Página inicial > Fenomenologia > Schuback (1998:52-55) – “eu”

Schuback (1998:52-55) – “eu”

domingo 24 de março de 2024, por Cardoso de Castro

A filosofia moderna descobre com Descartes   o seu princípio no momento em que, ao se perguntar pelo “começo”, pelo “primeiro” de todas as coisas, pergunta na referencialidade do para mim. A pergunta pelo primeiro e pela origem enuncia-se, então, da seguinte maneira: o que é o primeiro, a origem, para mim? O novo princípio consiste não apenas nesta referência ao eu, ao sujeito, mas à ligadura que até hoje se nos apresenta como indestrutível desta referencialidade. Por este novo princípio, toda pergunta fundamental assume o caráter de uma pergunta referenciada e referenciadora. O princípio do eu, anunciado por Descartes, na célebre formulação de ego cogito   ergo sum — penso logo eu sou (eu existo) significa, de início, a [52] consequência inevitável desta referenciabilidade instalada em toda pergunta pelo princípio do eu. Pois “para mim”, o primeiro de todas as coisas pode apenas ser eu mesmo. O eu mesmo constitui, assim, uma certeza imediata que se pretende fundamento de todas as demais certezas possíveis. Pelo princípio do eu, toda certeza só pode ser uma certeza para mim. A certeza imediata do “eu”, sendo imediata, ou seja, evidente, não mediada por conceitos (ela é que passa a ser a única mediadora, a fonte mesmo de todo conceito), explicita-se, primeiramente, sob a forma de uma dúvida. Se o “eu” consiste no fundamento de toda certeza possível, ele é a única certeza necessária. E à medida que o “eu” apresenta-se como a única certeza necessária, tudo o mais é duvidoso. A dúvida universal mostra-se, desta forma, como o modo de evidenciação da certeza necessária do eu enquanto certeza de sua existência. Por isso, a dúvida universal exprime-se como dúvida da existência de tudo o que existe “fora” de mim. Por que o modo de evidenciação da certeza da existência do eu é a dúvida universal? Para responder a esta pergunta é preciso voltar um pouco atrás e questionar o caráter da certeza imediata do eu. Se imediato significa, como já se aludiu, uma não mediação do conceito, o imediato indica um tipo de apreensão que se costumou chamar, tradicionalmente, de intuição. Ao definir o conhecimento que o eu possui de si mesmo — ao definir o ego   cogito — Descartes usa, repetidamente, o termo percipere, perceber, intuir. O modo imediato de apreensão é a percepção, a intuição. A intuição tem aqui o sentido próprio de intuição sensível, de senso-percepção. O que, no entanto, especifica uma intuição sensível? É a possibilidade de ser afetado e mais agudamente de “ser tocado”. O ser tocado exprime, por sua vez, dois níveis de definição da intuição sensível. O nível passivo ou receptivo da intuição onde o tato guarda, manifestamente, o primado, determinando o modo em que se passará a apreender todos os demais órgãos da sensibilidade. E o nível ativo em que se delimitará o sentido daquilo que é capaz de tocar e, assim, afetar, como materialidade corpórea. A medida que a corporeidade da matéria implica, de imediato, o âmbito das extensões [53] (os contornos), toda existência referida ao princípio do eu apresenta-se como existência “extensiva”, como res extensa   e, consequentemente, toda referenciação como res cogitans. Por que, no entanto, Descartes fala de intuição “sensível” ao definir o modo de conhecimento que o eu possui de si mesmo? O “eu” não é precisamente o princípio do que não pode ser tocado, ou seja, o princípio espiritual por excelência, destituído de toda materialidade corpórea? Como o eu pode ser “intuído”? No sentido ativo de materialidade corpórea, a intuição sensível não é, em si mesma, material. Ela constitui, ao contrário, uma determinação prévia do que é ser — matéria enquanto aquilo que é capaz de afetar no modo do toque, do tato, da mão e, assim, mostrar-se como o imediatamente existente. É esta imediaticidade que pode propiciar certeza relativamente à existência. Materialidade corpórea significa, em última instância, um “sentido” de existência enquanto o que se mostra imediatamente existente, ou seja, na “certeza” de sua existência. Quando Descartes enuncia ego cogito ergo sum, ele anuncia, fundamentalmente, um sentido de existência como materialidade corpórea.

Este como é decisivo, pois instaura o caráter essencialmente analógico da certeza imediata da existência do eu. Pois o eu possui a certeza de sua própria existência no modo da certeza propiciada pela materialidade corpórea, ou seja, por analogia   a este modo de existência. A instauração e articulação desta analogia é a forma própria do cogito e do seu cogitare. Pelo princípio do eu, pensar é, em seu fundamento, cunhar o sentido de materialidade corpórea como paradigma da certeza imediata em todos os níveis de existência. A medida, portanto, que pensar é instaurar e articular esta analogia essencial de forma que todos os níveis de existência se apresentem segundo esta analogia, pensar é, numa expressão mais apropriada, representação, ou seja, a re-apresentação de tudo o que é segundo a analogia com a materialidade corpórea. Isso não significa, porém, que Descartes entendesse que tudo o que é comporta-se, constitui-se, caracteriza-se como o que existe no modo da materialidade corpórea. Não se trata, porém, de [54] empirismo. Se assim o fosse, seria uma consequência inevitável negar a existência de tudo o que não se pode tocar como a alma, como deus. O caráter representativo do cogito, do pensamento, consiste em buscar em todos os níveis da existência não o conteúdo da determinação da materialidade corpórea, mas sim a imediaticidade da certeza que esta determinação é capaz de propiciar. O princípio do eu constitui um princípio de conhecimento pelo qual se pretende evidenciar o sentido de toda existência na analogia com a certeza imediata fornecida pela determinação de materialidade corpórea. Schelling   explicita bem este princípio cartesiano, dizendo:

“Seu princípio é: tudo o que se determina e compreende, de maneira igualmente clara e distinta, como o eu sou deve também ser verdadeiro. Tudo o que se coaduna com esta certeza cega, empírica que eu possuo acerca de meu próprio ser ou se coloca, implicitamente, com o eu sou, ou ainda se deixa comprovar como o que pertence, plenamente, a esta representação, deve ser por mim assumido como tão verdadeiro quanto este (mais do que isso, ele não alcança)” [Schelling, Zur Geschichte   der neueren Philosophie  , p. 47].


Ver online : Marcia Schuback


SCHUBACK, Marcia S. C. O Começo de Deus. A filosofia do devir no pensamento tardio de F.W.J. Schelling. Petrópolis: Editora Vozes, 2021