parece claramente ter sido retirada de uma analogia   com os fenômenos deste mundo — um mundo que contém tanto as aparências autênticas quanto as não autênticas e no qual as aparências não autênticas, uma vez que contêm o próprio aparelho do processo vital, parecem causar as aparências autênticas. A orientação teológica (no caso de Kant, a necessidade de fazer com que os argumentos favoreçam a existência de um mundo inteligível) comparece aqui na expressão “meras representações” — como se Kant houvesse esquecido sua própria tese central: “Afirmamos que as condições de possibilidade da experiência em geral são também condições da possibilidade dos objetos da experiência, e que por essa razão elas têm validade objetiva em um juízo sintético a priori.” [Ibidem, B197] A razoabilidade do argumento de Kant — o que leva alguma coisa a aparecer deve ser de uma ordem distinta da própria aparência — apoia-se em nossa experiência desses fenômenos vitais; mas a ordem hierárquica entre o objeto transcendente (a coisa-em-si) e as “meras representações”, não; e é esta ordem de prioridades que a tese de Portmann inverte. Kant perdeu-se por causa do seu grande desejo de sustentar cada um e todos os argumentos que, mesmo incapazes de chegar a uma prova definitiva, pudessem ao menos tornar irresistivelmente plausível a tese de que “há indubitavelmente algo distinto do mundo que contém o fundamento da ordem do mundo” [Ibidem, B724]; e que, por conseguinte, esse algo é, ele mesmo, de uma ordem superior. Se confiarmos unicamente em nossas experiências com as coisas que aparecem e que não aparecem e começarmos a especular na mesma direção, podemos, da mesma maneira — e com razoabilidade muito maior —, concluir que talvez haja, de fato, uma base fundamental por trás do MUNDO DAS APARÊNCIAS; mas que o significado principal e talvez o único dessa base está nos seus efeitos, ou seja, no que ela faz aparecer, mais do que em sua pura criatividade. Se o que causa as aparências, sem chegar mesmo a aparecer, é divino, então os órgãos internos do homem poderiam tornar-se suas verdadeiras divindades. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

Em outras palavras, a comum compreensão filosófica do Ser como o fundamento da Aparência é verdadeira para o fenômeno da Vida; mas o mesmo não pode ser dito sobre a comparação valorativa Ser versus Aparência que está no fundo de todas as teorias dos dois mundos. Essa hierarquia tradicional não deriva de nossas experiências ordinárias no MUNDO DAS APARÊNCIAS, mas, ao contrário, da experiência não ordinária do ego   pensante. Como veremos mais adiante, a experiência transcende não só a Aparência, mas o próprio Ser. Kant identifica explicitamente o fenômeno que forneceu a base real para sua crença numa “coisa-em-si” por sob as “meras” aparências: o fato de que, “na consciência que tenho de mim na pura atividade do pensar [beim blossen Denken  ], sou a própria coisa [das Wesen   selbst  , ou seja, das Ding   an sich  ], sem que, por isso, nada de mim seja dado ao pensamento” [Ibidem, B429]. Se reflito sobre a relação que estabeleço de mim para comigo na atividade de pensar, pode parecer que meus pensamentos seriam “meras representações” ou manifestações de um ego que se mantém, ele próprio, para sempre oculto, pois naturalmente os pensamentos nunca se parecem com propriedades atribuíveis a um eu ou a uma pessoa. O ego pensante é, pois, a “coisa-em-si” de Kant: ele não aparece para os demais e, diferentemente do eu da autoconsciência, ele não aparece para si mesmo. Ainda assim, ele “não é igual a nada”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

Em Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik   (1766), Kant sublinha a “imaterialidade” do mundus intelligibilis, o mundo em que se move o ego pensante, em contraste com a “inércia e a constância” da matéria morta que cerca os seres vivos no MUNDO DAS APARÊNCIAS. Nesse contexto, ele distingue a “noção que a alma do homem tem de si mesma como espírito [Geist  ], por meio de uma intuição imaterial, e a consciência por meio da qual ela se apresenta como homem, utilizando-se de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais. É sempre, portanto, o mesmo sujeito que é membro tanto do mundo visível quanto do mundo invisível, mas não a mesma pessoa, já que […] o que como espírito penso não é lembrado por mim como homem e, ao contrário, meu estado real como homem não participa da noção que tenho de mim como espírito”. E, em uma estranha nota de rodapé, Kant fala de uma “certa dupla personalidade que é própria da alma, mesmo nesta vida”; ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo, “quando os sentidos externos encontram-se em total repouso”. Ele suspeita de que as ideias, durante o sono, “podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as ideias em estado de vigília”, precisamente porque “o homem, em tais ocasiões, não é sensível ao seu corpo”. E não recordamos nada dessas ideias quando despertamos. Os sonhos são algo ainda diferente; eles “não são daqui. Pois, nesse caso, o homem não adormece completamente […], e entrelaça as ações de seu espírito com as impressões de seus sentidos exteriores” [A última e supostamente a melhor tradução para o inglês, feita por John Manolesco, apareceu sob o título de Dreams of a Spirit Seer, and Other Writings, Nova York, 1969. Eu mesma traduzi a passagem do alemão, in Werke, vol. I. pp. 946-951.]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

Concluir, a partir dessa experiência, que existem “coisas-em-si”, as quais, em sua própria esfera inteligível, são como nós “somos” no MUNDO DAS APARÊNCIAS, é uma das falácias metafísicas; ou ainda, uma das semblâncias da razão, cuja própria existência Kant foi o primeiro a descobrir, esclarecer e dirimir. Parece muito apropriado que esta falácia, como a maioria das outras que afligiram a tradição filosófica, tenha tido origem nas experiências do ego pensante. Em todo caso, ela apresenta uma semelhança óbvia com outra falácia muito mais simples e mais comum, mencionada por P. F. Strawson em um ensaio sobre Kant: “Uma antiga crença é a de que a razão é algo essencialmente fora do tempo, e, mesmo assim, em nós. Sem dúvida ela tem seu fundamento no fato de que […] podemos apreender verdades [lógicas e matemáticas]. Mas […] [uma pessoa] que apreende verdades intemporais [não precisa] ela mesma ser intemporal.” [The Bounds of Sense: An Essay on Kant’s Critique of Pure Reason, Londres, 1966, p. 249] É típico da escola crítica de Oxford compreender essas falácias como non sequiturs lógicos — como se os filósofos, ao longo dos séculos e por razões desconhecidas, tivessem sido um pouco estúpidos demais para perceber as falhas elementares de seus argumentos. A verdade é que erros lógicos elementares são muito raros na história da filosofia; o que — para espíritos que se desembaraçam de questões acriticamente rejeitadas como “sem sentido” — parece ser erro de lógica é geralmente provocado por semblâncias inevitáveis em seres cuja existência é determinada pelas aparências. Assim, em nosso contexto, a única questão relevante é se tais semblâncias são autênticas ou não autênticas, se são causadas por crenças dogmáticas e pressupostos arbitrários, simples miragens que desaparecem diante de uma inspeção mais cuidadosa, ou se são inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que, ainda que parta do MUNDO DAS APARÊNCIAS, tem uma faculdade — a habilidade de pensar, que permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

O pensamento, que submete à dúvida tudo de que se apossa, não possui entretanto nenhuma relação desse tipo, natural ou prosaica, com a realidade. Foi o pensamento — a reflexão de Descartes   acerca do significado de certas descobertas científicas — que destruiu sua confiança de senso comum na realidade; seu erro foi esperar que pudesse superar a dúvida insistindo em retirar-se completamente do mundo, ao eliminar cada realidade mundana de seus pensamentos e concentrando-se exclusivamente na própria atividade do pensar. (Cogito   cogitationes ou cogito me cogitare, ergo sum é a forma correta da famosa fórmula.) Mas o pensamento não pode provar nem destruir o sentimento de realidade [realness] que deriva do sexto sentido e que foi denominado pelos franceses, talvez por essa mesma razão, de le bon sens, o bom senso; quando o pensamento se retira do MUNDO DAS APARÊNCIAS, ele se retira do sensorialmente dado e, assim, também do sentimento de realidade [realness] dado pelo senso comum. Husserl   argumentava que a suspensão [epoché  ] desse sentimento era o fundamento metodológico de sua ciência fenomenológica. Para o ego pensante, essa suspensão é natural; não é, de modo algum, um método especial a ser ensinado e aprendido; nós o conhecemos sob o fenômeno muito comum do alheamento, que se observa nas pessoas absorvidas por qualquer tipo de pensamento. Em outras palavras, a perda do senso comum não é nem o direito nem a virtude dos “pensadores profissionais” de Kant; ocorre a todo aquele que pensa em algo; ocorre apenas com mais frequência entre os pensadores profissionais. A estes chamamos filósofos, e seu modo de vida será sempre o da “vida de um estrangeiro [stranger]” (bios   xenikos), como denominou Aristóteles em sua Política [Politics, 1324a16]. Essa estranheza e esse alheamento não são mais perigosos — de tal forma que todos os “pensadores”, profissionais ou leigos, sobrevivem com facilidade à perda do sentido de realidade [realness] — porque o ego pensante se afirma apenas temporariamente. Qualquer pensador, não importa quão importante seja, permanece “um homem como você e eu” (Platão), uma aparência entre aparências, dotada de senso comum e dispondo de um raciocínio de senso comum suficiente para sobreviver. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

O pensamento tem sem dúvida um papel muito grande em toda busca científica; mas é o papel de um meio em relação a um fim; o fim é determinado por uma decisão a respeito do que vale a pena conhecer, e essa decisão não pode ser científica. Além do mais, o fim é o conhecimento ou a cognição, que, uma vez obtidos, pertencem claramente ao MUNDO DAS APARÊNCIAS; uma vez estabelecidos como verdadeiros, tornam-se parte integrante do mundo. A cognição e a sede de conhecimento nunca abandonam completamente o MUNDO DAS APARÊNCIAS; se o cientista se retira dele para “pensar”, é apenas com o intuito de encontrar abordagens do mundo melhores e mais promissoras, que se chamam métodos. Nesse sentido, a ciência é apenas um prolongamento muito refinado do raciocínio do senso comum, no qual as ilusões dos sentidos são constantemente dissipadas, como são corrigidos os erros na ciência. O critério, em ambos os casos, é a evidência que, como tal, é inerente a um mundo de aparências. E já que é da própria natureza das aparências revelar e ocultar, cada correção, e cada des-ilusão — nas palavras de Merleau Ponty —, “é a perda de uma evidência, unicamente porque é a aquisição de outra evidência” [The Visible and the Invisible, p. 40]. Ainda que consideremos a compreensão que a ciência tem de seu próprio empreendimento, nada garante que a nova evidência seja mais confiável do que a evidência descartada. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]

