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Gaboriau (1962:151-153) – apelo ao questionamento

quinta-feira 17 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Jamais eliminaremos esse privilégio do homem [o questionar], que o torna um “metafísico” em princípio, que é a própria metafísica em princípio. O ponto de partida está garantido, porque o homem sempre terá o poder de duvidar e, portanto, de questionar. Pois questionar é duvidar. Mas de quê? Dúvida sobre o “real”, dúvida sobre a realidade, dúvida sobre a existência? Mas isto é suspender o assentimento a uma realidade, a uma realidade, a uma existência. A própria dúvida — em sua suspensão — envolve uma relação com a existência, que não está em dúvida, porque representa sua fonte secreta. Podemos duvidar, sucessivamente, sobre “esta” e “aquela” razão, mas não sobre a existência daquela mesma coisa que não questionaríamos, se não fizéssemos esse “questionamento” depender de uma referência sempre reivindicada precisamente à existência em questão.

Definir esse ponto de partida, tomar consciência de sua existência, revelar fenomenologicamente seu conteúdo, dispensa-nos de fornecer [152] uma “razão” para a afirmação que fazemos dele. Pois não há questão de provar: nenhum silogismo está envolvido aqui, nenhum meio de raciocínio. É para a positividade do fato metafísico que chamamos a atenção, e para o que ele implica em termos de uma relação existencial inconfundível. Não estamos, de forma alguma, passando de uma premissa para uma consequência. Não estamos abandonando o ponto de partida. Desenvolvemos o que está envolvido nele. Tomamos como um “fato” o que é dado ali: no fato de discutir, a referência indiscutível ao ser que é chamado.

Já que aceitamos o princípio dos diagramas, no que diz respeito ao seu valor pedagógico, vamos tentar resumir o desenvolvimento anterior.

Distinguir entre “questionamento” como tal (ou seja, convocação para interrogatório) e a “questão” formulada (comprometida com uma coisa específica); fragen, de Frage.

Não importa o que será “questionado” aqui ou ali, dependendo do ponto de impacto da inteligência que se detém nas coisas, o que é “capital”, e deve ser examinado primeiro, é o próprio fato dessa “convocação” para o quationamento. A vocação da inteligência se manifesta de maneira completamente primitiva. Os “entes” não seriam questionados, um a um, se, por um lado, não ignorássemos a “razão” que eles vão apresentar, e se, por outro lado, o próprio dinamismo da mente não excluísse a ideia (possivelmente posterior) de que eles poderiam não ter uma. Quando as “coisas” são “postas em questão”, é precisamente em nome do “real”, é em nome da “resposta” existente que elas devem dar: uma resposta que certamente não é visível, mas que é afirmada aos olhos da inteligência (como uma ‘razão’, cuja realidade já é assegurada pela coisa existente).

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A “questão” surge apenas como uma “relação ao ser”. Nenhuma interrogação existe, nenhuma dúvida persiste, exceto quando sustentada por essa relação, e incluindo-a como sua “fonte”. A inteligência pertence ao ser, e todo o ser pertence à inteligência: a origem da questão nos deixa com muitas suspeitas sobre o mandato confiado ao ser-questionador, sobre a “missão” dada a ele; de onde ela pode vir, se não do Ser que tem poder sobre todo o ser (e não faz mais perguntas a si mesmo), tendo resolvido tudo em suas mãos.

A dúvida só pode ser realmente mantida por referência à existência: caso contrário, ela se dissolveria, desapareceria no ar. Sem dúvida, há momentos em que, psicologicamente, você fica preso a “uma” (determinada) questão e fica obcecado com sua formulação: você então se torna prisioneiro dela, e será impossível sair dela até que reflita sobre o próprio “princípio” dessa dúvida que o está prendendo. O mesmo acontece com o homem que (legitimamente) faz sua questão a si mesmo e à capacidade de sua inteligência de compreender a realidade: psicologicamente, pode acontecer que essa questão o invista inteiramente, o possua e o aprisione. Mas a situação psicológica é diferente, com tudo o que ela pode apresentar, dependendo do caso, como complexo e às vezes mórbido; a análise existencial das “positividades” é diferente. O “fato” é que duvidar ou questionar, de fato, implica referência ao real indubitável, — que nós, então, imprudentemente tornamos objeto de dúvida inextricável por um segundo ato, alheios ao primeiro que o sustenta.

Na realidade, toda questão particular é sus-pensa e dependente daquela “relação com o ser” (Bezug zum Seienden) da qual Heidegger fala e que é constitutiva. Não há nenhum ato intelectual humano (inclusive o ato de questionar) que não a inclua. No questionamento geral que estamos empreendendo, não há nada mais primitivo do que esse constitutivo inconfundível do ato de questionar. Esse é o único ponto inegável do qual devemos partir.

Pois a questão é uma pinça: a dúvida que nos aperta tem a existência como sua alavanca, esse “Bezug zum Seienden”, desde que não tenha “denunciado” a razão.


Ver online : Florent Gaboriau


GABORIAU, Florent. L’Entrée en métaphysique: orientations. Bruxelas: Casterman, 1962