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Arendt (CH:§18) – identidade e objetividade
sábado 14 de dezembro de 2019
Roberto Raposo
A durabilidade do artifício humano não é absoluta; o uso que dele fazemos, embora não o consuma, o desgasta. O processo vital que permeia todo o nosso ser também o atinge; e se não usarmos as coisas do mundo elas também perecerão mais cedo ou mais tarde, e retornarão ao processo natural global do qual foram retiradas e contra o qual foram erigidas. Se abandonada a si mesma ou descartada do mundo humano, a cadeira voltará a ser lenha, e a lenha perecerá e retornará ao solo de onde surgiu a árvore que foi cortada para transformar-se no material sobre o qual se trabalhou e com o qual se construiu. Mas, embora este possa ser o fim inevitável de todas as coisas individuais no mundo, sinal de que são produtos de um fabricante mortal, não é tão certo que seja o destino final do próprio artifício humano, no qual todas as coisas podem ser constantemente substituídas com o ir e vir de gerações que habitam o mundo construído pelo homem. Além disto, embora o uso provavelmente desgaste os objetos, o desgaste não é o destino destes últimos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade.
É esta durabilidade que empresta às coisas do mundo sua relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a «objetividade» que as faz resistir, «obstar» [1] e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários. Deste ponto de vista, as coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana; sua objetividade reside no fato de que — contrariando Heráclito, que disse que o mesmo homem jamais pode cruzar o mesmo rio — os homens, a despeito de sua contínua mutação, podem reaver sua invariabilidade, isto é, sua identidade no contato com objetos que não variam, como a mesma cadeira e a mesma mesa. Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo feito pelo homem, e não a sublime indiferença de uma natureza intacta, cuja devastadora força elementar os forçaria a percorrer inexoravelmente o círculo do seu próprio movimento biológico, em harmonia com o movimento cíclico maior do reino da natureza. Somente nós, que erigimos a objetividade de um mundo que nos é próprio a partir do que a natureza nos oferece, que o construímos dentro do ambiente natural para nos proteger contra ele, podemos ver a natureza como algo «objetivo». Sem um mundo interposto entre os homens e a natureza, haveria eterno movimento, mas não objetividade. (ARENDT , Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 149-150)
Original
The durability of the human artifice is not absolute; the use we make of it, even though we do not consume it, uses it up. The life process which permeates our whole being invades it, too, and if we do not use the things of the world, they also will eventually decay, return into the over - all natural process from which they were drawn and against which they were erected. If left to itself or discarded from the human world, the chair will again become wood, and the wood will decay and return to the soil from which the tree sprang before it was cut off to become the material upon which to work and with which to build. But though this may be the unavoidable end of all single things in the world, the sign of their being products of a mortal maker, it is not so certainly the eventual fate of the human artifice itself, where all single things can be constantly replaced with the change of generations which come and inhabit the man - made world and go away. Moreover, while usage is bound to use up these objects, this end is not their destiny in the same way as destruction is the inherent end of all things for consumption. What usage wears out is durability.
It is this durability which gives the things of the world their relative independence from men who produced and use them, their “objectivity” which makes them withstand, “stand against” 2 and endure, at least for a time, the voracious needs and wants of their living makers and users. From this viewpoint, the things of the world have the function of stabilizing human life, and their objectivity lies in the fact that — in contradiction to the Heraclitean saying that the same man can never enter the same stream — men, their ever - changing nature notwithstanding, can retrieve their sameness, that is, their identity, by being related to the same chair and the same table. In other words, against the subjectivity of men stands the objectivity of the man - made world rather than the sublime indifference of an untouched nature, whose overwhelming elementary force, on the contrary, will compel them to swing relentlessly in the circle of their own biological movement, which fits so closely into the over - all cyclical movement of nature’s household. Only we who have erected the objectivity of a world of our own from what nature gives us, who have built it into the environment of nature so that we are protected from her, can look upon nature as something “objective.” Without a world between men and nature, there is eternal movement, but no objectivity.
Ver online : Philo-Sophia
[1] Conotação implícita no verbo latino obicere, do qual derivou mais tarde nossa palavra «objeto», e na palavra alemã Gegenstand, objeto. «Objeto» significa literalmente «algo lançado» ou «posto diante».