Entretanto, a faculdade de pensar — que Kant, como vimos, chamou Vernunft   (razão), para distinguir de Verstand (intelecto), a faculdade de cognição — é de uma natureza inteiramente diversa. A distinção, em seu nível mais elementar e nas próprias palavras de Kant, encontra-se no fato de que “os conceitos da razão nos servem para conceber [begreifen  , compreender], assim como os conceitos do intelecto nos servem para apreender percepções” (“Vernunftbegriffe dienen zum Begreifen, wie Verstandesbegriffe zum Verstehen   der Wahrnehmungen”) [Critique of Pure Reason, B367]. Em outras palavras, o intelecto (Verstand) deseja apreender o que é dado aos sentidos, mas a razão (Vernunft) quer compreender seu significado. A cognição, cujo critério mais elevado é a verdade, deriva esse critério do MUNDO DAS APARÊNCIAS no qual nos orientamos através das percepções sensoriais, cujo testemunho é autoevidente, ou seja, inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência. Como tradução alemã da palavra latina perceptio, o termo Wahrnehmung  , usado por Kant (o que me é dado na percepção e deve ser verdadeiro [Wahr]), indica claramente que a verdade está situada na evidência dos sentidos. Mas esse não é o caso do significado e da faculdade do pensamento que busca o significado; essa faculdade não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe — sua existência é sempre tomada como certa —, mas o que significa, para ela, ser. Essa distinção entre verdade e significado parece-me não só decisiva para qualquer investigação sobre a natureza do pensamento humano, mas parece ser também a consequência necessária da distinção crucial que Kant faz entre razão e intelecto. Deve-se admitir que Kant jamais desenvolveu essa implicação particular de seu próprio pensamento; uma linha clara de demarcação entre essas duas modalidades inteiramente distintas não pode ser encontrada na história da filosofia. As exceções — observações ocasionais sobre a interpretação — não têm importância para a filosofia posterior a Aristóteles. Naquele primeiro tratado sobre a linguagem, ele escreve: Todo “logos [proposição, no contexto] é um som significativo [phoné semantiké]”; ele dá um sinal, aponta para alguma coisa. Mas “nem todo logos é revelador (apóphantikós); somente aqueles nos quais tem vigência o discurso verdadeiro ou o discurso falso (alítheuein ou pseudesthai). Nem sempre é esse o caso. Por exemplo, uma oração é um logos [é significativa], mas não é verdadeira nem falsa” [De Interpretatione, 17a 1-4]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]

As questões suscitadas por nossa sede de conhecimento derivam de nossa curiosidade sobre o mundo, nosso desejo de investigar qualquer coisa que seja dada ao nosso aparelho sensorial. A primeira e famosa afirmação da Metafísica de Aristóteles, “Pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei” [980a22ss] — “Todos os homens, por sua natureza, desejam conhecer” —, traduzida literalmente, diz o seguinte “Todos os homens desejam ver e ter visto [ou seja, conhecer]”. Ao que Aristóteles imediatamente acrescenta: “Um indício disso é nosso amor pelos sentidos; pois eles são amados por si mesmos, independentemente de seu uso.” As questões despertadas pelo desejo de conhecer podem, todas, em princípio, ser respondidas pela experiência e raciocínio do senso comum; estão expostas ao erro e à ilusão, corrigíveis da mesma forma que percepções e experiências sensoriais. Mesmo a inexorabilidade do Progresso da ciência moderna — que constantemente se corrige a si própria descartando respostas e reformulando questões — não contradiz o objetivo básico da ciência — ver e conhecer o mundo tal como ele é dado aos sentidos —, e seu conceito de verdade é derivado da experiência que o senso comum faz da evidência irrefutável, que dissipa o erro e a ilusão. Mas as questões levantadas pelo pensamento, porque é da própria natureza da razão formulá-las — questões de significado —, são, todas elas, irrespondíveis pelo senso comum e por sua sofisticada extensão a que chamamos ciência. A busca de significado “não tem significado” para o senso comum e para o raciocínio do senso comum, pois é função do sexto sentido adequar-nos ao MUNDO DAS APARÊNCIAS e deixar-nos em casa no mundo dado por nossos cinco sentidos. Aí estamos e não fazemos perguntas. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]

O que minou a grande descoberta de Kant — a distinção entre o conhecimento que usa o pensamento como um meio para um fim e o pensamento propriamente dito, tal como surge da “íntima natureza de nossa razão” e se realiza em seu próprio benefício — foi a permanente comparação que ele mesmo estabeleceu entre os dois termos. Nesse contexto, só faz sentido falar de erro ou ilusão quando somente a verdade (para Kant, a intuição), e não o significado, é o critério último para as atividades espirituais do homem. Kant diz que “é impossível que a [razão], o mais elevado tribunal de todos os direitos e de todas as pretensões de especulação, tivesse de ser ela mesma a fonte de erros e ilusões” [Ibidem, B697]. Ele está certo, mas apenas porque a razão, como faculdade do pensamento especulativo, não se move no MUNDO DAS APARÊNCIAS; dessa maneira, ela pode gerar absurdos e ausências de significado, mas não erros ou ilusões, que pertencem propriamente ao âmbito da percepção sensorial e do raciocínio do senso comum. Ele mesmo reconhece isso quando chama as ideias da razão pura de meramente “heurísticas”, em oposição aos conceitos “ostensivos” [Ibidem, B699]; as ideias da razão pura realizam apenas ensaios, não provam nem exibem nada. “Não se deve admitir que elas existam em si mesmas, mas que tenham apenas a realidade de um esquema […] [e] devem ser vistas somente como análogas a coisas reais, não como coisas reais em si mesmas.” [Ibidem, B702] Em outras palavras, elas não alcançam nem são capazes de apresentar ou representar a realidade. Não são apenas as coisas transcendentes do outro mundo que elas nunca atingem; a realidade, dada pela ação conjunta dos sentidos coordenados pelo senso comum e garantida pela pluralidade, também se encontra além do alcance daquelas ideias. Mas Kant não insiste nesse aspecto da questão, porque teme que suas ideias possam transformar-se em “coisas-pensamento vazias” (leere   Gedankendinge) [Ibidem, B698] — como invariavelmente acontece quando ousam mostrar-se nuas, ou seja, não transformadas e, de certo modo, não adulteradas pela linguagem, em nosso mundo e em nossa comunicação cotidiana. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]

A autonomia das atividades espirituais, além disso, implica também que essas atividades não são condicionadas; nenhuma das condições da vida ou do mundo lhes é diretamente correspondente. Pois a “tranquilidade desapaixonada” da alma não é, propriamente falando, uma condição; a mera tranquilidade não apenas jamais produz a atividade espiritual, a premência de pensar, como também a “necessidade da razão”, na maior parte das vezes, silencia as paixões, e não o contrário. É certo que os objetos do meu pensar, querer ou julgar, aquilo de que o espírito se ocupa, são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo; mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo, quer pela minha vida no mundo. Os homens, embora totalmente condicionados existencialmente — limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a morte, submetidos ao trabalho para viver, levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes —, podem espiritualmente transcender todas essas condições, mas só espiritualmente; jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade. Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados; podem querer o impossível, como, por exemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é, especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível. E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade — como de fato não há, em nosso mundo, oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer —, os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem, em última instância, da vida do espírito. Em suma, dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados e “não nos dotam diretamente com o poder de agir” (Heidegger). A ausência de pensamento é realmente um poderoso fator nos assuntos humanos; estatisticamente, é o mais poderoso deles, não apenas na conduta de muitos, mas também na conduta de todos. A premência, a a-scholia dos assuntos humanos, requer juízos provisórios, a confiança no hábito e no costume, isto é, nos preconceitos. Sobre o MUNDO DAS APARÊNCIAS, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum, Heráclito   falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: “O espírito é separado de todas as coisas” (sophon   esti pantón kechórismenon) [Frag. 108]. E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo, a saber, criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional, ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral, isto é, sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

Vista da perspectiva do MUNDO DAS APARÊNCIAS e das atividades por ele condicionadas, a principal característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade. Propriamente falando, elas nunca aparecem, embora se manifestem para o ego pensante, volitivo ou judicativo sabedor de estar ativo, embora lhes falte a habilidade ou a urgência para aparecer como tal. O lema epicurista lathé biósas, “viver oculto”, pode ter sido um conselho prudente: é também uma descrição exata, pelo menos negativamente, do topos, do lugar do homem que pensa; e é, na verdade, o oposto do “spectemur agendo” (que nos vejam em ação) de John Adams. Em outros termos, ao invisível que se manifesta para o pensamento corresponde uma faculdade humana que não é apenas, como as outras faculdades, invisível, porque latente, uma mera possibilidade, mas que permanece não manifesta em plena realidade. Se considerarmos toda a escala das atividades humanas do ponto de vista da aparência, encontraremos vários graus de manifestação. Nem o labor nem a fabricação requerem a exibição da própria atividade; somente a ação e a fala necessitam de um espaço da aparência — bem como de pessoas que vejam e ouçam — para se realizar efetivamente. Mas nenhuma dessas atividades é invisível. Se seguíssemos o costume linguístico grego segundo o qual os “heróis”, os homens que agem no sentido mais elevado, eram chamados de andres epiphaneis, homens completamente manifestos e altamente visíveis, deveríamos chamar os pensadores de homens, por definição e por profissão, não visíveis [Tucídides, II, 43]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

Embora essa última classe de objetos-de-pensamento — conceitos, ideias, categorias e assemelhados — tenha se tornado o tema especializado da filosofia “profissional”, não há nada na vida comum do homem que não possa se tornar alimento para o pensamento, isto é, que não possa estar sujeito à dupla transformação que prepara um objeto sensível, tornando-o propriamente objeto-de-pensamento. Todas as questões metafísicas que a filosofia escolheu como tópicos especiais vêm das experiências do senso comum; a “necessidade da razão” — a busca de significado que faz com que os homens formulem questões — não difere em nada da necessidade que os homens têm de contar a história de algum acontecimento de que foram testemunhas ou de escrever poemas a respeito dele. Em todas essas atividades reflexivas os homens movem-se fora do MUNDO DAS APARÊNCIAS e usam uma linguagem cheia de palavras abstratas que, é claro, são parte integrante da fala cotidiana bem antes de se tornarem moeda corrente da filosofia. A retirada do MUNDO DAS APARÊNCIAS é então a única condição anterior essencial para o pensamento, embora não para a filosofia, tecnicamente falando. Para pensarmos em alguém, este alguém deve ser afastado da nossa presença; enquanto estivermos com ele, não pensaremos nele ou sobre ele; o pensamento sempre implica lembrança; todo pensar é, estritamente falando, um re-pensar. É claro que acontece de começarmos a pensar em alguém ou em algo ainda presente; nesse caso, teremos nos retirado secretamente do ambiente que nos cerca, passando a nos portar como se já estivéssemos ausentes. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

