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Casanova (Marx:78-79) – afetos [Befindlichkeit]
segunda-feira 4 de março de 2024
O que leva Heidegger a afirmar o caráter eminentemente dispositivo, atmosférico, afetivo da abertura de mundo é uma transformação radical do modo mesmo de pensar os afetos na tradição, antes de tudo na tradição moderna. De maneira geral, os afetos foram pensados na tradição moderna como a terceira classe de entidades subjetivas, uma terceira classe marcada justamente pela falta de toda e qualquer determinação propriamente dita de verdade. Se as representações e as vontades podiam por um lado ser tomadas como verdadeiras, uma vez que as representações podiam corresponder plenamente aos objetos representados e as vontades podiam ser fonte de uma ação justa ou injusta, os afetos por outro lado eram tomados como um mero adorno que acompanhava a realização das representações e que no máximo perturbava indesejavelmente as possibilidades de execução racional da ação. O luto, por exemplo, poderia afetar a nossa concentração e nos tornar mais recolhidos, mas não era capaz, por exemplo, de alterar os conteúdos claros e distintos de nossas representações ou mesmo nos levar a uma ação não universalizável. Com ou sem a tristeza, a soma dos ângulos internos continuava sendo 180° e uma ação que poderia se transformar em máxima continuava sujeita única e exclusivamente ao imperativo categórico. [78] A questão é que esse modo de colocação do problema acaba perdendo de vista um elemento absolutamente central. As atmosferas afetivas não perturbam apenas a nossa inclinação para certas representações e ações, mas alteram também radicalmente a própria constituição de nossos focos existenciais, lançando imediatamente uma série de elementos em um espaço de absoluta indiferença fenomenológica, de tal modo que certos entes e mesmo espaços ônticos determinados deixam de se mostrar para nós ou se mostram antes em meio a um recolhimento incontornável de si. O que temos, assim, em meio à estrutura ser-no-mundo não é de maneira alguma uma permanência de tudo como está e a constituição de algo assim como um filtro subjetivo por meio das disposições, das tonalidades afetivas, das atmosferas. Não é apenas para as coisas que voltamos a nossa percepção que as tonalidades afetivas determinam o que aparece, mas, ao contrário, elas atravessam o próprio campo de manifestação como um todo, instituindo de maneira originária o que percebemos e não percebemos. A melancolia, por exemplo, não funciona apenas como um filtro subjetivo que matizaria de maneira específica a percepção que se tem de objetos. Ao contrário, a melancolia nos fecha de certa maneira sobre nós mesmos, de tal modo que uma gama bastante significativa de entes permanece a partir dessa atmosfera encoberta. Todos conhecem a velha história de uma escrava trácia e do filósofo Tales de Mileto contada por Platão no Teeteto: “Se diz que uma ladina e graciosa escrava trácia troçou certa vez de Tales por este ter caído a um poço, enquanto observava os astros e olhava o céu. Dizia ela que Tales, ansioso por conhecer as coisas dos céus, não se dava conta do que estava atrás dele e mesmo a seus pés” [Platão, Teeteto, 147a]. O que é interessante é que raramente se pergunta sobre em que [79] disposição afetiva se achava Tales ao se concentrar a tal ponto nas coisas do céu que acabou se esquecendo das coisas da terra e caindo em um buraco. A perda da atenção para as coisas terrenas e a concentração da atenção nas coisas suprassensíveis não acontece jamais sem uma atmosfera que torne possível tal alheamento e dispersão. É preciso que haja aqui uma atmosfera de serenidade que incita ao devaneio e que abre o espaço existencial de um modo tal, que o existente experimenta a si mesmo e a totalidade do ente a partir de uma estranha presença/ausência. Bem, mas isso ainda não nos diz por que é que Heidegger afirma em seus Conceitos fundamentais da metafísica (Mundo — Finitude — Solidão) que “o tédio é uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual”.
[CASANOVA , Marco. A falta que Marx nos faz. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017]
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