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Bernard Stiegler – Técnica e Tempo (aceleração)

segunda-feira 18 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

Embora nossa compreensão atual da técnica ainda seja amplamente determinada pelas categorias de fim e meio, desde a Revolução Industrial e as profundas mudanças sociais que a acompanharam, a técnica, com as mudanças repentinas que sofreu, assumiu uma nova opacidade, que as grandes divisões do conhecimento terão cada vez mais dificuldade em explicar. Nos últimos anos, que foram marcados pela “modernização” e pela desregulamentação política e econômica em relação direta com o desenvolvimento tecnocientífico, essa dificuldade tornou-se perceptível em todas as esferas sociais: a questão profunda da relação entre técnica e tempo está agora emergindo na cena pública, diariamente, superficialmente, mas de forma cada vez mais sensível. Cada dia traz algo novo em técnica e, com isso, a obsolescência e a obsolescência que inevitavelmente a acompanham: a obsolescência das técnicas existentes que se tornaram obsoletas e a obsolescência das situações sociais que elas tornaram possíveis: pessoas, regiões, profissões, conhecimento e patrimônio de todos os tipos que devem se adaptar ou desaparecer. O que é verdade para as maiores estruturas econômicas e políticas também é verdade para as próprias estruturas vitais. Isso perturba profundamente — e perigosamente — a “compreensão que o ser-aí tem de seu ser”. É como se fosse possível decretar o divórcio entre a tecnociência, de um lado, e, de outro, a cultura que a produziu, devorada pela técnica:

Se, em certos aspectos, a ciência, como um sistema particular de representação, e a técnica, como um sistema particular de ação, são apenas subcomponentes da cultura, em outro sentido elas se destacam dela para constituir sistemas amplamente autônomos, interagindo com a cultura, mas opondo-se a ela como o universal ao particular, o abstrato ao concreto, o construído ao dado, o anônimo ao vivido, o sistêmico ao existencial. É por isso que há uma necessidade urgente de examinar as maneiras pelas quais a ciência e a técnica interagem com a cultura e, mais especificamente, de perguntar como a ciência e a técnica afetam o futuro das culturas, seja no sentido da desintegração progressiva ou no sentido do desenvolvimento de novas formas culturais [1].

O fato de que essas possibilidades estão agora sendo consideradas nas esferas mais amplas da comunidade mundial fica claro pelo peso da preocupação ecológica nos recentes desenvolvimentos geopolíticos. O “Apelo de Heidelberg”, emitido por ocasião da cúpula mundial do Rio de Janeiro, e o “contra-apelo” que respondeu a ele, testemunham a penetração dessas questões nas mais altas esferas da ciência, técnica, indústria, economia e diplomacia.

Bertrand Gille, que previu essas dificuldades na conclusão de seu Prolégomènes à une histoire des techniques, mostra que a civilização industrial se baseia no desenvolvimento cada vez mais intenso de um processo de inovação permanente. O resultado é um divórcio, se não entre cultura e técnica, pelo menos entre as taxas de evolução cultural e as taxas de evolução técnica. A técnica evolui mais rapidamente do que as culturas. Há um avanço e um atraso — uma tensão que também é característica do alongamento do tempo em que consiste toda a temporalização. Tudo acontece, então, como se o tempo saltasse para fora de si mesmo: não apenas porque os processos de tomada de decisão e antecipação (no domínio do que Heidegger chama de Besorgen, traduzido como “ocupação”) se movem irresistivelmente para o lado da “máquina” ou do complexo técnico, mas também porque, de certa forma, como escreve Blanchot  , tomando emprestado um título de Jünger, a época atravessa a parede do tempo. Atravessar o muro do tempo seria, se o entendêssemos a partir da perspectiva da barreira do som, ir mais rápido que o tempo: uma aeronave supersônica, mais rápida que seu próprio som, provoca um violento choque sônico ao atravessar o muro. Mas como seria quebrar a barreira do tempo se isso significasse ir mais rápido do que o tempo? Que tipo de choque seria causado por um dispositivo que fosse mais rápido do que seu “próprio tempo”? Esse choque significaria que a velocidade é mais velha que o tempo. Pois ou o tempo, juntamente com o espaço, determina a velocidade, e não há como romper a barreira do tempo nesse sentido, ou o tempo, assim como o espaço, só pode ser pensado do ponto de vista da velocidade (que permanece impensada).

É claro que não é o desenvolvimento da técnica como um todo que dá origem a esse tipo de reflexão. Ela só faz sentido quando certos efeitos do desenvolvimento tecnológico são cuidadosamente examinados — por exemplo, os efeitos do que na computação é chamado de tempo real e na mídia, de “ao vivo” — de forma a alterar profundamente, e talvez radicalmente, o evento como tal, o local de ocorrência do tempo tanto quanto o local de ocorrência do espaço. E embora seja verdade que a manipulação genética oferece a possibilidade de uma aceleração revolucionária da diferenciação vital, mas também, e acima de tudo, a ameaça da indiferenciação, a questão da velocidade também está contida nela.


Ver online : Bernard Stiegler


STIEGLER, Bernard. La technique et le temps. Tomes 1-3. Paris: Fayard, 2018 (ebook)


[1Jean Ladrière, Les Enjeux de la rationnalité. Le défi de la science et de la technologie aux cultures, Aubier-Montaigne/Unesco, 1977, p. 18.