Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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poder-ser

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

Seinkönnen  

Dizer que “o que está em jogo para o ser-aí é o próprio ser” significa afirmar mais exatamente o seguinte: o próprio PODER-SER. Como existente, o ser-aí é livre para determinadas possibilidades [Möglichkeit  ] de si mesmo. Ele é o seu PODER-SER mais próprio. Essas possibilidades de si mesmo não são possibilidades lógicas vazias, que se encontram fora de si mesmo e com as quais ele pode se meter ou contra as quais ele poderia se fechar. Ao contrário, elas são enquanto tais determinações da existência. Se o ser-aí é livre para determinadas possibilidades de si mesmo, para o seu PODER-SER, então ele é nesse ser-livre-para; ele é essas possibilidades mesmas. Elas só são enquanto possibilidades do existente, como quer que ele venha a se comportar em relação a elas. A possibilidade é respectivamente a possibilidade do ser mais próprio. Ela só é enquanto a possibilidade que ela é, na medida em que o ser-aí é nela existente. Ser o PODER-SER mais próprio mesmo, assumi-lo e manter-se na possibilidade, compreender-se a si mesmo na liberdade fática de si mesmo, isto é, o compreender a si mesmo no ser do PODER-SER mais próprio, é o conceito existencial originário do compreender. [tr. Casanova  ; GA24  : §20]


O compreender, que a seguir será analisado mais profundamente (cf §31), contém, numa abertura prévia, as remissões mencionadas. Detendo-se nessa familiaridade, o compreender atém-se a estas remissões como o contexto em que se movem as suas referências. O próprio compreender se deixa referenciar nessas e para essas remissões. Apreendemos o caráter de remissão dessas remissões de referência como ação de signi-ficar. Na familiaridade com essas remissões, a presença [Dasein  ] “significa” para si mesma, ela oferece o seu ser e seu PODER-SER a si mesma para uma compreensão originária, no tocante ao ser-no-mundo. O em virtude de significa um ser para, este um ser para isso, esse um estar junto em que se deixa e faz em conjunto, esse um estar com da conjuntura. Essas remissões estão acopladas entre si como totalidade originária. Elas são o que são enquanto ação de signi-ficar (Be-deuten), onde a própria presença [Dasein] se dá a compreender previamente a si mesma no seu ser-no-mundo. Chamamos de significância o todo das remissões dessa ação de significar (Bedeuten  ). A significância é o que constitui a estrutura de mundo em que a presença [Dasein] CH: a presença [Dasein] em que o homem vigora já é sempre como é. Em sua familiaridade com a significância, a presença [Dasein] é a condição ôntica de possibilidade para se poder descobrir os entes que num mundo vêm ao encontro no modo de ser da conjuntura (manualidade) e que se podem anunciar em seu em-si. A presença [Dasein] como tal é sempre esta presença [Dasein] com a qual já se descobre essencialmente um contexto de manuais. Sendo, a presença [Dasein] já se CH: mas não como uma ação e feito, dotados de eu, de um sujeito. Mas, presença [Dasein] e ser referiu a um “mundo” que lhe vem ao encontro, pois pertence essencialmente a seu ser uma referencialidade. STMSC: §18