Essas observações podem indicar por que o pensar, a busca de significado — oposta à sede de conhecimento, e mesmo ao conhecimento pelo conhecimento — foi tão frequentemente considerada antinatural, como se os homens, sempre que refletissem sem propósito específico, ultrapassando a curiosidade natural despertada pelas múltiplas maravilhas do simples estar-aí do mundo e pela sua própria existência, estivessem engajados em uma atividade contrária à condição humana. O pensar enquanto tal, e não apenas como o levantamento das “questões últimas” irrespondíveis, mas toda reflexão que não serve ao conhecimento e que não é guiada por necessidades e objetivos práticos, está, como observou Heidegger, “fora de ordem” (grifos nossos) [An Introduction to Methaphysics, trad. Ralph Manhein, New Haven, 1959, p. 12]. Ela interrompe qualquer fazer, qualquer atividade comum, seja ela qual for. Todo pensar exige um pare-e-pense. As teorias dos dois mundos, quaisquer que tenham sido suas falácias e seus absurdos, surgiram dessas genuínas experiências do ego pensante. E uma vez que qualquer coisa que impeça o pensar pertença ao MUNDO DAS APARÊNCIAS e às experiências do senso comum que partilho com meus semelhantes e que automaticamente asseguram o sentido de realidade [realness] que tenho do meu próprio ser, é como se de fato o pensar me paralisasse, do mesmo modo que o excesso de consciência pode paralisar o automatismo de minhas funções corporais, “l’accomplissement d’un acte qui doit être réflexe ou ne peut être”, como sentenciou Valéry. Identificando o estado de consciência com o estado de pensar, ele acrescenta: “on en pourrait tirer toute une philosophie   que je résumerais ainsi: tantôt je pense et tantôt je suis” (“ora penso e ora sou”) [“Discours aux chirurgiens”, in Variété, Paris, 1957, vol. I, p. 916]. Essa observação extraordinária, totalmente baseada em experiências igualmente extraordinárias — a saber, que a mera consciência de nossos órgãos corporais é suficiente para impedir o funcionamento adequado desses órgãos —, insiste em um antagonismo entre ser e pensar que podemos fazer remontar à famosa frase de Platão: que somente o corpo do filósofo — isto é, o que o faz aparecer entre as outras aparências — ainda habita a cidade dos homens, como se, pensando, os homens se retirassem do mundo dos vivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

Sob o pressuposto de que o filósofo não necessita da “ralé” para informá-lo sobre sua “tolice” — o senso comum que ele compartilha com todos os homens deve alertá-lo a tempo de prever o riso de que será objeto —, em resumo, sob o pressuposto de que aquilo com o que estamos lidando é uma luta interna entre o raciocínio do senso comum e o pensamento especulativo, luta que se passa no próprio espírito do filósofo, examinemos mais de perto a afinidade entre a morte e a filosofia. Do ponto de vista do MUNDO DAS APARÊNCIAS — o mundo comum no qual aparecemos pelo nascimento e do qual desaparecemos pela morte —, é natural o desejo de conhecer nosso hábitat comum e de reunir todo tipo de conhecimento a seu respeito. Em função da necessidade que o pensamento tem de transcender o mundo, dele nos afastamos. Metaforicamente, desaparecemos deste mundo; e isso pode ser compreendido — do ponto de vista do que é natural e do nosso raciocínio de senso comum — como a antecipação de nossa partida final, ou seja, de nossa morte. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Acabei de referir-me aos objetos sensíveis dessensorializados, isto é, aos invisíveis que, pertencendo ao MUNDO DAS APARÊNCIAS, desapareceriam temporariamente ou ainda não teriam alcançado nosso campo de percepção, e que são trazidos à nossa presença pela lembrança ou pela antecipação. O que realmente ocorre nesses casos foi eternizado na história de Orfeu e Eurídice. Orfeu desceu ao Hades para resgatar sua esposa morta e disseram-lhe que a poderia ter de volta sob a condição de que não se voltasse para vê-la, enquanto ela o seguia. Mas quando se aproximaram do mundo dos vivos Orfeu olhou para trás e Eurídice imediatamente desapareceu. De modo mais preciso do que qualquer linguagem terminológica faria, o velho mito conta o que acontece no momento em que o processo do pensamento chega ao fim no mundo da vida ordinária: todos os invisíveis tornam a sumir. Também convém que o mito se refira à lembrança, e não à antecipação. A faculdade de antecipar o futuro em pensamento deriva da faculdade de lembrar o passado que, por sua vez, se enraíza na habilidade ainda mais elementar de dessensorializar e de ter presente diante de (e não apenas em) seu espírito o que está fisicamente ausente. A habilidade de criar entidades fictícias no espírito, tais como o unicórnio e o centauro, ou os personagens fictícios de uma história, uma habilidade usualmente denominada imaginação produtiva, é inteiramente dependente da assim chamada imaginação reprodutiva. Na imaginação “produtiva”, os elementos do mundo visível são rearranjados; isto é possível porque os elementos, agora livremente manejados, já atravessaram o processo de dessensorialização do pensamento. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Em outras palavras: todo pensamento deriva da experiência, mas nenhuma experiência produz significado ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginação e pensamento. Do ponto de vista do pensamento, a vida em seu puro estar-aí é sem sentido. Do ponto de vista da natureza imediata da vida e do mundo dado aos sentidos, o pensamento é, como Platão indicou, uma morte em vida. O filósofo que vive na “terra do pensamento” (Kant) [Nota da editora: não fomos capazes de encontrar esta referência] será naturalmente levado a olhar para essas coisas a partir do ego pensante, para o qual uma vida sem sentido é uma espécie de morte em vida. Como não é idêntico ao eu real, o ego pensante não tem consciência de sua própria retirada do mundo comum das aparências. Visto de sua perspectiva, é como se o invisível viesse primeiro, como se as inúmeras entidades que compõem o MUNDO DAS APARÊNCIAS — que por sua própria presença distraem o espírito e impedem sua atividade — estivessem positivamente ocultando um Ser sempre invisível e que se revela apenas no espírito. Dito de outra maneira, o que para o senso comum é a óbvia retirada do espírito em relação ao mundo, aparece, na perspectiva do próprio espírito, como uma “retirada do Ser” ou um “esquecimento do Ser” — Seinsentzug e Seinsvergessenheit   (Heidegger). E é verdade que a vida cotidiana, a vida dos “Eles”, é vivida em um mundo do qual se encontra totalmente ausente tudo o que é “visível” para o espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Consideramos as principais características da atividade de pensar. Sua retirada do MUNDO DAS APARÊNCIAS, do mundo do senso comum; sua tendência autodestrutiva em relação a seus próprios resultados; sua reflexividade e a consciência da pura atividade que a acompanha. Além disso tudo, há o estranho fato de que só percebo minhas faculdades espirituais enquanto a atividade perdura, o que significa que o pensamento não pode jamais se estabelecer solidamente como uma das mais elevadas, ou mesmo como a mais elevada, propriedades da espécie humana — o homem pode ser definido como “o animal que fala”, no sentido aristotélico de logon echon  , dotado de fala, mas não como o animal que pensa, o animal rationale. Nenhuma dessas características escapou à atenção dos filósofos. O que há de curioso, entretanto, é que quanto mais “profissionais” os pensadores, mais eles cresciam em nossa tradição filosófica, e mais se inclinavam a encontrar maneiras e meios de reinterpretar esses traços inerentes ao pensamento, de forma a armarem-se contra as objeções do raciocínio do senso comum em relação às inutilidades e à irrealidade de todo o empreendimento filosófico. As distâncias por que os filósofos avançam nessas reinterpretações, bem como a qualidade de sua argumentação, seriam inexplicáveis se eles se dirigissem mais à famosa multidão — que nunca se importou com eles e permaneceu alegremente ignorante em relação à argumentação filosófica —, em vez de serem primordialmente estimulados por seu próprio senso comum e pela autodesconfiança que inevitavelmente acompanha a suspensão do pensamento. O mesmo Kant que confiou suas verdadeiras experiências de pensamento à privacidade de suas anotações anunciou publicamente que havia lançado as fundações de todo sistema metafísico futuro. Hegel — o último e o mais engenhoso dentre os construtores de sistemas — transformou o ato de o pensamento se desfazer de seus próprios resultados no enorme poder de negação sem o qual seria impossível qualquer movimento ou desenvolvimento. Para Hegel, a mesma cadeia inexorável de consequências em desenvolvimento que regula a natureza orgânica da passagem da semente ao fruto — na qual cada fase sempre “nega” e cancela a precedente — regulamenta a negação do processo pensante do espírito; exceção feita, no caso do pensamento — que é “mediatizado pela consciência e pela vontade”, através das atividades espirituais —, ao fato de que ele pode ser visto como “produzindo-se a si mesmo”. “O espírito é apenas aquilo que ele faz de si mesmo e a si mesmo, realmente realizando o que (potencialmente) ele é.” Para começar, isso deixa incidentalmente sem resposta a questão sobre quem fez a potencialidade do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Estive falando sobre as características especiais do pensamento que podem ser atribuídas ao radicalismo de sua retirada do mundo. Em contrapartida, nem a vontade nem o juízo, embora dependentes da reflexão preliminar que o pensamento faz sobre os seus objetos, ficam presos a essa reflexão; seus objetos são particulares, têm seu lar estabelecido no MUNDO DAS APARÊNCIAS, do qual o espírito volitivo ou judicante se retira apenas temporariamente e com a intenção de uma volta posterior. Isso se aplica particularmente à vontade, cuja fase de retirada é caracterizada pela forma mais forte de reflexividade, uma ação sobre si mesma: o vollo me velle é muito mais característico da vontade do que o cogito me cogitare é característico do pensamento. Contudo, o que todas essas atividades têm em comum é uma peculiar quietude, uma ausência de qualquer ação ou perturbação, a retirada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos que de um modo ou de outro fazem de mim parte do mundo real, uma retirada a que me referi anteriormente como condição e pré-requisito de todo juízo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 11]

Evidentemente, a retirada do juízo é muito diferente da retirada do filósofo. Este não abandona o MUNDO DAS APARÊNCIAS, mas se retira do envolvimento ativo neste mundo para uma posição privilegiada que tem como finalidade contemplar o todo. Além disso, e talvez mais significativamente, os espectadores de Pitágoras são membros de uma audiência e, portanto, são bem diferentes do filósofo que inicia o seu bios theoretikos, deixando a companhia dos seus semelhantes e as opiniões incertas, as suas doxai, que só podem expressar um “parece-me…”. Assim, o veredicto do espectador, ainda que imparcial e livre dos interesses do lucro ou da fama, não é independente do ponto de vista dos outros — ao contrário, segundo Kant, uma “mentalidade alargada” tem que os levar em conta. Os espectadores, embora livres da particularidade característica do ator, não estão solitários. Tampouco são autossuficientes, como o “deus mais elevado” que o filósofo tenta imitar pelo pensamento e que, segundo Platão, “é eternamente […] solitário em razão de sua excelência, sempre capaz de estar junto a si mesmo, não precisando de mais ninguém, amigo ou conhecido, e bastando a si mesmo” [Timaeus, 34b]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 11]

