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Richir (1996:274-276) – Gênesis I, 1-5

sexta-feira 15 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

2) A elaboração simbólica do monoteísmo é confrontada aqui [Gênesis I, 1-5] com uma dificuldade formidável, cuja “resolução” (que não é uma “solução”) traz a marca de sua instituição simbólica. De fato, nas teogonias mitológicas, a criação e a genealogia dos deuses foram, ao mesmo tempo, à sua maneira enigmática, o estabelecimento de um tecido linguístico que, por meio da mediação de intrigas divinas e da recodificação simbólica em termos de deuses, gradualmente trouxe ordem, como se por aproximações sucessivas, ao pensável e ao praticável, em outras palavras, um mundo onde não havia nenhum para começar. Ao mesmo tempo, a teogonia era uma cosmogonia e, nessa cosmogonia, a ordem social legítima (a “boa” realeza, que tem sua fonte no rei dos deuses, entronizado no final da narrativa mitológica) era legitimada, por assim dizer, transcendentalmente. Ao colocar Elohim no início, causando um curto-circuito em tudo o que poderia legitimá-lo como rei, o monoteísmo judaico encontra, ipso facto, o enigma da origem, em Deus, da língua em que ele falará, e mais: chamará, clamará, nomeará. Um enigma nu, enfrentado de frente, como o da própria instituição simbólica. O politeísmo mitológico (“idolatria”) é de fato varrido porque Elohim fala. Mas também porque sua palavra é imediatamente “criadora” daquilo de que fala: basta que ele diga para que seja. Se esse não é mais o abismo do mar, o último vestígio do campo mitológico, é, no entanto, outro abismo, muito mais formidável, porque intratável e porque, supondo que esteja condensado no “mistério” divino, há o risco — como vimos tantas vezes ao longo da história — de que a elaboração simbólica do pensamento fique presa nele de uma vez por todas. É um paradoxo, em todo caso, de um dizer que imediatamente nos faz ser, que parece estar imediatamente preso em seu fazer, de uma palavra que, nesse sentido, separa-se de si mesma ao se “reificar” em uma espécie de “psicose transcendental”. Deus tem que ser muito imenso para suportar isso. Uma imensidão que, em certo sentido, já é a do sublime.

3) Há, no entanto, um retorno, que é o de ver: ver a luz e, acima de tudo, ver que ela é boa (ou bem). Há, portanto, uma preocupação em dizer-fazer, mesmo que seja após o fato, no rescaldo da inocência, e é, de certa forma, a “verificação” da validade do dizer-fazer que inicia o próximo estágio da separação (uma noção crucial no pensamento judaico) entre luz e escuridão. A partir de então, a segunda intervenção linguística pode ocorrer pacificamente por meio da nomeação do Dia e da Noite, a unidade de conta na história da criação. Toda a questão então se torna: o que aconteceu entre o primeiro dizer, que é fazer, e o segundo dizer, que, vindo após a separação, já está mais próximo de uma linguagem, pois nomeia duas “coisas” mutuamente opostas? E o que aconteceu entre o dizer-fazer e o ver (que era bom)? De onde vem esse distanciamento do primeiro dizer, necessário para a separação? E o que é essa luz, em nossos termos, ou seja, nos termos da filosofia? O que é esse dizer, que é, antes de tudo, o dizer da luz, a antecipação da luz (Chouraqui: “uma luz será”) diante da luz que, por sua vez, é visível para Deus? O que é essa linguagem divina, não essa linguagem, que só vem depois, com o Dia e a Noite, mas tudo em antecipação e reconhecimento? O que há entre elas? O que está acontecendo ali? Por qual truque mágico a luz antecipada na fala se torna a luz que é vista e reconhecida como boa? Será que a linguagem divina é sua própria “referência”, aquilo que dá suporte à separação? De modo que ela é sua própria luz? Uma tautologia que não deve ser absurdamente reduzida a uma simples tautologia lógica, uma vez que a luz não é uma identidade e é transformada, metamorfoseada do dizer para o ver, mas que deve ser entendida como uma tautologia simbólica, precisamente a do monoteísmo.

4) Em tudo isso, podemos ver claramente que Deus é o lugar reservado para si mesmo da transposição arquitetônica dos transponíveis imprevisíveis da linguagem (a terra tohu-bohu, a escuridão acima do abismo) para as possibilidades pré-possíveis da linguagem (luz) condensadas em vislumbres possíveis da linguagem (Deus viu que a luz era boa). Quanto ao pronunciamento divino, está tudo em seu “sopro” (espírito) que pairava, na incognoscibilidade da linguagem e da língua, “acima das águas”, ainda transponível, portanto, para a massa de transponíveis imprepensáveis da linguagem. Não há nada a dizer, portanto, que Elohim não poderia ter “dito” outra coisa além da luz: mas o texto implica, como atesta a tradição talmúdica e, em particular, a tradição cabalista, que outras coisas poderiam ter sido ditas e feitas, as quais Elohim viu que não eram “boas”, não conduziam ao estabelecimento da separação entre Dia e Noite e, portanto, à instituição de uma ordem, um cosmo, um mundo. Desse modo, o curto-circuito da mitologia leva esse tipo de pensamento a visualizar apenas uma metamorfose: a do dizer para o ver, do significado sendo feito para a percepção e para a percepção refletida (capaz de discernir o que é “bom”). Isso, por sua vez, implica, em termos quase schellingianos, uma transmutação do poder (Potenz) de dizer, que está todo no sopro divino, em um poder (Macht) de discernir e separar que toma posse de si mesmo como seu poder. Mas isso também implica que nenhum dos termos codificados aqui na linguagem bíblica deve ser tomado como ser (coisa, estado-de-coisas ou estado-de-fatos), nem mesmo Elohim — e mesmo que ele seja condensado em lahvé (“Eu sou, Eu serei”) nas redações iahvistas, a fim de ser em si mesmo, um pouco como Heidegger com Dasein, a única versão bíblica do ser, na primeira pessoa, o Deus bíblico não é, de forma alguma, um ser. Ele é apenas um ser no final da história bíblica: Ele só é um ser no renascimento tardio do texto na tradição filosófica, com a antinomia que ele suscita em relação ao monoteísmo filosófico, para o qual o evento da criação e na criação, a metamorfose do dizer para o fazer e ver, não ocorre (Deus sempre e para sempre viu “o que sempre é”). Seria tão absurdo para a filosofia “fazer existir” o ser dizendo-o como seria tirar um coelho da cartola. Vimos no Timeu que o logos apenas acompanha a noese de “o que sempre é”. A ideia de criação ex nihilo, portanto, deriva de uma confusão arquitetônica, entre dois arranjos arquitetônicos e, portanto, duas instituições simbólicas que são fundamentalmente diferentes, até mesmo heterogêneas. Enquanto a tautologia simbólica da filosofia está entre o pensar e o ser, a do monoteísmo judaico está entre o dizer e o fazer, o fazer necessário, por sua vez, para a percepção e a separação. A luz, nem é preciso dizer, não é um “ser”. Nem dia nem noite.


Ver online : Marc Richir


RICHIR, Marc. L’Expérience du penser. Phénoménologie, philosophie, mythologie. Grenoble: Jérôme Millon, 1996