Numa fala ôntica, usamos muitas vezes a expressão “compreender alguma coisa” no sentido de “estar a cavaleiro de…”, “estar por cima de…”, “poder alguma coisa”. O que se pode no compreender, assumido como existencial, não é uma coisa, mas o ser como existir. Pois no compreender subsiste, existencialmente, o modo de ser da presença [Dasein] enquanto PODER-SER. A presença [Dasein] não é algo simplesmente dado que ainda possui de quebra a possibilidade de poder alguma coisa. Primariamente, ela é possibilidade de ser. Toda presença [Dasein] é o que ela pode ser e o modo em que é a sua possibilidade. A possibilidade essencial da presença [Dasein] diz respeito aos modos caracterizados de ocupação com o “mundo”, de preocupação com os outros e, nisso tudo, a possibilidade de ser para si mesma, em virtude de si mesma. A possibilidade de ser, que a presença [Dasein] existencialmente sempre é, distingue-se tanto da possibilidade lógica e vazia como da contingência de algo simplesmente dado em que isso ou aquilo pode “se passar”. Como categoria modal do ser simplesmente dado, a possibilidade designa o que ainda não é real e que nunca será necessário. Caracteriza o somente possível. Do ponto de vista ontológico, é inferior a realidade e a necessidade. Como existencial, a possibilidade é, ao contrario, a determinação ontológica mais originária e mais positiva da presença [Dasein]; assim como a existencialidade, numa primeira aproximação, ela só pode ser trabalhada como problema. O solo fenomenal que permite a sua visão oferece o compreender como o PODER-SER capaz de propiciar aberturas. STMSC: §31

Enquanto existencial, a possibilidade não significa um PODER-SER solto no ar, no sentido de uma “indiferença do arbítrio” (libertas indifferentiae). Sendo essencialmente disposta, a presença [Dasein] já caiu em determinadas possibilidades e, sendo o PODER-SER que ela é, já deixou passar tais possibilidades, doando constantemente a si mesma as possibilidades de seu ser, assumindo-as ou mesmo recusando-as. Isso diz, no entanto, que para si mesma a presença [Dasein] é a possibilidade de ser que está entregue a sua responsabilidade, é a possibilidade que lhe foi inteiramente lançada. A presença [Dasein] é a possibilidade de ser livre para o PODER-SER mais próprio. A possibilidade de ser é, para ela mesma, transparente em diversos graus e modos possíveis. STMSC: §31

Compreender é o ser desse PODER-SER, que nunca está ausente no sentido de algo que simplesmente ainda não foi dado, mas que, na qualidade essencial de nunca ser simplesmente dado, “é” junto com o ser da presença [Dasein], no sentido de existência. A presença [Dasein] é de tal maneira que ela sempre compreendeu ou não compreendeu ser dessa ou daquela maneira. Enquanto um tal compreender, ela “sabe” a quantas ela mesma anda, isto é, a quantas anda o seu PODER-SER. Esse “saber” não nasce primeiro de uma percepção imanente de si mesma, mas pertence ao ser do pre [das Da  ] da presença [Dasein] que, em sua essência, é compreender. E somente porque a presença [Dasein] é em compreendendo o seu pre [das Da], ela pode perder-se e desconhecer. E à medida que compreender está na disposição e, nessa condição, lançado existencialmente, a presença [Dasein] já sempre se perdeu e desconheceu. Em seu PODER-SER, portanto, a presença [Dasein] já se entregou a possibilidade de se reencontrar em suas possibilidades. STMSC: §31

Compreender é o ser existencial do próprio PODER-SER da presença [Dasein] de tal maneira que, em si mesma, esse ser abre e mostra a quantas anda seu próprio ser. Trata-se de apreender ainda mais precisamente a estrutura desse existencial. STMSC: §31

Como abertura, o compreender sempre alcança toda a constituição fundamental do ser-no-mundo. Como PODER-SER, o ser-em é sempre um PODER-SER-no-mundo. Este não apenas se abre como mundo, no sentido de possível significância, mas a liberação de tudo que é intramundano libera esse ente para suas possibilidades. O manual se descobre, então, como tal em sua utilidade, aplicabilidade e prejudicialidade. A totalidade conjuntural desvela-se como o todo categorial de uma possibilidade do contexto manual. Por outro lado, também a “unidade” do que é simplesmente dado numa variedade multiforme, a natureza, só pode ser descoberta com base na abertura de uma possibilidade que lhe pertence. Será por acaso que a questão do ser da natureza visa as “condições de sua possibilidade”? Em que se funda esse questionamento? Nele não pode faltar a questão: por que o ente, destituído do caráter de presença [Dasein], é compreendido em seu ser quando se abre nas condições de sua possibilidade? Kant   pressupõe algo assim, talvez com razão. Mas essa pressuposição não pode mais permanecer sem verificar seu direito. STMSC: §31

