Colocamos, neste curso, uma questão de entre as que pertencem ao domínio das questões fundamentais da metafísica. Ela tem o seguinte teor: «Que é uma coisa?». A questão é já antiga. O que nela é sempre novo é o fato de ter de ser continuamente posta.
Poderia iniciar-se, imediatamente, uma vasta discussão acerca desta questão, antes mesmo de ela ter sido, em geral, corretamente colocada. Num certo sentido, isso seria legítimo, porque a filosofia, quando se inicia, encontra-se numa situação desfavorável. O mesmo não acontece com as ciências, pois a estas as representações, opiniões e maneiras de pensar quotidianas atribuem sempre uma entrada e um acesso imediatos. Se o modo habitual de representar for tomado como a única medida de todas as coisas, a filosofia, então, será sempre algo de deslocado. Este deslocamento, que é próprio da atitude pensante, apenas se pode consumar por meio de um afastamento violento. Os cursos científicos pelo contrário, podem começar imediatamente pela exposição do seu objeto. Os níveis assim escolhidos para o questionar não tornarão a ser abandonados, mesmo que as questões se tornem mais complicadas e mais difíceis.
Pelo contrário, a filosofia efetua uma deslocação permanente das posições e dos níveis. Com ela, muitas vezes, não se sabe qual é a parte de cima e a parte de baixo. Mas, para não tornar excessiva esta desorientação inevitável e quase sempre salutar, é necessário um esclarecimento provisório acerca do que vai ser questionado. Por outro lado, este esclarecimento traz consigo o perigo de se falar pormenorizadamente de filosofia sem pensar no seu sentido. Dedicaremos a primeira lição, e apenas ela, ao esclarecimento do nosso projeto.
A questão enuncia-se do seguinte modo: «Que é uma coisa?». Imediatamente uma dúvida nos assalta. Dir-se-á que faz sentido utilizar e consumir as coisas disponíveis, pôr de lado as coisas que estorvam, arranjar as que são necessárias; mas com a questão «que é uma coisa?» não se pode, propriamente, começar nada. Assim é. Com ela não se pode começar nada. Seria uma grave incompreensão da questão tentarmos provar que com ela se pode começar alguma coisa. Não, com ela nada se pode começar. Esta afirmação acerca da nossa questão é tão verdadeira que devemos, precisamente, compreendê-la como uma determinação da sua essência. «Que é uma coisa?». Esta é uma questão com a qual nada se pode começar; acerca desta questão, mais nada precisa ser dito.
Exatamente, porque a questão já é antiga, tão antiga como o começo da filosofia ocidental com os Gregos, no século VII a.C., será bom caracterizá-la, também, brevemente, pelo seu lado histórico. A esta questão está ligada uma pequena história. Platão conservou-a para nós no seu diálogo Teeteto (174 a e seg.):
«Conta-se, acerca de Tales, que teria caído num poço quando se ocupava com a esfera celeste e olhava para cima. Acerca disto, uma criada trácia, espirituosa e bonita, ter-se-ia rido e dito que ele queria, com tanta paixão, ser sabedor das coisas do céu, que lhe permaneciam escondidas as que se encontravam diante do seu nariz e sob os seus pés.»
Platão acrescentou ao relato desta história, a seguinte afirmação:
«O mesmo escárnio aplica-se a todos os que se ocupam da filosofia.»
A questão «que é uma coisa?» deve determinar-se como uma daquelas de que as criadas se riem. E uma verdadeira criada deve ter sempre qualquer coisa de que se possa rir.
De súbito, com a caracterização da questão acerca do que é uma coisa, aproximamo-nos do que seja a atitude própria da filosofia, que levanta uma tal questão. Filosofia é aquele modo de pensar, com o qual, essencialmente, nada se pode começar e acerca do qual as criadas necessariamente se riem.
Esta determinação conceptual da filosofia não é uma mera brincadeira, mas deve ser meditada. Oportunamente, faremos bem em nos recordarmos de que, no decurso do nosso trajeto, talvez nos aconteça cair num poço, de que não consigamos, durante muito tempo, encontrar o fundo. (p. 13-15)