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Deleuze (1976:V.11) – O ser, o verdadeiro, o real são avatares do niilismo

sábado 26 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Nietzsche   quer dizer três coisas: 1º) O ser, o verdadeiro, o real são avatares do niilismo. Maneiras de mutilar a vida, de negá-la, de torná-la reativa submetendo-a ao trabalho do negativo, carregando-a como os fardos mais pesados. Nietzsche   não acredita nem na auto-suficiência do real nem na do verdadeiro: pensa-as como as manifestações de uma vontade, vontade de depreciar a vida, vontade de opor a vida à vida. 2º) A afirmação concebida como assunção, como afirmação do que é, como veracidade do verdadeiro ou positividade do real, é uma falsa afirmação. É o sim do asno. Este não sabe dizer não porque diz sim a tudo o que é não. O asno ou o camelo são o contrário do leão; neste a negação se tornava poder de afirmar, mas naqueles a afirmação permanece a serviço do negativo, simples poder de negar. 3º) Esta falsa concepção da afirmação é ainda um modo de conservar o homem. Enquanto o ser é penoso o homem reativo está aí para sustentá-lo. Onde o ser se afirmaria melhor do que no deserto? E onde o homem se conservará melhor? “O último homem vive mais tempo.” Sob o sol do ser ele perde até o gosto de morrer, afundando-se no deserto para aí sonhar longamente com uma extinção passiva. — Toda a filosofia de Nietzsche   se opõe aos postulados do ser, do homem e da assunção. “O ser: dele não temos nutra representação a não se o fato de vivermos. Como o que está morto poderia ser? O mundo não é nem verdadeiro, nem real, mas vivo. E o mundo vivo é a vontade de poder, vontade do falso que se efetua sob poderes diversos. Efetuar a vontade do falso sob um poder qualquer, a vontade de poder sob uma qualidade qualquer é sempre avaliar. Viver é avaliar. Não existe verdade do mundo pensado, nem realidade do mundo sensível, tudo é avaliação, até mesmo e sobretudo o sensível e o real, “A vontade de parecer, de dar ilusão, de enganar, a vontade de devir e de mudar (ou a ilusão objetivada) é considerada neste livro como mais profunda, mais metafísica do que a vontade de ver o verdadeiro, a realidade, o ser, sendo que esta última ainda é apenas uma forma de tendência à ilusão.” O ser, o verdadeiro, o real só valem como avaliações, isto é, como mentiras. Mas, enquanto meios de efetuar a verdade sob um de seus poderes, eles serviram até agora ao poder ou qualidade do negativo. O ser, o verdadeiro, o próprio real são como o divino no qual a vida se opõe à vida. O que reina então é a negação como qualidade da vontade de poder a qual, opondo a vida à vida, nega-se em seu conjunto e a faz triunfar como reativa em particular. A outra qualidade da vontade de poder é, ao contrário, um poder sob o qual o querer é adequado a toda a vida, um poder do falso mais elevado, uma qualidade sob a qual a vida inteira é afirmada e sua particularidade tornada ativa. Afirmar ainda é avaliar, mas avaliar do ponto de vista de uma vontade que goza de sua própria diferença na vida em lugar de sofrer as dores da oposição que ela própria inspira a esta vida. Afirmar não é tomar a cargo, assumir o que é, mas liberar, descarregar aquilo que vive. Afirmar é tornar leve: não é carregar a vida sob o peso dos valores superiores, mas criar valores novos que sejam os da vida, que façam a vida leve e ativa. Só há criação propriamente dita à medida que, longe de separarmos a vida do que ela pode, servimo-nos do excedente para inventar novas formas de vida. “E o que vocês chamaram de mundo, é preciso que comecem a criá-lo: sua razão. sua imaginação, sua vontade, seu amor devem tornar-se este mundo. ” Mas essa tarefa não encontra sua realização no homem. Por mais longe que possa ir, o homem eleva a negação até uma potência de afirmar. Mas afirmar em todo seu poder, afirmar a própria afirmação é o que ultrapassa as forças do homem. “Nem mesmo o leão pode ainda criar valores novos mas o poder do leão é capaz de tornar-se livre para criações novas”. O sentido da afirmação só pode ser destacado se levarmos em conta estes três pontos fundamentais na filosofia de Nietzsche  : não o verdadeiro, nem o real, mas a avaliação; não a afirmação como assunção, mas como criação; não o homem, mas o super-homem como nova forma de vida. Se Nietzsche   atribui tanta importância à arte é precisamente porque ela realiza todo este programa: o mais elevado poder do falso, a afirmação dionisíaca ou o gênio do sobre-humano.


Ver online : Gilles Deleuze


GILLES DELEUZE. NIETZSCHE E A FILOSOFIA. Tradução de Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962. Tr. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Editora Rio, 1976