As atividades mentais, invisíveis e ocupadas com o invisível, tornam-se manifestas somente através da palavra. Assim como os seres que aparecem e habitam o mundo de aparências têm em si o ímpeto de se mostrarem, os seres pensantes — ainda que pertencentes ao MUNDO DAS APARÊNCIAS, mesmo depois de haverem dele se retirado mentalmente — têm em si o ímpeto de falar, e, assim, tornar manifesto aquilo que, de outra forma, não poderia absolutamente pertencer ao MUNDO DAS APARÊNCIAS. Mas enquanto o aparecer pressupõe e exige, em si, a presença de espectadores, o pensar, em sua necessidade de discurso, não exige nem pressupõe ouvintes: a linguagem humana, com uma intrincada complexidade gramatical e sintática, não seria necessária na comunicação entre semelhantes. A linguagem dos animais — sons, sinais, gestos — serviria bastante bem para as nossas necessidades imediatas, não só de autopreservação e preservação da espécie, como também para tornar evidentes as disposições da alma. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Ainda assim, a linguagem, o único meio pelo qual é possível tornar manifestas as atividades espirituais não só para o mundo exterior como também para o próprio eu espiritual, não é de modo algum tão evidentemente adequada à atividade do pensamento quanto a visão o é para a sua tarefa de ver. Nenhuma língua tem um vocabulário já pronto para as necessidades da atividade espiritual; todas tomam seu vocabulário de empréstimo às palavras originalmente concebidas para corresponder ou a experiências dos sentidos, ou a outras experiências da vida comum. Tal empréstimo, entretanto, jamais se dá ao acaso ou é arbitrariamente simbólico (como os símbolos matemáticos) ou emblemático; toda a linguagem filosófica, e a maior parte da linguagem poética, é metafórica; não no sentido simples do Dicionário Oxford, que define “Metáfora” como “a figura de linguagem na qual um nome ou um termo descritivo é transferido para um objeto diferente de, mas análogo a, aquele ao qual é adequadamente aplicável”. Não há analogia entre, digamos, um pôr do sol e a velhice; e quando o poeta, em uma metáfora gasta, fala da velhice como o “poente da vida”, ele pensa que o poente se relaciona com o dia que o precede da mesma forma que a velhice se relaciona com a vida. Se, portanto, como diz Shelley, a linguagem do poeta é “vitalmente metafórica”, ela o é enquanto “marca relações de coisas anteriormente não apreendidas, perpetuando sua apreensão” (grifo nosso) [A Defense of Poetry]. Toda metáfora descobre “uma percepção intuitiva de similaridades em dessemelhantes” e, segundo Aristóteles, é exatamente por isso que ela é um “sinal de gênio”, “de longe, a maior de todas as coisas” [Poetics, 1459]. Mas essa similaridade, também para Aristóteles, não está presente em objetos diferentes sob outros aspectos, mas é uma similaridade de relações, como numa analogia que sempre necessita de quatro termos, e pode ser representada pela fórmula B:A = D:C. “Desse modo, uma taça está para Dionísio assim como um escudo está para Ares. A taça será, por conseguinte, descrita metaforicamente como ‘o escudo de Dionísio’” [Ibidem, 1457b17 e ss]. E essa fala por analogia, em linguagem metafórica, é, segundo Kant, o único modo pelo qual a razão especulativa, que aqui chamamos pensamento, pode se manifestar. A metáfora fornece ao pensamento “abstrato” e sem imagens uma intuição colhida do MUNDO DAS APARÊNCIAS, cuja função é a de “estabelecer a realidade de nossos conceitos” [Critique of Judgmenf, nº 59], como desfazendo a retirada do mundo, precondição para as atividades do espírito. Isso é relativamente fácil desde que nosso pensamento simplesmente responda aos apelos de nossa necessidade de conhecer e compreender o que é dado no mundo de aparências, isto é, desde que permaneçamos dentro das limitações do raciocínio do senso comum; o que precisamos para o pensamento do senso comum é de exemplos que ilustrem nossos conceitos; tais exemplos são adequados porque nossos conceitos são extraídos das aparências — são meras abstrações. É completamente diferente quando a necessidade da razão transcende os limites de um dado mundo e nos leva ao mar incerto da especulação, em que “não pode ser dada nenhuma intuição adequada a [ideias da razão]” [Ibidem]. Nesse ponto entra a metáfora. A metáfora realiza a “transferência” — metapherein — de uma genuína e aparentemente impossível metabasis eis allo genos, a transição de um estado existencial, aquele do pensar, para outro, aquele do ser uma aparência entre aparências; e isso só pode ser feito através de analogias. Kant dá como exemplo de metáfora bem-sucedida a descrição do estado despótico como uma simples máquina (como um moedor manual), porque é “governado por uma vontade individual absoluta […]. Pois entre um estado despótico e um moedor manual não há, decerto, qualquer semelhança, mas há semelhança nas regras segundo as quais refletimos sobre essas duas coisas e sobre sua causalidade”. E acrescenta: “Nossa linguagem está cheia de apresentações indiretas desse tipo”, um assunto que “não foi suficientemente analisado até agora e que merece uma investigação mais profunda” [Ibidem]. As percepções da metafísica são “alcançadas por analogia, não no sentido habitual de semelhança imperfeita entre duas coisas, mas de uma semelhança perfeita entre duas relações entre coisas completamente diferentes” [Prolegomena to Every Future Metaphysics, nº 58, trad. Carl J. Friedrich, Modern Library, Nova York, s/d. O próprio Kant estava ciente dessa peculiaridade da linguagem filosófica na época pré-crítica: “Nossos mais altos conceitos racionais […] amiúde usam uma roupagem física de modo a obter clareza.” “Träume eines Geistersehers”, p. 948]. Na linguagem muitas vezes menos precisa da Crítica do juízo, Kant chama também de simbólicas essas “representações de acordo com uma simples analogia” [N° 59. Seria interessante examinar a noção kantiana de “analogia” nos antigos escritos de Opus Postumum; é notável como cedo ocorreu a Kant que o pensamento metafórico — isto é, o pensamento por analogias — poderia livrar o pensamento especulativo de sua peculiar irrealidade. Já em Allgemeine Naturgeschichte und Theorie   des Himmels, publicado em 1755, escreve ele a respeito da “probabilidade” da existência de Deus: “Não estou assim tão devotado às consequências de minhas teorias que não possa reconhecer […] que elas são indemonstráveis. Espero, contudo, que como um mapa do infinito compreendendo, como compreende, um tema que parecia […] estar para sempre oculto ao entendimento humano, isso não signifique que essas considerações sejam, a um só tempo, vistas como uma quimera, quando o recurso empregado foi o da analogia.” (grifos meus). Trad. inglesa por W. Hastie, citada do Kant’s Cosmogony, Glasgow, 1900, pp. 146-147]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Todos os termos filosóficos são metáforas, analogias congeladas, por assim dizer, cujo verdadeiro significado se desvela quando dissolvemos o termo em seu contexto original, que estava muito nítido no espírito do primeiro filósofo a utilizá-lo. Quando Platão introduziu as palavras cotidianas “alma” e “ideia” na linguagem filosófica — conectando um órgão invisível no homem, a alma, com algo invisível no mundo dos invisíveis, as ideias —, ele ainda deve ter ouvido as palavras no sentido em que eram utilizadas na linguagem ordinária e pré-filosófica; Psyche   é o “sopro da vida” que os moribundos expiram, e ideia, ou eidos  , é a forma ou esboço que está no olho espiritual do artesão antes de iniciar seu trabalho — uma imagem que sobrevive tanto ao processo de fabricação quanto ao objeto fabricado, adquirindo assim uma perenidade que a prepara para a eternidade no céu das ideias. A analogia subjacente à doutrina da alma de Platão desenvolve-se da seguinte maneira: assim como o sopro de vida está relacionado com o corpo que ele abandona, isto é, ao cadáver, a alma, daí em diante, está em princípio relacionada com o corpo que vive. A analogia subjacente à sua doutrina das ideias pode ser reconstruída de maneira semelhante; assim como a imagem espiritual do artesão guia sua mão na fabricação e é a medida do sucesso ou do fracasso do objeto, também a totalidade dos dados sensíveis e materiais no MUNDO DAS APARÊNCIAS relaciona-se com um padrão invisível situado no céu das ideias e é avaliada de acordo com ele. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

A metáfora, servindo de ponte no abismo entre as atividades espirituais interiores e invisíveis e o MUNDO DAS APARÊNCIAS, foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e, consequentemente, à filosofia; mas a metáfora em si é, na origem, poética, e não filosófica. Não é de espantar, portanto, que poetas e escritores afinados com a poesia, e não com a filosofia, conhecessem sua função essencial. Daí lermos em um ensaio pouco conhecido de Ernest Fenollosa, publicado por Ezra Pound e, ao que eu saiba, jamais mencionado na literatura sobre metáfora: “A metáfora é […] a própria substância da poesia”; sem ela, “não haveria ponte que permitisse a travessia da verdade menor do que é visto para a verdade maior do que não se vê”. [O ensaio “The Chinese Written Character as a Medium for Poetry”, editado por Ezra Pound em Instigations, Freeport, Nova York, 1967, contém um curioso pedido em favor da escrita chinesa: “Sua etimologia é constantemente visível.” Uma palavra fonética “não carrega sua metáfora na face. Esquecemos que personalidade já significou não a alma, mas a máscara da alma [por meio da qual a alma soava, como era per-sonare]. Esse é o tipo de coisa de que não podemos esquecer quando usamos o símbolo chinês… Para nós, o poeta é aquele para quem os tesouros acumulados das palavras das raças são reais e ativos” (p. 25).] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Tentando agora examinar mais de perto as várias formas de que a linguagem dispõe para estabelecer uma ponte sobre o abismo entre o domínio do invisível e o MUNDO DAS APARÊNCIAS, podemos oferecer, provisoriamente, a seguinte descrição geral: da sugestiva definição aristotélica da linguagem como “emissão sonora e significativa” de palavras que já em si são “sons com significado” que “se assemelham a pensamentos”, pode-se concluir que pensar é a atividade do espírito que dá realidade àqueles produtos do espírito inerentes ao discurso e para os quais a linguagem, sem qualquer esforço especial, já encontrou uma morada adequada, ainda que provisória, no mundo audível. Se falar e pensar nascem da mesma fonte, então o próprio dom da linguagem poderia ser tomado como uma espécie de prova, ou talvez mais como um sinal de que o homem é naturalmente dotado de um instrumento capaz de transformar o invisível em uma “aparência”. A “terra do pensamento” de Kant — Land des Denkens — pode nunca aparecer ou se manifestar aos olhos do corpo; manifesta-se, com todo tipo de distorção, não só para nosso espírito, mas também para os ouvidos do corpo. E é nesse contexto que a linguagem do espírito, através da metáfora, retorna ao mundo das visibilidades para iluminar e elaborar melhor aquilo que não pode ser visto, mas que pode ser dito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Analogias, metáforas e emblemas são fios com que o espírito se prende ao mundo, mesmo nos momentos em que, desatento, perde o contato direto com ele; são eles também que garantem a unidade da experiência humana. Além disso, servem como modelos no próprio processo de pensamento, dando-nos orientação quando tememos cambalear às cegas entre experiências nas quais nossos sentidos corporais, com sua relativa certeza de conhecimento, não nos podem guiar. O simples fato de que nosso espírito é capaz de encontrar tais analogias — que o MUNDO DAS APARÊNCIAS nos lembra coisas não-aparentes — pode ser visto como uma espécie de “prova” de que corpo e espírito, pensamento e experiência sensível, visível e invisível se pertencem, são, por assim dizer, “feitos” um para o outro. Em outras palavras, se a rocha no mar, que “resiste à rota veloz dos ventos que silvam, às ondas que se elevam e nela rebentam”, pode tornar-se uma metáfora para resistência em combate, então “não é […] correto dizer que a rocha é vista antropomorficamente, a não ser que acrescentemos que nossa compreensão da rocha é antropomórfica pela mesma razão que essa compreensão pode permitir que nos vejamos petromorficamente” [Bruno Snell, “From Myth to Logic: The Role of The Comparison”, in The Discovery of the Mind, Harper Torchbooks, Nova York, Evanston, 1960, p. 201]. Há finalmente a irreversibilidade da relação expressa na metáfora; ela indica, à sua maneira, a absoluta primazia do MUNDO DAS APARÊNCIAS, fornecendo, assim, mais uma evidência dessa extraordinária qualidade que o pensamento tem de estar sempre fora de ordem. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Esse último ponto é de especial importância. Se a linguagem do pensamento é essencialmente metafórica, o MUNDO DAS APARÊNCIAS insere-se no pensamento independentemente das necessidades de nosso corpo e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder. Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe, por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão, obviamente o ego pensante jamais abandona de todo o MUNDO DAS APARÊNCIAS. A teoria dos dois mundos, como já disse, é uma falácia metafísica, mas não é absolutamente arbitrária ou acidental. É a falácia mais razoável a atormentar a experiência do pensamento. A linguagem, prestando-se ao uso metafórico, torna-nos capazes de pensar, isto é, de ter trânsito em assuntos não sensíveis, pois permite uma transferência, metapherein, de nossas experiências sensíveis. Não há dois mundos, pois a metáfora os une. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Em outras palavras, a principal dificuldade parece, aqui, ser que, para o próprio pensamento — cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceitual depende inteiramente do dom da metáfora, que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível, o MUNDO DAS APARÊNCIAS e o ego pensante —, não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito, na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo. Todas as metáforas extraídas dos sentidos irão desembocar em dificuldades, pela simples razão de que todos os nossos sentidos são essencialmente cognitivos; portanto, concebidas como atividades, essas metáforas têm uma finalidade exterior; elas não são energeia  , um fim em si mesmas, mas instrumentos que nos possibilitam conhecer e lidar com o mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Em outras palavras, o que deixa os homens espantados é algo familiar, e ainda assim normalmente invisível, que eles são forçados a admirar. Aquele espanto que é o ponto de partida do pensamento não é nem a confusão, nem a surpresa, nem a perplexidade; é um espanto de admiração. Aquilo que nos maravilha é afirmado e confirmado pela admiração que irrompe na fala, o dom de Íris, o arco-íris, a mensageira das alturas. A fala toma a forma de louvor, de glorificação, não de uma aparência particularmente surpreendente, nem da soma total das coisas no mundo, mas da ordem harmoniosa por trás delas, que em si mesma é invisível, e da qual, não obstante, o MUNDO DAS APARÊNCIAS oferece um vislumbre. “Pois as aparências são um vislumbre do não-revelado” (“opsis   gar tón adélón ta phainomena”), nas palavras de Anaxágoras   [B21a]. A filosofia começa com a consciência dessa ordem harmônica invisível do kosmos  , que se manifesta em meio às visibilidades familiares, como se estas se tivessem tornado transparentes. O filósofo maravilha-se com a “harmonia não-visível” que, segundo Heráclito, é “melhor do que a visível” (“harmonié aphanés phanerés kreitton”) [B54]. Outra palavra que desde cedo designou o invisível em meio às aparências é physis  , natureza, a qual, de acordo com os gregos, era a totalidade das coisas que não eram feitas pelo homem, nem criadas por um artífice divino, mas que tinham vindo a ser por si mesmas. Heráclito diz dessa physis que ela “gosta de se esconder” [B123] por trás das aparências. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]