Por que o compreender, em todas as dimensões essenciais do que nele se pode abrir, sempre conduz as possibilidades? Porque, em si mesmo, compreender possui a estrutura existencial que chamamos de projeto. O compreender projeta o ser da presença [Dasein] para o seu em virtude de e isso de maneira tão originária como para a significância, entendida como mundanidade de seu mundo. O caráter projetivo do compreender constitui o ser-no-mundo no tocante a abertura do seu pre [das Da], enquanto pre [das Da] de um PODER-SER. O projeto é a constituição ontológico-existencial do espaço de articulação do PODER-SER fático. E, na condição de lançada, a presença [Dasein] se lança no modo de ser do projeto. O projetar-se nada tem a ver com um possível relacionamento frente a um plano previamente concebido, segundo o qual a presença [Dasein] instalaria o seu ser. Ao contrário, como presença [Dasein], ela já sempre se projetou e só é em se projetando. Na medida em que é, a presença [Dasein] já se compreendeu e sempre se compreenderá a partir de possibilidades. O caráter projetivo do compreender diz, ademais, que a perspectiva em virtude da qual ele se projeta apreende as possibilidades mesmo que não o faça tematicamente. Essa apreensão retira do que é projetado justamente o seu caráter de possibilidade, arrastando-o para um teor dado e referido, ao passo que, no projetar, o projeto lança previamente para si mesmo a possibilidade como possibilidade e assim a deixa ser. Enquanto projeto, compreender é o modo de ser da presença [Dasein] em que a presença [Dasein] é as suas possibilidades enquanto possibilidades. STMSC: §31

Com base no modo de ser que se constitui através do existencial do projeto, a presença [Dasein] é sempre “mais” do que é fatualmente, mesmo que se quisesse ou pudesse registrá-la como um ser simplesmente dado em seu teor ontológico. No entanto, ela nunca é mais do que é faticamente, porque o PODER-SER pertence essencialmente a sua facticidade. Também a presença [Dasein], enquanto possibilidade de ser, nunca é menos, o que significa dizer que aquilo que, em seu PODER-SER, ela ainda não é, ela é existencialmente. Somente porque o ser do “pre” [das Da] recebe sua constituição do compreender e de seu caráter projetivo, somente porque ele é tanto o que será quanto o que não será é que ela pode, ao se compreender, dizer: “venha a ser o que tu és!” CH: mas quem “tu” és? Aquele como o qual tu te projetas a ti mesmo – aquele como tu te tornas. STMSC: §31

O projeto sempre diz respeito a toda a abertura de ser-no-mundo; como PODER-SER, o próprio compreender possui possibilidades prelineadas pelo âmbito do que nele é passível de se abrir essencialmente. O compreender pode colocar-se primariamente na abertura de mundo, ou seja, a presença [Dasein] pode, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreender-se a partir de seu mundo. Ou ainda, o compreender lança-se primariamente para o em virtude de, isto é, a presença [Dasein] existe como ela mesma CH: mas não como sujeito, indivíduo ou pessoa. Brotando de seu si mesmo em sentido próprio, o compreender é próprio ou impróprio. “Im”-próprio não significa que a presença [Dasein] rompa consigo mesma e “só” compreenda o mundo. Mundo pertence ao seu ser-si-mesmo como ser-no-mundo. Por isso, o compreender propriamente e o compreender impropriamente podem ser autênticos ou inautênticos. Enquanto um PODER-SER, o compreender está inteiramente impregnado de possibilidade. O translado para uma dessas possibilidades fundamentais da compreensão não deixa de lado as demais. A transferência inerente ao compreender é uma modificação existencial do projeto como um todo porque o compreender sempre diz respeito a toda a abertura da presença [Dasein] como ser-no-mundo. No compreender de mundo, o ser-em também é sempre compreendido. Compreender de existência como tal é sempre compreender mundo. STMSC: §31

