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Gaboriau (1962:149-151) – questão [Frage]

quinta-feira 17 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Um esclarecimento metodológico parece-me crucial aqui, — em relação ao que podemos ler de M. Heidegger em Was ist Metaphysik [GA9  ] e Einführung in die Metaphysik [GA40  ].

De acordo com ele, a questão primordial deve ser tirada de Leibnitz (Princípios da Natureza e da Graça, Opp. ed. Gern. tom. VI, 602, n. 7): por que existe algo em vez de nada? (citado na Introdução de Was ist Metaphysik?). Ou novamente (do último panfleto): E quanto ao Bem?

Não nego que essas sejam “questões” metafísicas. Mas o ponto de partida de todas essas questões é mais importante do que as próprias questões — e é importante para qualquer solução.

Esse ponto de partida é a questão em si, independentemente de seu conteúdo. Portanto, não se trata desta ou daquela “questão” (Frage), ou mesmo de sua formulação (Fragesatz), muito menos de uma proposição (Satz) que afirme ou negue algo. Não se trata de afirmar nada: uma proposição, seja ela qual for, seria contestável (por mais amplamente aceita que seja, sempre haverá alguém para lançar dúvidas sobre ela). O que é incontestável, por outro lado, é a contestação, é o fato de levantar questões, é a própria dúvida que provoca o questionamento e dá origem à interrogação.

O que resta, então, é manter essa mesma dúvida como o único ponto indubitável; o que é absolutamente certo é a própria incerteza da qual a questão dá testemunho. Mas tenhamos o cuidado de questionar esse ato puro [150] de questionar em si. Questionar — qualquer que seja a causa — é mostrar que temos certeza de uma coisa e incerteza de outra: ambas ao mesmo tempo, sem as quais o próprio questionamento não existiria. O pêndulo está suspenso em um ponto fixo. E o movimento do pêndulo, quando examinado de perto, revela uma cabeça investigadora que centraliza e controla toda a oscilação. Questionar é, para o ser que se arroga o poder de fazê-lo, dar testemunho implícito de uma missão rogatória com jurisdição existencial: onde a existência, a realidade da razão alegada é dada como decisiva em última instância. É a razão que decide. Duvidar é, de fato, questionar. O poder de duvidar é o poder de suspender o julgamento: suspendê-lo de quê? O simples fato de “fazer” uma questão (de qualquer tipo) implica uma “posição” da inteligência (uma positividade da qual ela não pode ser desalojada, e o fato primitivo do qual nenhuma teoria pode se opor), — uma “posição” que implica e pressupõe tanto a ignorância quanto a certeza: ignorância de qual seria “esta” ou “aquela” razão a ser obtida, dependendo do caso; certeza sobre a existência dessas razões.

Esse é o ponto de partida da metafísica: o “fato” (positivo) de questionar, portanto, de duvidar, portanto, de suspender o julgamento, ou seja, de fazer com que a afirmação (fornecendo a resposta) dependa da própria existência, em nome da qual julgamos. Em última análise, é a existência que fornece o critério, que explica o suspense e cuja “razão” estávamos tentando medir em primeiro lugar. O que é colocado em dúvida no fato da questão não é a positividade da existência, ou a “existência” positiva das “razões” a serem extorquidas ou fornecidas: ao contrário, a mola propulsora das longas (e cientificamente bem-sucedidas) buscas reside nessa garantia radical e fundamental. O que está em dúvida, o que está sendo investigado, é a natureza das revelações a serem descobertas.

Ao chamar a atenção para esse ponto de partida da metafísica, nós mesmos estamos apenas realizando uma espécie de desvelamento fenomenológico; e quando traduzimos isso em “afirmações”, elas têm, sem dúvida, a aparência de afirmação, pela própria declaração de que devem ser feitas. Mas, na realidade, o que afirmamos não é concluído, — por meio de silogismo; é inconfundível (no próprio fato de que talvez ainda duvidemos dele) — e, portanto, revelado, detectado pela análise. Tudo o que temos de fazer é nos tornarmos conscientes disso: o ponto de partida e a partida são dados — dados todos juntos, positivamente.

Portanto, não é o objeto de nenhuma escolha esse dado, essa partida. Heidegger viu claramente que isso pertence à vontade de viver, ao próprio fenômeno da inteligência em ato para investigar, no processo de investigar a si mesma. O que ele chama de [151] “fragende Gesinnung” consiste, diz ele, em uma “Wissen-wollen” (em itálico no texto). E essa “vontade” não é o simples efeito de um desejo ou de uma inclinação: “es ist kein blosses Wünschen und Streben”, — é uma decisão anterior ao nosso assentimento, é uma resolução existente e potencial, que seria totalmente inútil negar, porque chegamos a ela quando é tomada, — e a única atitude inteligente é precisamente tomar nota (mesmo que isso signifique questionar depois, tanto quanto quisermos, sobre a validade deste ou daquele processo na resposta a esta ou aquela questão. ..). Heidegger diz muito bem sobre essa “vontade” anterior à vontade: “Fragen ist Wissen-wollen. Wer will, wer sein ganzes Dasein in einen Willen legt, der ist entschlossen”. (Einführung in die Met., p. 16) (a palavra “é”, sublinhada no texto).

Em suma, o termo “querer” seria bastante inadequado. Pois, quer queiramos ou não, essa é a situação da inteligência capaz de questionar: ela se refere ao “ser”, ou melhor, ao ente [1].


Ver online : Florent Gaboriau


GABORIAU, Florent. L’Entrée en métaphysique: orientations. Bruxelas: Casterman, 1962


[1O perigo de um vocabulário inadequado de fato tem seus riscos. Heidegger cede à tentação de dar uma liberdade ilusória a essa “vontade” fundamental, quando escreve em outro lugar, sempre e corretamente sublinhando a relação inerradicável entre o espírito e o ser:

“Dieser ausgezeichnete Weltbezug zum Seienden selbst ist getragen und geführt von einer frei gewählten Haltung der menschlichen Existenz” (Was ist Metaph., p. 25).

Não é verdade que essa relação do mundo ao ente seja apoiada e guiada por uma atitude livremente escolhida da existência humana. Ao contrário, essa relação é constitutiva da atividade humana, do questionamento humano, quer queiramos ou não