Desde Parmênides, a palavra-chave para esse todo invisível e imperceptível implicitamente manifesto em tudo aquilo que aparece tem sido Ser — aparentemente a palavra mais vazia e geral, a mais desprovida de sentido em nosso vocabulário. Descreveu-se com grande precisão, milhares de anos depois de ter sido pela primeira vez descoberto pela filosofia grega, aquilo que ocorre a um homem normal que subitamente interrompe seu caminho natural quando se dá conta da presença absolutamente penetrante do Ser no MUNDO DAS APARÊNCIAS. A passagem é relativamente moderna e, portanto, mais enfática a respeito de emoções pessoais e subjetivas do que o seria qualquer outro texto grego; e talvez por esta razão ela é mais persuasiva para os ouvidos psicologicamente treinados. Coleridge escreve: Algum dia já elevaste teu espírito para considerar a existência, em si e por si, do mero ato de existir? Algum dia já disseste, pensativo: “É!” Sem te importar, nesse momento, se havia, diante de ti, um homem, uma flor ou um grão de areia — em uma palavra, sem referência a este ou àquele modo ou forma particular da existência? Se tiveres alcançado isto, fará sentido a presença de um mistério que fixou teu espírito no espanto e na admiração. As próprias palavras “Não há nada!” ou “Houve um tempo em que não havia nada!” são contraditórias. Algo em nós repele essa proposição com uma luz tão repleta e instantânea que é como se recebesse sua evidência em nome da própria eternidade. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]

Transcrevi extensamente o ponto principal da passagem para deixar claro o quanto essas linhas de pensamento estão em franca contradição com aquilo em que Cícero, como outros romanos bem-educados, sempre acreditou e que expressou até naquele mesmo livro. No nosso contexto, quis dar um exemplo (um exemplo famoso, talvez o primeiro registrado em nossa história intelectual) de como certas linhas de pensamento realmente pretendem levar uma pessoa a pensar-se fora do mundo por meio de uma relativização. Em relação ao universo, a Terra é um ponto; que importa o que nela acontece? Em relação à imensidão do tempo, os séculos são apenas instantes, e o esquecimento recobriria tudo e todos; que importa o que os homens fazem? No que se refere à morte, que é igual para todos, tudo o que é específico e distinto perde seu peso; se não existe nenhum além — e a vida após a morte, para Cícero, não é um artigo de fé, mas uma hipótese moral   —, não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos. Aqui, pensar significa seguir uma sequência de raciocínio que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao MUNDO DAS APARÊNCIAS e à sua própria vida. A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e, de uma maneira geral, da própria vida. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

Em ambos os casos, o pensamento deixa o MUNDO DAS APARÊNCIAS. Apenas porque o pensamento implica retirada é que ele pode ser usado como um instrumento para escapar. Além disso, como já foi enfatizado, o pensamento implica uma inconsciência do corpo e do eu e põe em seu lugar a experiência da pura atividade, mais gratificante, segundo Aristóteles, do que a satisfação de qualquer outro desejo, já que dependemos de algo ou de alguém para obter todos os outros prazeres [Politics, 1267a12]. O pensamento é a única atividade que não precisa de nada além de si mesmo para seu exercício. “Um homem generoso precisa de dinheiro para praticar atos generosos […] e um homem moderado precisa da oportunidade da tentação.” [Nicomachean Ethics, 1178a29-30] Qualquer outra atividade, de nível baixo ou elevado, tem que vencer algo fora de si. Isso aplica-se até mesmo às artes performativas, como tocar flauta, cujo fim e propósito residem na própria realização — e mais ainda ao trabalho de produzir coisas, que é feito tendo como objetivo seus resultados, e não por si mesmo, e onde a alegria e a satisfação por uma obra bem-feita vêm depois que a própria atividade chegou ao fim. A frugalidade dos filósofos sempre foi proverbial, e Aristóteles a menciona: “Um homem engajado na atividade teórica não tem nenhuma necessidade… e muitas coisas são apenas obstáculos àquela atividade. Apenas pelo simples fato de que é um humano…, ele vai precisar dessas coisas que estão implicadas na própria condição de ser humano [anthrópeuesthai]” — ter um corpo, viver junto com outros homens etc. No mesmo sentido, Demócrito   recomenda abstinência ao pensamento: ele ensina como o logos deriva o seu prazer de si mesmo (auton ex heautou) [Frag. 146]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

É essa impotência do ego pensante para explicar-se que fez dos filósofos, dos pensadores profissionais, uma tribo tão difícil de lidar. Porque o problema é que o ego pensante, como vimos — à diferença do eu que evidentemente coabita em todo pensador —, não tem qualquer impulso próprio para aparecer em um mundo de aparências. Ele é um personagem escorregadio, invisível não apenas para os outros, mas também para o próprio eu, impalpável e impossível de ser apreendido. Isso em parte se dá porque ele é pura atividade, e em parte porque — como disse Hegel uma vez — “[como] ego abstrato, ele está liberado da particularidade de todas as outras propriedades, disposições etc.; e é ativo apenas em relação ao geral, ao que é o mesmo para todos os indivíduos” [Hegel, Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften, ed. Lasson, Leipzig, 1923, 23: “Das Denken… sich als abstraktes Ich   als von aller Partikularität sonstiger Eigenschaften  , Zustände, usf, befreites verhält und nur das Allgemeine tut in welchem es mit allen Individuen identisch ist.”]. Em todo caso, visto a partir do MUNDO DAS APARÊNCIAS, da praça do mercado, o ego pensante vive escondido, lathé biósas. E nossa questão (“o que nos faz pensar?”) de fato pergunta pela maneira como podemos trazê-lo à luz do dia, como provocá-lo, por assim dizer, a manifestar-se. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]

O melhor, e na verdade o único modo que me ocorre para dar conta da pergunta, é procurar um modelo, um exemplo de pensador não profissional que unifique em sua pessoa duas paixões aparentemente contraditórias, a de pensar e a de agir. Essa união não deve ser entendida como a ânsia de aplicar seus pensamentos ou estabelecer padrões teóricos para a ação, mas tem o sentido muito mais relevante do estar à vontade nas duas esferas e ser capaz de passar de uma à outra aparentemente com a maior facilidade, do mesmo modo como nós avançamos e recuamos constantemente entre o MUNDO DAS APARÊNCIAS e a necessidade de refletir sobre ele. Melhor talhado para esse papel deve ser um homem que não se inclua nem entre os muitos nem entre os poucos (uma distinção que remonta, no mínimo, a Pitágoras), que não tenha nenhuma pretensão a ser um governante de homens, nem mesmo a de estar mais bem preparado para aconselhar, pela sua sabedoria superior, os que estão no poder, mas tampouco que se submeta docilmente às regras: em resumo, um pensador que tenha permanecido sempre um homem entre homens, que nunca tenha evitado a praça pública, que tenha sido um cidadão entre cidadãos, que não tenha feito nem reivindicado nada além do que, em sua opinião, qualquer cidadão poderia e deveria reivindicar. Não deve ser fácil encontrar esse homem. Caso ele possa representar para nós a real atividade de pensar, então não terá deixado atrás de si nenhum corpo doutrinário. Não se terá dado ao trabalho de escrever seus pensamentos, mesmo que deles restasse algum resíduo tangível, pronto para ser registrado depois que ele tivesse acabado de pensar. Vocês já terão percebido que estou pensando em Sócrates  . Não saberíamos quase nada sobre ele, pelo menos nada que pudesse nos impressionar muito, se ele não tivesse causado uma enorme impressão sobre Platão. Talvez não soubéssemos nada sobre ele, nem mesmo através de Platão, se ele não tivesse decidido dar a vida não por um credo ou uma doutrina específica — ele não tinha nenhum dos dois —, mas simplesmente pelo direito de examinar as opiniões alheias, pensar sobre elas e pedir a seus interlocutores que fizessem o mesmo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]