Enquanto presença [Dasein] fática, o seu PODER-SER já sempre se transferiu para uma possibilidade de compreender. STMSC: §31

A abertura do pre [das Da] da presença [Dasein] no compreender é ela mesma um modo do PODER-SER da presença [Dasein]. A abertura do ser em geral CH: como ela está aí e o que significa ser? consiste na projeção do ser da presença [Dasein] para o em virtude de e para a significância (mundo). No projetar de possibilidades já se antecipou uma compreensão de ser. Ser é compreendido CH: não significa, porém, que o ser “seja” por graça do projeto no projeto e não concebido ontologicamente. O ente que possui o modo de ser do projeto essencial de ser-no-mundo tem a compreensão de ser como um constitutivo de seu ser. O que anteriormente foi suposto de forma dogmática recebe agora sua demonstração a partir da constituição de ser em que a presença [Dasein] como um compreender é o seu pre [das Da]. Dentro dos limites dessa investigação, só se poderá alcançar um esclarecimento satisfatório do sentido existencial dessa compreensão de ser com base na interpretação temporânea de ser. STMSC: §31

Enquanto existenciais, a disposição e o compreender caracterizam a abertura originária de ser-no-mundo. No modo de ser do humor, a presença [Dasein] “vê” possibilidades a partir das quais ela é. Na abertura projetiva dessas possibilidades, ela já está sempre afinada pelo humor. O projeto do PODER-SER mais próprio está entregue ao fato de ser lançado no pre [das Da] da presença [Dasein]. Mas não será que, com a explicação da constituição existencial do ser do pre [das Da], no sentido do projeto projetado, o ser da presença [Dasein] se torna ainda mais enigmático? Com efeito. Devemos primeiro deixar despontar todo o enigma desse ser, quer para fracassar com autenticidade na tentativa de “resolvê-lo”, quer para recolocar de modo novo a questão do ser-no-mundo que se lançou em projetos. STMSC: §31

No compreender, a presença [Dasein] projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para possibilidades em compreendendo é um PODER-SER que repercute sobre a presença [Dasein] as possibilidades enquanto aberturas. O projetar inerente ao compreender possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração. Nela, o compreender apropria-se do que compreende. Na interpretação, o compreender vem a ser ele mesmo e não outra coisa. A interpretação funda-se existencialmente no compreender e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas no compreender. De acordo com o teor dessa análise preparatória da presença [Dasein] cotidiana, investigaremos o fenômeno da interpretação no compreender de mundo, ou seja, no compreender impróprio, e isso no modo de sua autenticidade. STMSC: §32

Mas, ver nesse círculo um vício, buscar caminhos para evitá-lo e também “senti-lo” apenas como imperfeito inevitável, significa um mal-entendido de princípio acerca do que e compreender. Não se trata de equiparar compreender e interpretação a um ideal   de conhecimento, que determinado em si mesmo não passa de uma degeneração e que, na tarefa devida de apreender o ser simplesmente dado, perdeu-se na incompreensão de sua essência. Para se preencher as condições fundamentais de uma interpretação possível, não se deve desconhecer as suas condições essenciais de realização. O decisivo não e sair do círculo, mas entrar no círculo de modo adequado. Esse círculo do compreender não e um cerco em que se movimenta qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura-prévia existencial, própria da presença [Dasein]. O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, decerto, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa e de não se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos populares e inspirações. Na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia, ela deve assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas. Porque, de acordo com seu sentido existencial, compreender e o PODER-SER da própria presença [Dasein]; as pressuposições ontológicas do conhecimento histórico ultrapassam, em princípio, a ideia de rigor das ciências mais exatas. A matemática não e mais rigorosa do que a história. E apenas mais restrita, no tocante ao âmbito dos fundamentos existenciais que lhe são relevantes. STMSC: §32

