Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Boutot (1993:49-51) – Kehre - Viragem

sexta-feira 26 de maio de 2017

Os comentadores distinguem habitualmente dois períodos na obra de Heidegger, separados por aquilo a que chamamos, de acordo com o próprio Heidegger, a viragem (die Kehre): a procura do sentido do ser, caraterística da época de O Ser e o Tempo, cede o lugar, a partir dos anos 30, a uma meditação sobre a verdade do ser. Na segunda parte da sua obra, Heidegger não procura mais discernir o ser ou o sentido do ser partindo da análise preliminar do fenômeno da compreensão do ser, mas pensa o ser ou a verdade do ser virando-se diretamente para o próprio ser. «O pensamento saído de O Ser e o Tempo», diz Heidegger, «insiste mais sobre a própria abertura do ser que sobre a abertura do ser-aí face à abertura do ser. Tal é o significado da viragem, pela qual o pensamento se vira sempre mais resolutamente para o ser enquanto ser» (Questions IV, Paris, Gallimard, 1976, p. 279). E de notar que esta viragem do pensamento heideggeriano não corresponde a uma inversão e ainda menos a uma negação, mas antes a um aprofundamento da problemática desenvolvida em O Ser e o Tempo. «A viragem», diz Heidegger, «não é uma modificação do ponto de vista de O Ser e o Tempo, mas apenas, nela, o pensamento que se procurava chega à região dimensional a partir da qual Ser e Tempo   é experimentado» (Questions III, Paris, Gallimard, 1966, p. 97). Ao penetrar neste domínio da verdade do ser, Heidegger atinge a dimensão no seio da qual se desenvolvia já o pensamento publicado em O Ser e o Tempo.

Esta entrada no domínio da verdade do ser é acompanhada de uma transformação na forma e no âmbito dos escritos. O estilo «heroico» do primeiro Heidegger (apelo à autenticidade do ser-aí na antecipação resoluta da morte em O Ser e o Tempo, por exemplo) dá lugar ao «quietismo« (cf. o opúsculo Serenidade) e mesmo, dirão alguns, ao misticismo do segundo (escuta da voz do ser). A linguagem torna-se mais despojada. Heidegger não forja, em particular, novas palavras para exprimir o seu pensamento, procedimento que era típico da época de O Ser e o Tempo, antes se contenta com a utilização de palavras da linguagem corrente, procurando recuperar-lhes o sentido original, utilizando para isso os recursos da etimologia. De um modo geral, podemos dizer que o pensamento do segundo Heidegger é menos «investigativo», menos orientado para a procura (ainda metafísica) de um fundamento (não metafísico), mais atento e mais submisso àquilo que se dá a pensar. «Não é o investigar», dirá Heidegger em 1957, «que é o que é próprio do pensamento, mas o dar ouvidos à palavra onde se promete aquilo que deverá vir à investigação» (O desdobramento da palavra, Acheminement Vers la Parole, Paris, Gallimard, 1976, p. 97). A violência das primeiras interpretações da tradição metafísica, por exemplo, sucederá a escuta paciente daquilo que quiser ser trazido à palavra, no caso em que por si mesmo isso venha à palavra. (1993, p. 49-51)


Ver online : Alain Boutot