O impessoal [Das Man], a não pessoa em nosso gabinete de cínicos, lembra, em sua forma despojada, os manequins, tais como são utilizados pelos desenhistas para seus estudos de posições e esboços anatômicos. [270] Mas a posição a que visa Heidegger não é uma posição determinada. Ele observa o “sujeito” na banalidade de seu modo de ser cotidiano. A ontologia existencial que trata do impessoal e da sua existência (Dasein) na cotidianidade aspira realizar algo que não ocorreria, nem mesmo em sonho, ao espírito de uma filosofia anterior: fazer da trivialidade um objeto de teoria “elevada”. Eis uma atitude que basta para fazer pairar inevitavelmente sobre Heidegger uma suspeita de kynismos. O que os críticos condenaram na ontologia existencial heideggeriana como um “erro” talvez seja exatamente seu achado. Ela eleva a arte da banalidade à altura do conceito explícito. Poderia mesmo ser lida como uma sátira invertida, que não rebaixa o que está no alto, mas eleva o que está embaixo. Ela tenta dizer o óbvio tâo explícita e detalhadamente que até os intelectuais deveriam compreendê-lo “autenticamente”. De certo ponto de vista, sob o bizarro refinamento de nuances conceituais, esconde-se no discurso de Heidegger uma astúcia lógica em grande estilo: a tentativa de traduzir um saber misticamente simples da vida simples, “tal como ela é”, para a mais avançada tradição do pensamento europeu. O modo de ser de Heidegger, o de um camponês da Floresta Negra que gosta de viver retirado do mundo, instalado em sua cabana ruminando pensamentos, boné na cabeça, é mais do que uma manifestação exterior. É um modo de ser essencialmente conectado a um modo de filosofar. Encontramos nesse último a mesma simplicidade exigente. Vemos quanta malícia é necessária para dizer, nas condições modernas, uma coisa simples e “primitiva”, de modo a conseguir driblar as complexas distorções da consciência “esclarecida”. Lemos as afirmações de Heidegger sobre o impessoal, sobre o existente humano (das Dasein) na cotidianidade, sobre o falatório, sobre a ambiguidade, a decadência, o estar-lançado, etc. destacando-as do pano de fundo dos retratos precedentes de Mefistófeles e do Grande Inquisidor; lemos tudo isso como uma sequência de estudos, no ritmo daquela elevada banalidade com a qual a filosofia avança às cegas em direção ao “que é o caso”. Precisamente pelo fato da hermenêutica existencial de Heidegger sepultar o mito da objetividade, ela produz o mais duro “positivismo da profundidade”. Assim entra em cena uma filosofia que participa de modo ambivalente do espírito de uma época desencantada, secularizada e tecnificada; ela pensa além de bem e mal e aquém da metafísica; e é somente sobre essa estreita linha que ela pode se mover.
O neo-kynismos teórico do nosso século — a filosofia da existência — demonstra em sua forma de pensar a aventura da banalidade. O que ele [271] mostra são os fogos de artifício do absurdo que começa a se compreender a si próprio. É preciso se representar claramente a fórmula desdenhosa com a qual, na divisa citada acima, Heidegger situa seu trabalho bem distante de qualquer “crítica moralizante”, como se quisesse sublinhar o fato de o pensamento contemporâneo ter deixado para trás de uma vez por todas o pântano do moralismo e que ele não tem mais nada a ver com a “filosofia da cultura”. Esta última não poderia passar de uma “aspiração”: pretensão vâ, pensamento megalômano e visão do mundo ao bom estilo de um século XIX que não se conforma com seu próprio fim. Ao contrário, na “intenção puramente ontológica”, está em obra a frieza ardente da modernidade real; esta não precisa mais de um mero Esclarecimento e já “ultrapassou” toda crítica analítica possível. Pensando ontologicamente e falando positivamente, liberar a estrutura da existência: em nome desse fim, e para evitar a terminologia sujeito-objeto, Heidegger, com uma malícia linguística singular, se lança num jargão alternativo. Visto de longe, esse jargão certamente não é mais feliz do que aquele que o autor pretende evitar, mas, em sua novidade, transparece algo da aventura da primitividade moderna: uma aliança entre os tempos arcaicos e os tempos presentes tardios, um reflexo do início no fim. Na “expressividade” do discurso heideggeriano, vem ao discurso o que de costume nenhuma filosofia acha digno de atenção. Justamente no momento em que o pensamento, de um modo explicitamente “niilista”, reconhece a ausência de sentido como o fundo de toda enunciação ou atribuição possível de sentido, o desenvolvimento supremo da hermenêutica, isto é, da arte de compreender o sentido, se torna necessário para articular filosoficamente o sentido da ausência de sentido. Segundo os pressupostos do leitor, isso pode ser tão excitante quanto frustrante: um movimento circular num vazio compreendido, sombras chinesas da razão.
