Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Vallega-Neu (2018:4-5) – Presentificação

segunda-feira 30 de setembro de 2024

Pensar o ser fora de seu horizonte revelador e temporal significa entender o ser como uma presentificação [presencing], e não como uma entidade que já está presente. Chegar à presença ocorre como uma revelação, que é como Heidegger repensa a noção de verdade. Reinterpretando a noção grega de verdade, αλήθεια, em termos de desvelamento, Heidegger entende a verdade do ser como o desvelamento da presentificação. Esta presentificação não é uma coisa; não é um ser, mas o presentificar por meio do qual os entes são revelados em seu ser. Digamos que, em uma tarde ensolarada, sentado em uma varanda, você seja subitamente surpreendido pelos movimentos lentos de uma lagarta; você fica impressionado com o sendo dessa lagarta; que ela é. No pensamento de Heidegger, você não teria primeiro uma representação sensível dessa entidade que, posteriormente, você identificaria como uma lagarta. Tudo isso — a representação, a identificação e o “você” — vem “depois”; já é o resultado do vir à presença daquilo que se revela uma lagarta e de você olhar para ela.

Para Heidegger, a presença precisa ser pensada na voz média, uma forma verbal que não é ativa nem passiva, e que encontramos no grego antigo, mas não nas línguas ocidentais contemporâneas (enfatizo “ocidentais” porque pelo menos algumas línguas africanas têm voz média). Não há nada que presencie, a presentificação não é a atividade de um sujeito ou entidade, mas acontece como a chuva, quando “chove”. Em última análise, a presença não tem fundamento; podemos dizer que a fonte da presença é “abissal” (abgründig). Encontramos isso expresso nas linhas de Angelus Silesius   que já citei no prefácio: “A rosa não tem ’por quê’; ela floresce, porque floresce”.

Veremos como, na sequência dos escritos poiéticos de Heidegger, seu pensamento se moverá cada vez mais para essa dimensão abissal do ser, para o velamento que acompanha o desvelamento, para o não dito que se retira do que é dito (o silêncio da rosa, por assim dizer). Ao mesmo tempo, ele pensará o ser não primariamente como presença, mas como auto-retirada, de modo que, nessa retirada, as coisas e os eventos aparecem como o que está presente. Ao estarem presentes, no entanto, os entes (o que aparece) velam a ocorrência unitária de velamento e desvelamento por meio da qual sua presença acontece. As coisas aparecem, por assim dizer, “planas”; elas não permitem que seu ser ressoe “sem porquê”. Elas se tornam objetos, coisas que se opõem ao nosso olhar, coisas que podemos descrever, contar, classificar e considerar. Esses certamente são todos atributos muito úteis para o desenvolvimento da ciência e para nossas atividades diárias, exceto pelo fato de que, uma vez que operamos no modo de objetividade, a questão do ser não tem mais lugar.

[VALLEGA-NEU  , D. Heidegger’s poietic writings: from contributions to philosophy to the event. Bloomington (Ind.): Indiana university press, 2018]


Ver online : Daniela Valluga-Neu