Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Lima Vaz (1999:16-17) – ethos e praxis

quinta-feira 23 de agosto de 2018

LIMA VAZ  , Henrique C. de. Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 16-17

A transição da intenção significante de ethos do domínio animal para o domínio humano teve lugar no curso da complexa transformação da cultura grega arcaica, da qual se originou a cultura conhecida como clássica. Podemos supor que um dos motivos teóricos profundos dessa transição foi a impossibilidade de abranger e compreender, à luz do incipiente logos demonstrativo, sob o mesmo conceito univoco de physis o mundo humano e o mundo das coisas. As peculiaridades do agir humano, designado com o nome específico de praxis, não permitem pensá-lo em homologia estrita com o movimento dos seres dotados de uma physis específica. Nesse sentido o termo ethos, transposto para a esfera da praxis, acaba por exprimir a versão humana da physis, e assim o entendeu Aristóteles ao interpretar o ethos no homem como o princípio que qualifica os hábitos (hexeis) ou virtudes (aretai) segundo os quais o ser humano age de acordo com sua natureza racional9. A distinção essencial entre physis e ethos é a que vigora entre a necessidade que reina nos movimentos da physis e a freqüência ou quase-necessidade que caracteriza, por meio dos hábitos, os atos de acordo com o ethos [1].

Transposta, pois, para o mundo da praxis humana, a physis é ethos. A existência do ethos é uma evidência primitiva e indemonstrável e torna-se, assim, princípio primeiro da demonstração na esfera do agir humano, sob a forma lógica do axioma inicial na ordem do conhecimento prático: Bonum faciendum, malumque vitandum [2]. Essa proposição traduz a natureza normativa e prescritiva do ethos que regula e ordena a bondade do agir do ponto de vista da sua necessária inserção num contexto histórico-social.

Na primeira tentativa histórica de interpretar o ethos segundo os cânones da Razão, que teve lugar na filosofia grega clássica, dois modelos teóricos se apresentaram, ambos sendo expressão de componentes estruturais da cultura grega tal como vinha se formando a partir do período arcaico: o ethos na sociedade sob a forma da lei (nomos) e o ethos no indivíduo sob a forma da virtude (arete) [3]. Dessas duas versões do ethos procedem as duas disciplinas já bem definidas na enciclopédia aristotélica e que até hoje partilham o domínio da praxis: Ética e Política, unificadas, segundo Aristóteles, em sua qualidade de saber prático, pela unidade objetiva do ethos.


Ver online : Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica I


[1Diz Aristóteles: “O hábito é semelhante à natureza (physei): a natureza é o domínio do ‘sempre’ (aei), o hábito do ‘frequentemente’ (pollakis)", Ret. I, 11, 1370 a 7.

[2Bonum faciendum, malumque vitandum; o bem deve ser feito, o mal deve ser evitado. Este princípio aparece já na natureza vinculante do Bem (deon), segundo Platão, Fédon, 99 e 6, e em sua natureza finalizante (Górgias, 499 e 11-12; Aristóteles, Ética Nic., I, 1, 1094 a 2).

[3Ver H. C. Lima Vaz, Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura, op. cit., pp. 48-61.