Em outras palavras, é a experiência do ego pensante que está sendo transferida para as coisas. Pois nada pode ao mesmo tempo ser em si e para si mesmo senão o dois-em-um que Sócrates descobriu ser a essência do pensamento, e que Platão traduziu em linguagem conceitual como o diálogo sem som — eme emauto — de mim comigo mesmo [Theaetetus, 189e; Sophist, 263e]. Mas, novamente, não é a atividade de pensar que constitui a unidade, que unifica o dois-em-um; ao contrário, o dois-em-um torna-se novamente Um quando o mundo exterior impõe-se ao pensador e interrompe bruscamente o processo do pensamento. Quando o pensador é chamado de volta ao MUNDO DAS APARÊNCIAS, onde ele sempre é Um, é como se a dualidade em que tinha sido dividido pelo pensamento se unisse, violentamente, voltando de novo à unidade. Existencialmente falando, o pensamento é um estar-só, mas não é solidão; o estar-só é a situação em que me faço companhia. A solidão ocorre quando estou sozinho, mas incapaz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-me companhia, quando, como Jaspers   dizia, “eu falto a mim mesmo” (ich bleibe mir aus), ou, em outras palavras, quando sou um e sem companhia. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Em poucas palavras, a realização, especificamente humana, da consciência no diálogo pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferença e a alteridade, características tão destacadas do MUNDO DAS APARÊNCIAS tal como é dado ao homem, seu hábitat em meio a uma pluralidade de coisas, são também as mesmas condições da existência do ego mental do homem, já que ele só existe na dualidade. E esse ego — o eu-sou-eu — faz a experiência da diferença na identidade precisamente quando ele não está relacionado às coisas que aparecem, mas apenas a si mesmo. (Essa dualidade original, aliás, explica a futilidade da busca de identidade, tão em voga. Nossa moderna crise de identidade só poderia ser resolvida se nunca ficássemos a sós e nunca tentássemos pensar.) Sem aquela lição original, a afirmação de Sócrates sobre a harmonia em um ser que segundo todas as aparências é Um não teria sentido. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

A consciência não é o mesmo que o pensamento; os atos de consciência têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos “intencionais” e, portanto, cognitivos, ao passo que o ego pensante não pensa alguma coisa, mas sobre alguma coisa; e este ato é dialético: ele se desenrola sob a forma de um diálogo silencioso. Sem a consciência, no sentido da consciência de si mesmo, o pensamento seria impossível. O que o pensamento torna real, no meio desse processo infinito, é a diferença na consciência, diferença dada como um simples fato bruto (factum brutum); é apenas sob essa forma humanizada que a consciência torna-se a característica notória de um homem, e não de um deus ou de um animal. Do mesmo modo como a metáfora preenche a lacuna entre o MUNDO DAS APARÊNCIAS e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele, o dois-em-um socrático cura o estar só do pensamento; sua dualidade inerente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

A faculdade de julgar particulares (tal como foi revelada por Kant), a habilidade de dizer “isto é errado”, “isto é belo” e por aí afora não é igual à faculdade de pensar. O pensamento lida com invisíveis, com representações de coisas que estão ausentes. O juízo sempre se ocupa com particulares e coisas ao alcance das mãos. Mas as duas faculdades estão inter-relacionadas, do mesmo modo como a consciência moral e a consciência. Se o pensamento — o dois-em-um do diálogo sem som — realiza a diferença inerente à nossa identidade, tal como é dada à consciência, resultando, assim, na consciência moral como seu derivado, então o juízo, o derivado do efeito liberador do pensamento, realiza o próprio pensamento, tornando-o manifesto no MUNDO DAS APARÊNCIAS, onde eu nunca estou só e estou sempre muito ocupado para poder pensar. A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento, é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, nos raros momentos em que as cartas estão postas sobre a mesa, pode sem dúvida prevenir catástrofes, ao menos para o eu. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Em outras palavras, quando perguntávamos pelo lugar do ego pensante, podíamos bem estar colocando uma pergunta errada e imprópria. O “em toda parte” do ego pensante — chamando à sua presença, de qualquer ponto do tempo ou do espaço, tudo o que lhe apraz, com velocidade maior do que a da luz —, considerado da perspectiva do mundo cotidiano das aparências, é um lugar nenhum. E uma vez que este lugar nenhum não é de modo algum idêntico ao duplo lugar nenhum de onde subitamente aparecemos ao nascer e no qual quase tão subitamente desaparecemos ao morrer, ele só pode ser concebido como o Vazio. E o vazio absoluto pode ser um conceito-limite; embora não inconcebível, ele é impensável. Obviamente, se não existe absolutamente nada, nada há sobre o que pensar. O fato de que tenhamos esses conceitos-limites que encerram nosso pensamento dentro de muros intransponíveis — entre eles, as noções de começo e de fim absoluto — diz-nos apenas que somos realmente seres finitos. Supor que essas limitações pudessem servir para demarcar uma região onde o ego pensante pudesse ser localizado seria apenas dar uma outra variante para a teoria dos dois mundos. A finitude humana, irrevogavelmente determinada por nosso curto tempo de vida, compreendido em uma infinidade de tempo que se estende para o passado e para o futuro, constitui, por assim dizer, a infraestrutura de todas as atividades do espírito. A finitude manifesta-se como a única realidade da qual o pensamento enquanto tal está cônscio, mesmo quando o ego pensante retirou-se do MUNDO DAS APARÊNCIAS e perdeu o sentido de realidade [realness] inerente ao sensus communis   que nos orienta nesse mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 19]

Essa atemporalidade não é certamente a eternidade; ela brota, por assim dizer, do choque entre passado e futuro, ao passo que eternidade é o conceito-limite, impensável porque assinala o colapso de todas as dimensões temporais. A dimensão temporal   do nunc stans, experimentada na atividade de pensar, reúne na sua própria presença os tempos ausentes, o ainda-não e o não-mais. É o que Kant chama de “terra do puro intelecto” (Land des reinen Verstandes), “uma ilha, encerrada dentro de limites inalteráveis pela própria natureza” e “rodeada por um vasto e tempestuoso oceano”, o mar da vida cotidiana [Critique of Pure Reason, B3294 s]. E embora não acredite que esta é a “terra da verdade”, ela é certamente o único domínio em que o conjunto de uma vida humana e seu significado — de resto inacessível a homens mortais (nemo ante mortem   beatus esse dici potest), cuja existência, ao contrário de todas as outras coisas que só começam a ser em sentido enfático quando estão terminadas, termina quando não é mais —, em que esse conjunto inapreensível pode se manifestar como a pura continuidade do eu-sou, uma presença que permanece em meio à transitoriedade sempre mutável do mundo. É por causa dessa experiência do ego pensante que o primado do presente, no MUNDO DAS APARÊNCIAS, o mais transitório dos tempos, tornou-se quase um alvo dogmático da especulação filosófica. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]

No segundo volume desta obra irei tratar da vontade e do juízo, as duas outras atividades do espírito. Vistas da perspectiva dessas especulações temporais, elas dizem respeito às coisas que estão ausentes, seja porque ainda não existem, seja porque já não existem mais; distintamente da atividade do pensamento, no entanto, que lida com os invisíveis em toda experiência e tende sempre a generalizar, essas atividades lidam sempre com particulares e, sob esse aspecto, estão bem mais próximo do MUNDO DAS APARÊNCIAS. Se desejarmos aplacar o nosso senso comum, tão inevitavelmente ofendido pela necessidade que a razão tem de sempre avançar em sua busca sem fim de significado, é tentador justificar essa necessidade unicamente com base no fato de o pensamento ser uma preparação indispensável na decisão do que será e na avaliação do que não é mais. Uma vez que o passado, como passado, fica sujeito ao nosso juízo, este, por sua vez, seria uma mera preparação para a vontade. Esta é inegavelmente a perspectiva legítima, dentro de certos limites, do homem, à medida que ele é um ser que age. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]

Iremos ao mesmo tempo acompanhar um desenvolvimento paralelo na história da Vontade segundo o qual a volição é a capacidade interna pela qual os homens decidem sempre “quem” eles vão ser, sob que forma desejam se mostrar no MUNDO DAS APARÊNCIAS. Em outras palavras, é a vontade, cujo tema é sempre um projeto, e não um objeto, que, em certo sentido, cria a pessoa que pode ser reprovada ou elogiada, ou, de qualquer modo, que pode ser responsabilizada não somente por suas ações, mas por todo o seu “Ser”, o seu caráter. As noções marxistas e existencialistas — que desempenham um papel tão destacado no pensamento do século XX e que fazem crer que o homem é o seu próprio produtor e criador — baseiam-se nessas experiências, embora seja claro que ninguém jamais tenha “criado” a si mesmo ou “produzido” a sua existência; esta, penso eu, é a última das falácias metafísicas, que corresponde à ênfase que a Era Moderna faz recair sobre a vontade como substituta do pensamento. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]

Em Kant, o juízo emerge como “um talento peculiar que somente pode ser praticado, e não ensinado”. O juízo lida com particulares, e quando o ego pensante que se move entre generalidades emerge da sua retirada e volta ao MUNDO DAS APARÊNCIAS particulares, o espírito necessita de um novo “dom” para lidar com elas. Kant acreditava que “uma pessoa tacanha ou obtusa […] pode de fato ser treinada pelo estudo, até mesmo chegar ao ponto de se tornar erudita. Mas como geralmente ainda falta o exercício do juízo a tais pessoas, é comum encontrar-se homens cultos que, na aplicação do seu conhecimento científico, traem-se e revelam aquela falta original que jamais pode ser compensada” [Critique of Pure Reason, B172-B173]. Em Kant, é a razão, com as suas “ideias regulativas”, que vem em socorro do juízo. Mas se a faculdade é uma faculdade do espírito separada das outras, então teremos que lhe atribuir o seu próprio modus   operandi, a sua própria maneira de proceder. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]

A seção final começa com um exame da “conversão” de Nietzsche e de Heidegger à filosofia da Antiguidade, como consequência de sua reavaliação e de seu repúdio à faculdade da Vontade. Iremos nos perguntar então se os homens de ação não estariam talvez em melhor posição para aprender a lidar com os problemas da Vontade do que os pensadores, contemplados no primeiro volume deste estudo. O que estará em jogo aqui é a Vontade como fonte da ação, isto é, como um “poder para começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos” (Kant). Sem dúvida todo homem, pelo fato de ter nascido, é um novo começo, e seu poder de começar pode muito bem corresponder a este fato da condição humana. É na linha dessas reflexões agostinianas que a Vontade foi, às vezes, e não só por Agostinho  , considerada uma atualização do principium individuationis. A questão é como essa faculdade de ser capaz de ocasionar algo novo e, assim, “mudar o mundo”, pode funcionar no MUNDO DAS APARÊNCIAS, isto é, em um ambiente de factualidade que é velho por definição e que transforma inexoravelmente toda espontaneidade de seus recém-chegados no “foi” dos fatos — fieri; factus sum. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]

Concluí o primeiro volume de A vida do espírito com certas especulações sobre o tempo. Foi uma tentativa de esclarecer uma questão bastante antiga, suscitada primeiramente por Platão, sem jamais ter sido por ele respondida: onde fica o topos noetos  , a região do espírito na qual habita o filósofo? [Ver Sophist, 253-254 e Republic, 517] Reformulei a questão no decorrer da investigação: “Onde estamos quando pensamos?” Para o que nos retiramos, quando nos retiramos do MUNDO DAS APARÊNCIAS, interrompemos todas as atividades habituais e iniciamos aquilo a que Parmênides, no começo de nossa tradição filosófica, nos encorajou tão enfaticamente: “Olha para aquilo que, embora ausente [para os sentidos], está tão firmemente presente em nosso espírito.” [Hermman Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker  , Berlim, 1960, vol. I, frag. B4.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

Formulada em termos espaciais, a questão recebeu uma resposta negativa. Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no MUNDO DAS APARÊNCIAS — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o ego pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. Retirou-se do MUNDO DAS APARÊNCIAS, inclusive de seu próprio corpo e, portanto, também do eu, do qual não mais tem consciência. E isso a ponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela morte, e de Valéry poder dizer “Tantôt je pense et tantôt je suis”, dando a entender que o ego pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real, aparente, não pensa. Segue-se daí que nossa pergunta — “onde estamos quando pensamos?” — foi feita de fora da experiência de pensamento e foi, portanto, imprópria. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