O que é essa criatura estranha que Heidegger apresenta sob o nome de impessoal [Das Man]? À primeira vista, ela se assemelha a essas esculturas modernas que não representam objetos determinados e em cujas superfícies polidas não se pode identificar uma significação “particular”. Todavia, elas são imediatamente reais e palpavelmente concretas. Nesse sentido, Heidegger sublinha que o impessoal não é uma abstração, por exemplo, um conceito geral que compreenderia “todos os eus”; antes, remetería, como ens realissimum, a algo que está presente em cada um de nós. Mas ele frustra a expectativa por personificação, por uma significação individual e por um sentido existencialmente determinado. Ele existe, mas não há “nada atrás”. Encontra-se lá como a escultura moderna não figurativa: real, cotidiana, parte concreta de um mundo; mas em momento algum remete propriamente a uma pessoa, a uma significação “real”. O impessoal é o neutro de nosso Eu: Eu cotidiano, mas não “eu-mesmo”. De algum modo, ele representa meu lado público, minha mediocridade. Possuo o impessoal em comum com todos os outros, é o meu “Eu” público, e em relação a ele a medianidade tem sempre razão. O impessoal, enquanto Eu inautêntico, se desincumbe de toda decisão própria e pessoal; segundo sua natureza, o impessoal quer se livrar de qualquer peso, quer tomar tudo pelo lado exterior e se ater à aparência convencional. Numa certa perspectiva, é assim que ele se comporta também em relação a si mesmo, pois isso que “ele-mesmo” é, ele o aceita como algo que encontrou entre outras coisas dadas. Assim sendo, o impessoal só pode se compreender como algo dependente, que não tem nada de si mesmo e para si mesmo. São os outros que lhe dizem e lhe dão o que ele é; eis o que explica sua “distração” essencial; com efeito, ele se acha perdido no mundo que o encontra logo de saída. Diz Heidegger:
“De saída, ‘eu não ‘sou’ no sentido do si mesmo próprio, mas sou os outros segundo o modo do impessoal. É a partir desse e como esse que, de saída, sou ‘dado’ a mim ‘mesmo’. De saída, o existente humano (Dasein) é impessoal, e na maioria das vezes permanece assim” (Sein und Zeit , p. 129). “Enquanto impessoal, vivo sob o domínio discreto dos outros.” “Cada um é outro e ninguém é si mesmo. O impessoal… é o ninguém…” (Sein und Zeit , p. 128).
Essa descrição do impessoal, com a qual Heidegger conquista a possibilidade de falar filosoficamente do Eu sem precisar fazê-lo no estilo da filosofia do sujeito-objeto, funciona como uma transposição do termo “sujeito” para linguagem corriqueira, em que ele significa “o submetido”. [1]
Encontrar-se “submetido” significa: não possuir mais si “mesmo”. Jamais a linguagem do impessoal diz algo de pessoal: apenas participa do “falatório” (discours) universal. No falatório, por meio do qual se diz as coisas que meramente se diz, o impessoal se fecha à compreensão real da existência própria, bem como à das coisas faladas. No falatório, aparece o “desenraizamento” e a “inautenticidade” da existência (Dasein) cotidiana. Corresponde-lhe a curiosidade que se entrega de modo fugidio e “fugaz” ao que a cada vez aparece como novidade. Para o impessoal curioso, mesmo quando “se dedica à comunicação”, não se trata de compreender realmente, mas do contrário disso: de evitar a compreensão, de evitar o olhar “autêntico” sobre a existência (Dasein). Heidegger batiza essa recusa com o conceito de distração (Zerstreuung) — expressão que causa sensação. Se tudo que até agora vimos soa absolutamente atemporal e universal, por meio dessa expressão agora sabemos em que ponto da história moderna nos encontramos. Nenhum outro termo é tão cheio de um gosto específico dos meados dos anos 1920 — a primeira modernidade alemã de grande envergadura. Tudo que ouvimos a respeito do impessoal seria, afinal, inconcebível sem a realidade prévia da República de Weimar com sua febre do pós-guerra, seus meios de comunicação de massa, seu americanismo, sua indústria da cultura e do entretenimento, seu promissor negócio da distração.
É somente no clima cínico, desmoralizado e desmoralizante de uma sociedade de pós-guerra, em que os mortos não têm direito de morrer, pois quer-se tirar proveito político de seu desaparecimento, que um impulso, oriundo do “espírito do tempo”, pode se desviar numa filosofia que considerará a existência (Dasein) “existencialmente” e oporá a cotidianidade à existência (Dasein) “autêntica”, consciente e resoluta enquanto “ser-para-a-morte”. É somente após o crepúsculo dos deuses militares, após a “desagregação dos valores”, após a coincidentia oppositorum nas frentes da guerra de material, em que “bem” e “mal” se transportam reciprocamente para o além, é somente após tudo isso que uma tal “tomada de consciência” do “ser autêntico” se fez possível. É somente essa época que se torna atenta de um modo radical à socialização interna; ela adivinha que a realidade é dominada pelos fantasmas, pelos imitadores, pelas máquinas do Eu exteriorizado. Cada um poderia ser um espectro em vez de ser si mesmo. Mas como identificar isso? Quem mostra que é “si-mesmo” em vez de simplesmente impessoal? Isso provoca a devorante preocupação dos existencialistas a respeito da distinção, tão importante quanto impossível, entre o autêntico e o inautêntico, o próprio e o impróprio, o pronunciado e o impronunciado, o resoluto e o irresoluto (que é “simplesmente assim”):
Tudo parece estar autenticamente compreendido, apreendido, dito, mas no fundo não está, ou então parece não estar, e no fundo está. (Sein und Zeit , p. 173)