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TRANSCENDÊNCIA DO MUNDO

Ferreira da Silva (2010:152-156) – corpo

Raça e Mito

segunda-feira 13 de dezembro de 2021

FERREIRA DA SILVA  , Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 152-156

Para a visualização que adotamos neste estudo, o corpo, do mesmo modo que a raça, traduz um ato vital, um processo ou [152] onda vital que se expressa continuamente nos contornos mutáveis do nosso aspecto sensorial.

Schopenhauer   já advertia que o nosso eu somático constitui um estereograma de nossas paixões, o relevo corpóreo das forças pulsionais que nos constituem. O corpo é a vontade original na forma da Representação. Portanto, o corpo não deve ser tomado como tal, como forma espacial e representativa, mas deve ser superado em sua apresentação representativa, para ser conhecido em sua dimensão pulsional. Em última instância, é esse querer primordial, essa Ur-wille  , que se sensorializa em órgãos e sistemas orgânicos e que funda a vida no plano do conhecimento representativo. A cordialidade orgânica traduz a vida para nós, para o nosso aparato cognitivo, e não como ela é em si mesma, em seu impulso surdo e obscuro. Antes de determinar-se em sua configuração tangível e orgânico-representativa, isto é, como corpo, a vida existe em forma fluida e sub-liminal, como pré-corpo, como Sangue. A forma apolínea do corpo emerge da Noite dionisíaca do Sangue, do Sangue passional que é o nosso verdadeiro ser. A força plasmática e criadora do Sangue, do Sangue como emblema real da Vontade, é que produz a partir de si os órgãos e formações somáticas do corpo humano. Não se trata evidentemente do sangue enquanto objeto de hematologia, do conceito citológico do sangue, pois como já dissemos, essa categoria é apreendida ao transcender-se toda a esfera representativa do nosso conhecimento. Somos esse sangue na pulsação inconsciente e pré-representativa do nosso viver; e é na fluidez noturna dessa vida subliminal que nos captamos como vontade, como querer puro. Os corpos e suas particularidades e idiomatismos próprios obedecem às inflexões desse momento pulsional básico, às modulações do Sangue, desde que devemos rebater e reduzir a representação corpóreo-exterior à caudal produtiva dessa protoforma do impulso e do apetite.

[…]

Nessa linha de cogitações e para o seu prosseguimento é mister reportarmo-nos a certas ideias enunciadas por Heidegger em seu célebre opúsculo Carta sobre o Humanismo. Aí vem afirmado que a corporalidade ou animalitas   do homem é algo de projetado, desocultado e “aberto”, à semelhança do que ocorre com o restante ente intramundano. O projeto instituidor do Mundo é simultaneamente o projeto des-fechante de uma animalitas. O corpo humano, como os outros entes, é algo que só se delineia e emerge na abertura de um Weltentwurf [projeto do mundo]. A esfera sensorial da corporalidade, a realidade psicossomática se manifestam, portanto, dessa ou daquela maneira, segundo versões somáticas divergentes, de acordo com o regime de desocultação a que estamos submetidos. Somos investidos de uma certa corporalidade, de uma certa vivência e representação somáticas, nascendo e vivendo sob um determinado céu cultural. O corpo é um fator variável através da História.

Mas a manifestação de uma certa conexão intramundana é correlativamente acompanhada pela nossa referência emocional ao ente manifestado. Somos arrebatados passionalmente pelo conjunto do ente, e sintonizados com as possibilidades oferecidas. Os desempenhos emitidos pelo projeto mundial pro-vocam em nós um empenho emocional e uma consagração   ao assim manifestado. Como temos tentado mostrar em outros ensaios, parece-nos que uma modificação do sentido e talvez mesmo da intenção de certas expressões e ideias heideggerianas poderia acarretar resultados insuspeitados para a problemática que temos em vista. Referimo-nos a uma renovada experiência trópico-pulsional do Ser. A experiência transcendental   do ser transformar-se-ia na experiência de uma força trópico-sugestiva, que libertaria formas do desejável e, correlativamente, formas do [154] desejo ou modulação da vontade. O projeto instaurador de um mundo se confundiría com a abertura de um cenário da apetecibilidade, de sugestões sugeridas pelo Sugestor. Ao desvelamento desse teatro   da apetecibilidade, correspondería a determinação de um ciclo passional, de uma forma patético-corpórea, de uma determinação do Sangue. Em consequência, a totalidade do ente que nos rodeia, como espera infinita da apetecibilidade, seria a contrafigura do nosso corpo, e o nosso corpo seria o inverso desse campo atrativo. A abertura projetiva, de que fala Heidegger, traduzir-se-ia na irrupção de um espaço peculiar da apetecibilidade, numa “fascinação”, com a polar suscitação de centros pulsionais-hominídeos. O anticorpo da circunstância mundial estaria topologicamente em conexão com o repertório passional do nosso ser. Sendo inteiramente consignado e arrebatado pelo ausser   sein  , pelo ser fora da apetecibilidade, sem remissão nem resto, o nosso corpo traduziría estereograficamente o rigor de um especial império fascinante. Ele seria a consígnia dessa servidão. Ao modo de ser variável dessa totalidade trópica, corresponderia o modo de ser variável da afecção corpórea. Toda abertura pulsional teria como correlato um corpo, uma figura somática, uma raça, uma modulação do Sangue.

Totalmente expostos ao sugerido pelo ente, cativos num plexo de desempenhos possíveis, temos um corpo como “empenho” desses desempenhos. Só existe e pode existir um corpo como estrutura referencial, como empenho, como o estar-fora-de-si-estando-no-em-si-da-paixão. Como vimos, na concepção exposta na Carta sobre o Humanismo, o nosso corpo é algo de consignado e oferecido por um Poder ofertante primordial. Designamos essa dimensão ofertante como a dimensão transcendental do Sugestor. E como já tivemos ocasião de mostrar em outro ensaio, o poder instaurador do Sugestor se documenta e afirma no processo mitológico. A vigência de um mundo de [155] desempenhos mitológicos se patenteia na emergência de um sistema passional, mediante a desocultação de uma animalitas, mediante a determinação de um Sangue.

[…]

O Sangue vem dos deuses e nos sacrifícios imemoriais dos povos ele é de novo ofertado às potências divinas. Nessa circulação ritual do Sangue esconde-se o selo de uma verdade insondável, a verdade da fonte oculta das formas visíveis. O Sangue provém da Matriz mítica e todo o ritual do sacrifício é uma contínua confirmação dessa pertinência.


Ver online : Vicente Ferreira da Silva