Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Michel Henry (AD) – a vida, autodoação sem mundo

sábado 24 de agosto de 2024

A questão que enfrentamos, então, é a da autodoação: o que é que se doa sem um mundo, sem que essa doação consista em um mundo? É a vida. Essa é a minha resposta, e agora vou falar sobre isso porque gostaria de tentar colocar esse pressuposto em prática nas ciências humanas. Entretanto, é importante entender como se dá a vida. Ela certamente não pode se dar em um mundo, porque então não seria autodoação. A vida é algo que se experiencia a si mesma. Agora, o experienciar a si mesmo, que é a coisa mais original, não é jamais realizado pelo mundo ou pela intencionalidade. Por exemplo, tocar toca o que é tocado, ver vê o que é visto, ouvir ouve o que é ouvido. Mas qual é a relação do ver consigo mesmo, do ouvir consigo mesmo e, mais radicalmente, da vida consigo mesma? Essa relação é uma revelação a-cósmica. Não é possível à vida ser/estar em um mundo e portar nela um mundo, porque assim ela não se experienciaria a si mesma. Então, teria de dizer: "Sou outro". Note que isso foi dito! Se quisermos entender o que é o fenômeno da vida na medida em que ela se experiencia a si mesma, temos que deixar de lado essa concepção de fenomenalidade. Isso é precisamente o que Descartes   já havia feito.

Tomemos uma modalidade de vida, o medo, por exemplo. O que define a cogitatio para Descartes   é que o medo é experienciado em si mesmo imediatamente, sem distanciamento, sem se ver no mundo. Se a angústia, por exemplo, se visse no mundo e pudesse de se distanciar de si mesma, a psicanálise seria inútil. A prova disso é que os psicanalistas têm muita dificuldade em apreender a angústia porque não podem se desfazer desta ideia de que é por uma tomada de consciência, quer dizer por um distanciamento, que se pode superá-la. Ora, o que não está à distância de si mesmo não pode jamais ser ligado por um fazer-ver, uma intencionalidade ou um ek-stasis. A vida experiencia a si mesma fora do mundo – eu disse de modo a-cósmico – ou seja, ela se dá a si mesma fora do mundo. Somente isto que se dá a si mesmo desta maneira, isto que é invisível, é certo. E, nesse ponto, Descartes   diz, de forma radical, que a única coisa certa é a coisa que não é/está no mundo.

[HENRY, M. Auto-donation: entretiens et conférences. 2e éd ed. Paris: Beauchesne, 2004]


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