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Ferreira da Silva (2009:33-35) – mundo - amor - corpo - morte
segunda-feira 26 de junho de 2023
Essa coexistência ou convivência que a morte destrói se realiza no mundo e através do mundo como uma conivência de interesses e paixões num mesmo setor de realidade. É assim que, no cristianismo primitivo, a palavra mundo significa um modo de ser da realidade humana, um lugar de extravio e perdição, implicando uma determinação existencial no seu conceito. O mundo estaria em nós, surgindo na linha de nossa própria concupiscência, de nossa concupiscência geradora de [33] mundo. O que é de interesse para a nossa elucidação é lembrar que a nossa relação com a circunstância mundanal e com os outros homens se perfaz através do nosso corpo e é ele que, como uma determinada situação, nos situa no complexo da realidade empírica. A encarnação se propaga a partir do nosso próprio corpo e a nossa participação no jogo da vida exige a licença da nossa corporalidade, que descerra para nós um mundo de corporalidades. Nossa presença no mundo exigindo a licença da corporalidade, o ser corporal é o órgão de nossa atenção ao mundo. Ele nos fixa, nos compromete e nos lança no tropel de incidentes do mundo terrestre, dando-nos o gosto da temática humana. Isso tudo, visto de uma perspectiva algo realista. Existe outra versão muito mais profunda e inquietante e que se apresenta ao julgarmos a questão em outra base. O realismo supõe uma certa anterioridade do objeto do desejo ao desejo, e uma atração do objeto sobre o sujeito. Não seria o nosso amor pelo mundo que o instauraria em sua determinação fundamental, mas sim o mundo, pelos seus valores objetivos, que nos prenderia à terra. A verdade, porém, de acordo com uma visão mais profunda, é muito outra. É o amor que gera o objeto amado. “O objeto do amor, qualquer que seja, não preexiste ao amor, mas é por ele criado” (Gentile). Nessa ordem de ideias, portanto, o mundo apareceria como o correlato projetivo de nosso amor natural, do nosso sistema de impulsos que dilataria diante de nós o continuum empírico. Nichts ist, das dich bewegt, du selber bist das Rad, das aus sich selbsten läuft und keine Ruhe hat (Angelus Silesius ) [1]. A doutrina platônica do corcel indócil que, pesando sobre o carro da alma, o arrasta para a terra, relaciona-se a essa mesma tese que vê em nossa constituição apetitiva a instância responsável pelo nosso nascimento na carne. Nosso corpo e o complexo de seus órgãos tais como se manifestam no espaço seriam a exteriorização dos nossos impulsos, uma espécie de transposição espacial de nossa concupiscência ontológica. Isso já nos disse Schopenhauer : “O corpo com todas as suas mudanças e atos não é mais do que a Vontade objetivada, isto é, transposta em representação”. [34] O corpo como símbolo de nossa devoção, de nossa militância, é um documento vivo de nosso assentimento ao jogo da vida; a presença corporal já é um índice dessa escolha metafísica que nos põe como dilectores mundi [2]. Na menor parcela de tecido vivo, enquanto a vida se alça como um ramo para o céu, subsiste esse profundo e radical assentimento. O reino dos vivos se definiria, portanto, como a assembleia daqueles que, pela determinação do seu amor e do seu zelo, pelo sentido prospectivo de seu cuidado, gerariam sempre mundo ao seu redor. É justamente essa comunidade de libido e de cuidado que o evento da morte vem interromper, destruindo o vínculo exteriorizado dessa coparticipação. Eis por que a morte foi tida por tantos como uma traição e deslealdade e como uma deserção a um empenho comum e secreto. “Na experiência decisiva da morte do próximo há algo como o sentimento de uma infidelidade trágica de sua parte…” (Landsberg). A deterioração do corpo é a expressão dessa atrofia e involução do complexo de nossas ligações com o mundo e o símbolo dessa derrocada ontológica. É evidente que o corpo, não sendo unicamente um sistema natural, pois serve de veículo para atividades de índole superior, para a exteriorização da realidade pessoal, e sendo já em si mesmo transformado e plasmado pela força dessa realidade, o seu fim envolve ao mesmo tempo a interrupção da relação entersubjetiva.
Ver online : Vicente Ferreira da Silva
[1] “Não há nada que te mova, tu mesmo és a roda que corre por si mesma e não tem repouso.”
[2] dilectores mundi: O conceito é de Santo Agostinho e significa literalmente amantes do mundo. Diz respeito à dimensão amorosa da criação e ao movimento do livre-arbítrio, que visa a Deus como sumo Bem. (N. O.)