Anteriormente expusemos como se chegou, desde Descartes , a admitir, qual evidência subentendida, em toda a filosofia, que o conhecimento é uma representação, tomando-se o sistema das ciências naturais pelo sistema por excelência da representação objetiva. Essa concepção do conhecimento foi também o resultado da epistemologia de Locke, embora tenha partido de um ponto radicalmente diverso do de Descartes .
Qualidades primárias e secundárias
Enquanto para Descartes os conceitos são inatos, Locke recusa-os terminantemente. Segundo ele, a faculdade cognitiva do homem é como uma folha em branco, [1] devendo ser toda “escrita” de fora a fim de chegar ao conhecimento. Essa “escritura”, conforme Locke, acontece exclusivamente pela experiência. [2] Ele distingue as ideias na mente e as qualidades no corpo. Àquilo que a consciência percebe em si mesma chama ideias; estas são produzidas na consciência por certas forças nas coisas, forças que denomina qualidades. [3] Em seguida, distingue as qualidades primárias e as secundárias. As primárias são as qualidades accessíveis a mais de um sentido. Assim a forma de uma maçã, que pode ser percebida pela vista e pelo tacto. A escolástica falava nesse caso de sensibilia communia. As qualidades secundárias, pelo contrário, chamadas pela escolástica sensibilia própria, são os objetos próprios de cada sentido, como, digamos, a cor de uma maçã em relação à vista, o odor com referência ao olfato.
Conforme Locke, as ideias das qualidades primárias são objetivas, e subjetivas as secundárias. A água de certa temperatura pode produzir na mão de alguém a sensação de calor, enquanto causa na mão de outro o sentimento de frio. Determinada figura, porém, nunca pode causar numa pessoa a ideia de quadrado, e noutra a de esfera.
À primeira vista, essa distinção parece assaz inocente. Não é verdade, contudo. A discriminação das qualidades entre secundárias e primárias inclui, implícita, uma teoria da essência do conhecimento humano. Porque, se o conhecimento for concebido como um modo de existir, o que quer dizer como a presença imediata do sujeito cognoscente a uma realidade presente, impossível afirmar que as qualidades primárias das coisas são objetivas e as secundárias não. Na presença imediata do sujeito cognoscente a uma maçã, tanto a forma como o odor ou a cor são realidades presentes, ou seja, objetivas. Locke, no entanto, afirma que só a forma é objetiva e não o odor ou a cor. Que quer significar tal coisa ?
Isso implica que o conhecimento não será concebido como presença imediata do cognoscente a uma realidade presente. Nesse caso, porém, não resta à teoria do conhecimento humano outra possibilidade senão considerá-lo como representação puramente passiva de um mundo “separado” do cognoscente. Nessa concepção o sujeito cognoscente não é entendido como existência, mas como sujeito passivo, sem mundo, sendo este concebido como uma coleção de coisas-em-si (Dinge-an-sich, monde-en-soi), como realidade bruta e, portanto, como um mundo em que o sujeito cognoscente não está envolvido, no qual não vive e com o qual, em princípio, nada tem a ver. Só então se pode dizer que unicamente as qualidades primárias são objetivas, o que implica que só o quantitativo é representado “com exatidão”. No que se refere às qualidades secundárias, Locke julga impossível uma representação exata, [4] porque o cognoscente a estraga com “misturas subjetivas”. [5]
Existem, sem dúvida, diferenças entre Descartes e Locke, mas fundamentalmente ambos concordam no que se refere à definição do conhecimento humano: conhecimento é uma representação-num-sujeito-sem-mundo de um mundo-separado-do-sujeito, e o sistema de representações objetivas é o das ciências naturais, de vez que só as ciências naturais operam com as categorias da quantidade. Os objetos diretos do conhecimento humano são tanto para Descartes como para Locke as próprias ideias, e o “problema crítico” formula-se então como a pergunta acerca da existência real no “mundo exterior” daquelas coisas cujas ideias são julgadas presentes no “mundo interior”.
Dupla possibilidade
Partindo do pensamento comum de Descartes e Locke, dada a distinção entre subjetividade e mundo, fica aberta a possibilidade de várias direções, conforme a ênfase atribuída a um dos membros da oposição. Nesse sentido, podemos distinguir o idealismo e o realismo.