Disse anteriormente que as atividades do espírito e especialmente a atividade do pensamento sempre estão “fora de ordem” quando vistas da perspectiva da continuidade incólume de nossos negócios no MUNDO DAS APARÊNCIAS. A cadeia de “agoras” aí desenrola-se inexoravelmente, fazendo com que se compreenda o presente como unindo precariamente passado e futuro: no momento em que tentamos defini-lo, ele já é ou um “não mais” ou um “ainda não”. Desse ângulo, o presente que dura se parece com um “agora” prolongado — uma contradição em termos —, como se o ego pensante fosse capaz de esticar o momento, produzindo, assim, uma espécie de hábitat espacial para si. Mas essa aparente espacialidade de um fenômeno temporal é um erro causado pelas metáforas que usamos habitualmente na terminologia que trata do fenômeno do Tempo. Como nos diz Bergson  , que descobriu isso, são todos termos “tomados de empréstimo à linguagem espacial. Se desejamos refletir sobre o tempo, é o espaço que responde”. Assim, “a duração é sempre expressa como extensão” [Op. cit., p. 5], e o passado é entendido como algo que fica atrás de nós, o futuro fica em algum lugar à nossa frente. A razão para preferir a metáfora espacial é óbvia: para nossas atividades cotidianas no mundo, sobre as quais o ego pensante pode refletir, mas nas quais ele não está envolvido, precisamos de medidas de tempo: e só podemos medir o tempo medindo distâncias espaciais. Mesmo a distinção comum entre justaposição espacial e sucessão temporal pressupõe um espaço estendido no qual a sucessão se deve dar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

Do ponto de vista teórico, o problema sempre foi que a vontade livre — quer concebida como liberdade de escolha, quer como liberdade de começar algo novo — parece ser absolutamente incompatível não só com a divina Providência, mas também com a lei da causalidade; a liberdade da Vontade pode ser pressuposta pela força, ou melhor, pela fraqueza da experiência interior, mas não pode ser provada. A não plausibilidade do pressuposto ou Postulado da Liberdade deve-se às nossas experiências externas no MUNDO DAS APARÊNCIAS, onde, na verdade, a despeito do que disse Kant, raramente começamos uma nova série. Mesmo Bergson, cuja filosofia inteira baseia-se na convicção de que “cada um de nós tem o conhecimento imediato […] de sua espontaneidade livre” [Time and Free Will: An essay on the immediate data of consciousness (1889), trad. F. L. Pogson, Harper Torchbooks, Nova York, 1960, p. 142], admite que, “embora sejamos livres quando queremos nos voltar para nós mesmos, raramente queremos fazer isto”. E: “Os atos livres são excepcionais.” [Ibidem, pp. 240 e 167] (Os hábitos tomam conta da maioria dos nossos atos, do mesmo modo como os preconceitos são responsáveis pela maioria de nossos juízos cotidianos.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]

É claro que o antagonismo do ego pensante em relação à Vontade é de uma espécie bem diferente. O conflito aqui se dá entre duas atividades espirituais que parecem incapazes de coexistir. Quando produzimos uma volição, isto é, quando nos concentramos em um projeto futuro, não nos retiramos menos do MUNDO DAS APARÊNCIAS do que quando estamos seguindo uma linha de pensamento. Pensamento e Vontade antagonizam-se somente no que afetam nossos estados psíquicos; ambos, é verdade, tornam presente para o nosso espírito o que na realidade está ausente; mas o pensamento traz para seu presente duradouro aquilo que ou é ou, pelo menos, foi; enquanto a Vontade, estendendo-se para o futuro, movese em uma região em que tais certezas não existem. Nosso aparato psíquico — a alma em contraposição ao espírito — está equipado para lidar com o que vem da região do desconhecido em sua direção por meio da expectativa, cujas modalidades principais são esperança e medo. Essas duas maneiras de sentir estão intimamente relacionadas, uma vez que ambas estão propensas a dar uma guinada em direção a seu aparente oposto; e, dadas as incertezas desta região, tais mudanças são quase automáticas. Toda esperança traz consigo um medo, e todo medo cura-se ao tornar-se a esperança correspondente. Foi por sua natureza mutável, instável e inquieta que esses sentimentos foram incluídos, pela Antiguidade Clássica, entre os males da caixa de Pandora. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]

Não é o futuro enquanto tal, mas o futuro como projeto da Vontade que nega o que é dado. Em Hegel e Marx  , o poder da negação, cujo motor faz avançar a História, deriva da habilidade que a Vontade pode ter para realizar um projeto: o projeto nega o agora e o passado, ameaçando, assim, o presente duradouro do ego pensante. Uma vez que o espírito, retirado do MUNDO DAS APARÊNCIAS, traz para sua própria presença aquilo que está ausente — o que já não é mais, assim como o que não é ainda —, é como se o passado e o futuro pudessem unir-se em um denominador comum, podendo assim ser salvos, juntos, do fluxo do tempo. Mas o nunc stans, a lacuna entre o passado e o futuro em que localizamos o ego pensante, embora possa absorver aquilo que não é mais, sem qualquer perturbação do mundo exterior, já não pode responder com a mesma serenidade a projetos que a vontade produz para o futuro. Toda volição, ainda que seja uma atividade do espírito, relaciona-se com o MUNDO DAS APARÊNCIAS no qual seu projeto deve realizar-se; em contraste flagrante com o pensamento, nenhum querer jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade. Qualquer volição não só envolve particulares como também — e isso é de grande importância — anseia por seu próprio fim, o momento em que o querer algo terá se transformado no fazê-lo. Em outras palavras, o humor habitual do ego volitivo é a impaciência, a inquietude e a preocupação (Sorge  ), não somente porque a alma reage ao futuro com esperança e medo, mas também porque o projeto da vontade pressupõe um “eu-posso” que não está absolutamente garantido. A inquietação preocupada da Vontade só pode ser apaziguada por um “eu-quero-e-faço”, isto é, por uma interrupção de sua própria atividade e liberação do espírito de sua dominação. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]

A tese central é de que a “maior originalidade” de Hegel está em sua “insistência no futuro, na primazia atribuída ao futuro em relação ao passado” [Op. cit., p. 177]. Isso não nos surpreenderia se não se referisse a Hegel. Por que um pensador do século XIX, tendo em comum com seus predecessores dos séculos XVII e XVIII e com seus contemporâneos a confiança no progresso, não haveria de chegar também à conclusão apropriada, atribuindo ao futuro a primazia sobre o passado? Afinal, o próprio Hegel disse que “todo mundo é filho de seu próprio tempo, e, portanto, a filosofia é seu tempo compreendido em pensamento”. Mas ele também disse, no mesmo contexto, que entender o que existe é a tarefa da filosofia, pois o que existe é razão, ou “o que é pensado é, e o que é existe somente à medida que é pensamento” (“Was gedacht ist, ist; und was ist, ist nur, insofern es Gedanke ist”) [Philosophy of Right, Preface; Encyclopedia, n° 465, 2ª edição]. E é nessa premissa que está baseada a mais importante e decisiva contribuição de Hegel. Pois Hegel é acima de tudo o primeiro pensador a conceber uma filosofia da história, isto é, do passado: reunido pelo olhar retrospectivo do ego pensante e rememorativo, ele é “internalizado” (er-innert), torna-se parte inseparável do espírito através do “esforço do conceito” (“die Anstrengung des Begriffs”), e, desta maneira internalizadora, alcança a “reconciliação” entre Espírito e Mundo. Já houve maior triunfo do ego pensante do que o representado neste panorama? Nessa retirada do MUNDO DAS APARÊNCIAS, o ego pensante não tem mais que pagar o preço da “falta de atenção” e da alienação do mundo. Segundo Hegel, o espírito, por simples força de reflexão, pode assimilar para si — sugar para si, por assim dizer — certamente não todas as aparências, mas qualquer coisa que, nelas, tenha tido significado, considerando tudo o que não é assimilável como acidente irrelevante, sem significação para o curso da História ou para a linha do pensamento discursivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]

À medida que o eu se identifica com o ego volitivo — e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade —, ele existe em uma “transformação contínua de [seu próprio] futuro em um Agora; e para de ser no dia em que não há mais futuro, quando não há mais nada por vir [le jour où il n’y a plus d’avenir, où rien n’est plus à venir], quando tudo chegou e tudo está ‘realizado’” [Koyré  , op. cit., p. 177]. Vista da perspectiva da Vontade, a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro; e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do MUNDO DAS APARÊNCIAS do que sua perda final de um futuro. Essa perda, no entanto, coincide com a realização máxima da vida do indivíduo, que, em seu fim, tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro, se abre para a “tranquilidade do passado”, e, deste modo, para o exame, para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado. Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles  , é o tempo de “paz e liberdade” [Platão, Republic, 329b-c] — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]

Em minha discussão sobre o Pensamento, utilizei o termo “falácias metafísicas”, mas sem tentar refutá-las, como se fossem o simples resultado de erro lógico ou científico. Em vez disso, procurei demonstrar sua autenticidade, derivando-as das experiências reais do ego pensante em seu conflito com o MUNDO DAS APARÊNCIAS. Como vimos, o ego pensante retira-se temporariamente deste mundo, sem nunca chegar a deixá-lo de todo, porque está incorporado a um eu corpóreo, a uma aparência entre aparências. As dificuldades que cercam qualquer discussão sobre a Vontade têm uma semelhança óbvia com aquilo que consideramos verdadeiro nessas falácias, isto é, com o fato de que provavelmente são causadas pela natureza dessa própria faculdade. Enquanto a descoberta da razão e de suas peculiaridades coincidiu com a descoberta do espírito e com o início da filosofia, a faculdade da Vontade só se tornou manifesta muito mais tarde. A questão que nos irá orientar será, portanto, a seguinte: que experiências fizeram com que os homens tomassem consciência de que eram capazes de constituir volições? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]

A primeira e mais fundamental resposta para a questão que levantei no início deste capítulo — “que experiências fizeram com que o homem tomasse consciência de sua capacidade de constituir volições?” — é que essas experiências, hebraicas na origem, não foram políticas e não se relacionaram com o mundo — seja com o MUNDO DAS APARÊNCIAS e a posição que nele o homem ocupa, seja com o campo dos assuntos humanos, cuja existência depende de feitos e ações, mas localizaram-se exclusivamente dentro do próprio homem. Ao lidarmos com experiências relevantes para a Vontade, estamos lidando com experiências que os homens têm não só consigo mesmos, mas também dentro de si mesmos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

Tais experiências não eram de modo algum ignoradas na Antiguidade grega. No volume anterior falei com algum detalhe sobre a descoberta socrática do dois-em-um, a que daríamos hoje o nome de “consciência”, e que tinha originalmente a função do que hoje chamamos de “consciência moral”. Vimos como esse dois-em-um, um simples fato da consciência, realizava-se e articulava-se no “diálogo sem som” que, desde Platão, temos chamado de “pensamento”. Esse diálogo em pensamento de mim comigo mesmo tem lugar somente no estar-só, em uma retirada do MUNDO DAS APARÊNCIAS em que habitualmente estamos junto com os outros e aparecemos como unidade para nós mesmos, bem como para os outros. Mas a interioridade do diálogo em pensamento que faz da filosofia a “atividade solitária” de Hegel (embora tenha ciência de si — o cogito me cogitare de Descartes, o Ich denke de Kant acompanhando silenciosamente tudo o que faço) não se refere tematicamente ao eu, mas sim às experiências e às questões que esse eu, uma aparência entre aparências, elege para serem investigadas. Esse exame meditativo de tudo o que é dado pode ser perturbado pelas necessidades da vida, pela presença de outros, por todos os tipos de assuntos urgentes. Mas nenhum dos fatores que interferem na atividade do espírito surge do próprio espírito, pois os dois-em-um são amigos e parceiros, e manter essa “harmonia” intacta está acima de tudo para o ego pensante. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