O idealismo ressalta muito a consciência, sua prioridade, sua espontaneidade, sua atividade. Descartes , contudo, ainda ligara a consciência ao mundo, embora sem conseguir justificar o modo como o fez. O idealismo tomou a si superar a ligação da consciência com o mundo, eliminando totalmente o último como fonte do conhecimento. Considera então a percepção do mundo pela consciência, com sua obscuridade e confusão, como uma forma ilegítima de conhecer, forma a ser superada e substituída pela clareza da ideia auto-suficiente. No perceber, a consciência se acha num estado de alienação de si, ou — o que dá na mesma — no mundo material as ideias claras e distintas se encontram num estado de alienação. A consciência tem de voltar a si mesma, superando o ser-alienado-de-si-na-matéria. Uma vez voltada a si mesma, a consciência é auto-suficiente, puro pour-soi (para-si), capaz de reflexão perfeita.
Enquanto no idealismo se isola do mundo a consciência, explicitando-a como atividade pura com relação ao conteúdo do conhecimento, dá-se quase o contrário no realismo. Assim como o idealismo se sente impressionado por certo aspecto da consciência, a saber, sua espontaneidade, exagerando-o, também o realismo contém uma intuição básica do filosofar, ou seja, a concepção da “sensibilidade” (ao contrário da espontaneidade) , da passividade da consciência. De fato, é inegável que as realidades se impõem à consciência perceptora, que esta acha a realidade. Eis por que os realistas jamais quiseram ouvir falar de ideias inatas, sustentando que todo conhecimento provém da experiência da realidade.
Contudo, a realidade do mundo explicita-se de um modo especial, bem como, de resto, a experiência dele. A realidade é para um realista um mundo-em-si; é a realidade bruta, um mundo inumano, enquanto abstrai do homem e de sua consciência perceptora. O realista não vê de modo algum a espontaneidade, a presença ativa da consciência, e pensa estar autorizado a falar de um mundo sem homem. A consciência, por conseguinte, há de ser entendida como pura passividade, como tabula rasa, folha em branco, uma sensível placa fotográfica, um espelho em que se reflete um mundo perfeitamente subsistente em si. [6] O realismo afirma primeiro um mundo que não seria o termo do encontro que constitui o conhecimento, para em seguida assegurar que a consciência está sujeita de um modo completamente passivo à influência da realidade. O mundo é a omnitudo realitatis (realidade total), puramente um espetáculo para a consciência, que o examina com um olhar sobranceiro (regard survolant), sem ponto de vista, sem se encontrar em certa situação, sem estar ela mesma envolvida no mundo.
Assim, no realismo se realça exclusivamente a realidade do mundo, ao contrário do idealismo, para o qual toda realidade se dissolve sempre mais. Entretanto, nem o realismo lançou uma ponte entre a consciência e o mundo. De fato, seguindo Locke, todos os realistas ensinam que o objeto próprio e direto da consciência perceptiva são as próprias impressões perceptivas. Também seria inconcebível que os realistas não pensassem assim, porque a consciência aparece no realismo como separada, isolada da objetividade, sendo, contudo, o conhecimento chamado objetivo. Isso quer dizer que o conhecimento coincide com a realidade isolada do sujeito cognoscente. Para isso, porém, requer-se certa possessão da realidade pelo sujeito. Mas como é possível a posse de uma realidade distinta daquele que conhece ? [7] A realidade, com efeito, não está entitativamente, em sua natureza física, no cognoscente. Não obstante, há nele uma imagem representada, [8] uma species impressa, gravada pela realidade física e constituindo no sujeito, como imitação ou duplicata da realidade-em-si, o objeto próprio e direto do conhecimento. [9] Jamais conheço, portanto, uma cadeira, uma casa ou uma planta, mas só a impressão-cadeira, a impressão-casa, a impressão-planta. O realismo admite dogmaticamente, sem base, de um lado a existência do mundo, e, de outro lado, uma consciência passiva, fechada em si mesma. Não há, pois, ponte alguma entre a consciência e o mundo.
Teoria científica da percepção
Entrementes, a existência dessas impressões perceptivas redunda num grave problema. Ao levantar a questão de saber em que sentido o conhecimento do mundo poderia ser dito objetivo, Descartes respondeu que só há uma ideia clara e distinta do mundo material, a saber, a da extensão. Era o terreno em que se moviam as ciências naturais, e por isso a resposta de Descartes equivalia a privilegiar a experiência das ciências naturais. O mesmo se diga de Locke, para quem só as qualidades primárias das coisas seriam objetivas.
A fim de explicar a existência de impressões perceptivas, os psicólogos, por sua vez, deixaram-se levar pela admiração dos resultados científicos, tratando todos os conteúdos da consciência com o mesmo método que o físico empregava para a matéria, ou seja, a redução dela a seus últimos elementos. O psicólogo, pois, deveria proceder de igual maneira com os conteúdos mentais. Assim é que uma impressão-casa ou uma impressão-planta precisariam ser decompostas em elementos. Estes, pensava-se, haviam de encontrar-se na sensação elementar, causada por estímulos físicos com força mensurável, que exercem, unilateral e fisicamente, uma causalidade determinante sobre a sensibilidade. Pela ligação acumulativa das sensações causadas por inúmeros estímulos físicos elementares, — ligação explicada pelo mecanismo da associação — constrói-se afinal uma impressão-casa ou impressão-planta.
Outros julgaram que essa maneira de falar sobre as sensações ainda não era bastante “científica”. Pensaram em só poder falar “cientificamente” quando não se referissem mais à percepção, mas a condutos nervosos, processos cerebrais etc. Julgou-se, pois, que só era possível uma psicologia da sensação se o psicólogo esquecesse o que lhe interessava propriamente, a fim de dedicar-se mais à fisiologia.
Uma árvore florida no prado
Desde Descartes e Locke acreditava-se ser objetivo só o mundo-para-o-físico. O passo seguinte foi que também no ato de perceber o mundo se designava como objetivo unicamente o que as ciências podiam dizer sobre ele.
Mas o que há propriamente a esse respeito ? Parece a coisa mais trivial do mundo “pretender” falar, p. ex., de uma árvore florida no prado ! Tratando-se da percepção de uma árvore, a física, a fisiologia e a psicologia podem falar tanto da árvore como da percepção dela. Registam toda espécie de processos físicos, fisiológicos e psicológicos. Com o auxilio de instrumentos conseguem tornar acusticamente perceptíveis os processos cerebrais, gravando seu decurso em curvas. Que sentido tem, porém, querer falar só assim da percepção de uma árvore florida no prado ? Deve reduzir-se uma árvore florida a um vácuo em que se acham dispersas aqui e ali forças elétricas, movendo-se de um lado para outro com grande velocidade ? [10] Não tem, pois, nenhum sentido dizer que “naturalmente” percebemos uma árvore florida, para depois submetê-la aos ingredientes de várias ciências, deixando-as decidir o que há de real na árvore florida e o que não há. Donde têm as ciências a competência de julgar a tal respeito ? Em se tratando da percepção de uma árvore, não devemos deixar a árvore ficar onde está ? Ela não é uma série de processos em nosso cérebro, mas uma árvore-no-prado. [11] O que as ciências falam é verdade, e, entretanto, “tudo nelas permanece problemático”.
Mas o que permanece problemático ? A resposta não será difícil. A questão que fica de pé é como os cientistas sabem de que propriamente falam. Quando os cientistas tornam acusticamente sensíveis os processos cerebrais de toda espécie, registrando-os em curvas, e quando falam de cargas elétricas que se movem em várias direções com grande velocidade, não falam nada, se não admitem que afinal tentam falar sobre a percepção de uma árvore em flor ! Na realidade eles sabem do que falam, porque subentendidamente julgam ser a percepção “comum” de uma árvore florida no campo mais original do que os ingredientes de suas diversas ciências. Nesse caso, porém, não há sentido algum em pretender submeter a árvore florida no campo a um sistema de sentidos descobertos pelas ciências, e também em desejar submeter a própria percepção a ingredientes das ciências. [12]
Agora compreendemos o que Husserl tinha em mente ao lançar sua fenomenologia como um “método de fundamentar”. Sua “volta às coisas mesmas” [13] equivalia a um brado de retorno à experiência original do mundo original. O mundo-para-o-físico não é o mundo original, mas construído sobre o mundo original. [14] A experiência da ciência natural não é a original, mas fundada na experiência original. [15] Uma fenomenologia do conhecimento deve submeter a uma crítica fundamental os preconceitos tradicionais a respeito da definição do conhecimento. Este há de ser explicado como ocorre de modo integral. [16] Trata-se “de restituir à experiência seu peso ontológico”.