Assim, quando se trata de Paulo, a ênfase muda inteiramente do fazer para o crer, do homem exterior que vive no MUNDO DAS APARÊNCIAS (ele mesmo uma aparência entre aparências, sujeito, portanto, à semblância e à ilusão) para uma interioridade que, por definição, jamais se manifesta inequivocamente e que só pode ser examinada por um Deus que também jamais se mostra de maneira inequívoca. Os desígnios desse Deus são impenetráveis. Para os gentios, Sua principal propriedade é a invisibilidade; para Paulo, o mais impenetrável é que “Até antes da lei, existia o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado se não houver lei” (Romanos 5:13), de modo que era inteiramente possível que os “gentios, que não andavam no encalço da justiça, tivessem alcançado a justiça […], ao passo que Israel, que seguia uma lei de justiça, não conseguiu obtê-la” (Romanos 9:30-31). Que a lei não pode ser cumprida, que a vontade de cumprir a lei ativa uma nova vontade, a vontade de pecar, e que uma vontade jamais existe sem a outra — este é o tema de que Paulo trata na Epístola aos Romanos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

Uma vez que a razão descobre essa região interna em que o homem enfrenta somente as “impressões” que as coisas externas deixam em seu espírito, em vez de enfrentar sua existência factual, sua tarefa está cumprida. O filósofo não é mais o pensador que examina qualquer coisa que lhe apareça no caminho, mas sim o homem que se educou para jamais “se voltar para as coisas externas”, onde quer que ele esteja. Epiteto dá um exemplo esclarecedor desta atitude. Não impede seu filósofo de ir aos jogos como qualquer um; mas, ao contrário da multidão “vulgar” dos outros espectadores, ele está ali “interessado” somente em si mesmo e em sua própria “felicidade”; força-se portanto a “querer que aconteça somente o que acontece de fato e que só ganhe aquele que de fato ganha” [The Manual, 23 e 33]. Esse afastamento da realidade enquanto ainda se está em meio a ela — em contraste com a retirada do ego pensante para o estar-só do diálogo sem som de mim comigo mesmo, em que todo pensamento é um re-pensar por definição — tem consequências muito importantes. Significa, por exemplo, que quando alguém vai a algum lugar, não presta atenção a seu objetivo, mas só se interessa pela “própria atividade” de caminhar; ou “quando a deliberação está [unicamente] interessada no ato de deliberar, e não em obter aquilo que se planeja” [Discourses, livro II, cap. xvi]. Nos termos da parábola do jogo, é como se esses espectadores, olhando com olhos que não veem, fossem meras aparições fantasmagóricas no MUNDO DAS APARÊNCIAS. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

A primeira coisa que a razão pode ensinar à vontade é a distinção entre as coisas que dependem do homem, aquelas que estão em seu poder (o eph’ hémin aristotélico) e aquelas que não estão. O poder da vontade reside em sua decisão soberana de interessar-se somente pelas coisas que estão em poder do homem; e estas coisas residem exclusivamente na interioridade humana [The Manual, I]. Logo, a primeira decisão da vontade é não querer o que não pode obter e deixar de não querer o que não pode evitar — em suma, não se interessar por qualquer coisa sobre a qual não tenha poder. (“Que importa se o mundo é composto de átomos ou de partes infinitas, ou se é composto de fogo e de terra? Não é suficiente conhecer […] os limites entre a vontade de obter e a vontade de evitar […] e desconsiderar as coisas que estão além de nós?”) [Fragments, I] E uma vez que “é impossível que o que acontece viesse a ser diferente do que é” [Ibidem, 8], uma vez que o homem, em outras palavras, não tem absolutamente nenhum poder no mundo real, foram-lhe concedidas as faculdades surpreendentes da razão e da vontade, que lhe permitem reproduzir o exterior — completo, mas destituído de sua realidade — dentro de seu espírito, no qual ele é inegavelmente o senhor e o soberano. Ali ele reina sobre si e sobre os objetos de seu interesse  , já que só a vontade pode ser obstáculo para si mesma. Tudo o que parece ser real, o MUNDO DAS APARÊNCIAS, precisa na verdade de meu consentimento para poder ser real para mim. E tal consentimento não pode ser impingido a mim: se recuso-me a consentir, a realidade do mundo desaparece como se fosse uma mera aparição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

Esta é, então, minha justificativa para ter omitido de nossas considerações esse corpo de pensamento, o idealismo alemão, no qual a especulação pura no campo da metafísica talvez tenha alcançado seu clímax junto com o fim. Não quis atravessar a “ponte arco-íris de conceitos” talvez porque não seja suficientemente nostálgica; em todo caso, porque não acredito em um mundo, quer seja um mundo passado ou um futuro, em que o espírito humano, equipado para retirar-se do MUNDO DAS APARÊNCIAS, poderia ou deveria chegar a sentir-se confortavelmente em casa. Além disso, pelo menos nos casos de Nietzsche e de Heidegger, foi precisamente um confronto com a Vontade como faculdade humana, e não como categoria ontológica, que os instou originalmente a repudiar a faculdade e, então, a se converter e depositar sua confiança nessa casa fantasmagórica de conceitos personificados que foi tão obviamente “construída” e decorada pelo ego pensante, em oposição ao volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]

Em outras palavras, as aparências do mundo transformaram-se em um mero símbolo das experiências interiores, com a consequência de que a metáfora, originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o ego pensante ou o volitivo e o MUNDO DAS APARÊNCIAS, entra em colapso. O colapso ocorreu não por causa de um peso superior dado aos “objetos” que confrontam a vida humana, mas sim por uma adesão sectária ao aparato da alma humana, cujas experiências são entendidas como tendo absoluta primazia. Há inúmeras passagens em Nietzsche que apontam para este antropomorfismo fundamental. Para citar apenas um exemplo: “Todas as pressuposições da teoria mecanicista [que em Nietzsche é idêntica às “hipóteses científicas”] — matéria, átomo, gravidade, pressão e força — não são ‘fatos-em-si’, mas sim interpretações feitas com o auxílio de ficções físicas.” [The Will to Power, n° 689, p. 368] A ciência moderna chegou a suspeitas estranhamente semelhantes nas reflexões especulativas sobre seus próprios resultados: os “astrofísicos [de hoje] […] devem considerar a possibilidade de que seu mundo exterior seja somente o nosso mundo interior virado ao avesso” (Lewis Mumford). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]

A “reviravolta”, nesse sentido, tem duas consequências importantes que não têm quase nada a ver com o repúdio pela Vontade. Primeiro, o Pensamento não é mais “subjetivo”. Sem dúvida, sem ser pensado pelo homem, o Ser nunca se manifestaria; ele depende do homem, que lhe oferece uma morada: “a Linguagem é a morada do Ser”. Mas o que o homem pensa não surge de sua própria espontaneidade ou criatividade; é a resposta obediente ao comando do Ser. Segundo, os entes em que o MUNDO DAS APARÊNCIAS se dá para o homem distraem o homem do Ser, que se esconde por trás deles — assim como as árvores escondem a floresta que, no entanto, vista de fora, é constituída por elas. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

O que origina essa mudança é uma radicalização decisiva tanto da antiga tensão entre pensar e querer (a ser resolvida pelo “querer-não-querer”) quanto do conceito personificado, que apareceu em sua forma mais articulada no “Espírito do Mundo” de Hegel, aquele Ninguém fantasmagórico que confere significado àquilo que é factualmente, ainda que de um modo sem sentido e contingente. Em Heidegger, este Ninguém que supostamente atua por trás dos homens de ação encontra agora uma encarnação na existência do pensador, que age sem nada fazer, sem dúvida uma pessoa que pode até ser identificada como “Pensador” — coisa que, entretanto, não significa seu retorno ao MUNDO DAS APARÊNCIAS. Ele continua sendo o solus ipse no “solipsismo existencial”, só que agora o destino do mundo, a História do Ser, passa a depender dele. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Durante as ausências, ela está oculta; é desocultada somente na curta duração de sua aparição. Vivendo em um MUNDO DAS APARÊNCIAS, tudo o que conhecemos ou podemos conhecer é “um movimento que deixa todo ser que emerge abandonar o ocultamento e ir em direção ao desocultamento”, demorando-se ali por um tempo até que, “por sua vez, abandone o desocultamento, partindo e retirando-se para o ocultamento” [Ibidem, p. 596]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Mesmo essa descrição não especulativa, estritamente fenomenológica, está claramente em desacordo com o ensinamento habitual que Heidegger transmite de uma diferença ontológica segundo a qual a-létheia, verdade entendida como não-velamento ou desocultamento, está sempre do lado do Ser; no MUNDO DAS APARÊNCIAS, o Ser revela-se somente na resposta do pensamento do homem em termos de linguagem. Nas palavras de Sobre o humanismo, “A linguagem é a morada do Ser” (“Die Sprache   [ist] zumal das Haus des Seins   und die Behausung des Menschenwesens”) [“Brief über den ‘Humanismus  ’”, agora em Wegmarken   Frankfurt, 1967, p. 191]. Na exegese do fragmento de Anaximandro  , desocultamento não é verdade; pertence aos seres que chegam e que partem para um Ser oculto. O que dificilmente causou mas certamente facilitou essa reversão é o fato de que os gregos, especialmente os pré-socráticos, pensavam com frequência no Ser como physis (natureza), cujo significado original deriva de phyein (crescer), isto é, vir da escuridão para a luz. Anaximandro, diz Heidegger, pensou em genesis   e phthora   em termos de physis, “como formas luminosas de ascensão e declínio” [“The Anaximander Fragment”, Arion, p. 595]. E a physis, segundo um fragmento muito citado de Heráclito, “aprecia ocultar-se” [Frag. 123]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

De todos os filósofos e teólogos que consultamos, só Duns Scotus  , como vimos, estava pronto a pagar o preço da contingência pelo dom da liberdade — o dom do espírito que temos para começar algo novo, algo que sabemos que poderia também não ser. Sem dúvida, a necessidade sempre “agradou” mais aos filósofos do que a liberdade porque eles precisavam, para sua atividade, de um tranquilitas animae (Leibniz  ), uma paz de espírito que — com base na acquiescentia sibi, a concordância de si consigo mesmo — só poderia ser garantida efetivamente através de um assentimento do arranjo do mundo. O mesmo eu que a atividade pensante desconsidera em sua retirada do MUNDO DAS APARÊNCIAS é afirmado e assegurado pela reflexividade da Vontade. Assim como o pensamento prepara o eu para o papel de espectador, a Vontade dá a ele a forma de um “Eu duradouro” que orienta todos os atos de volição particulares. Ela cria o caráter do eu, e foi por essa razão que às vezes foi entendida como o principium individuationis, a fonte de identidade específica do indivíduo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]