O nexo da fala com o compreender e a sua compreensibilidade torna-se claro a partir de uma possibilidade existencial inerente à própria fala, que é a escuta. Não dizemos por acaso que não “compreendemos” quando não escutamos “bem”. A escuta é constitutiva da fala. E, assim como a articulação verbal está fundada na fala, assim também a percepção acústica funda-se na escuta. Escutar é o estar aberto existencial da presença [Dasein] enquanto ser-com os outros. Enquanto escuta da voz do amigo que toda presença [Dasein] traz consigo, o escutar constitui até mesmo a abertura primordial e própria da presença [Dasein] para o seu PODER-SER mais próprio. A presença [Dasein] escuta porque compreende. Como ser-no-mundo articulado em compreensões com os outros, a presença [Dasein] obedece na escuta à coexistência e a si própria como “pertencente” a essa obediência. O escutar recíproco de um e outro, onde se forma e elabora o ser-com, possui os modos possíveis de seguir, acompanhar e os modos privativos de não ouvir, resistir, fazer frente a, defender-se. STMSC: §34

Se o compreender deve ser entendido primordialmente como PODER-SER da presença [Dasein], as possibilidades de ser que a presença [Dasein], enquanto impessoal, abriu e das quais se apropriou devem ser extraídas de uma análise do compreender e da interpretação próprias do impessoal. Essas possibilidades próprias revelam assim uma tendência essencial do ser da cotidianidade. Explicitada de maneira suficiente em sua estrutura ontológica, a cotidianidade há de desenvolver um modo de ser originário da presença [Dasein] de tal maneira que, a partir desse modo de ser, possa demonstrar-se em sua concreção existencial o fenômeno de estar-lançado, inerente à presença [Dasein]. STMSC: §34

Tudo parece ter sido compreendido, captado e discutido autenticamente quando, no fundo, não foi. Ou então parece que não o foi quando, no fundo, já foi. A ambiguidade não diz respeito apenas ao dispor e ao tratar com o que pode estar acessível num uso e numa fruição, mas já se consolidou no compreender como um PODER-SER, no modo do projeto e da doação preliminar de possibilidades da presença [Dasein]. Não somente todo mundo conhece e discute o que se dá e ocorre, como também todo mundo já sabe falar sobre o que vai acontecer, o que ainda não se dá e ocorre, mas que “propriamente” deve ser feito. Todo mundo sempre já pressentiu e farejou de antemão o que outros já pressentiram e farejaram. Essa atitude de estar na pista e, na verdade, a partir do ouvir dizer – quem autenticamente “está na pista” não fala sobre isso – é o modo mais traiçoeiro em que a ambiguidade propicia à presença [Dasein] possibilidades, a fim de sufocá-la em sua força. STMSC: §37

Este termo não exprime qualquer avaliação negativa. Pretende apenas indicar que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] está junto e no “mundo” das ocupações. Este empenhar-se e estar junto a… possui, frequentemente, o caráter de perder-se no caráter público do impessoal. Por si mesma, em seu próprio PODER-SER si mesmo mais autêntico, a presença [Dasein] já sempre caiu de si mesma e decaiu no “mundo”. Decair no “mundo” indica o empenho na convivência, na medida em que esta é conduzida pela falação, curiosidade e ambiguidade. O que anteriormente denominamos de impropriedade da presença [Dasein] recebe agora, com a interpretação da decadência, uma determinação mais precisa. Impróprio e não próprio não significam, de forma alguma, “propriamente não”, no sentido de a presença [Dasein] perder todo o seu ser nesse modo de ser. Impropriedade também não diz não mais ser e estar no mundo. Ao contrário, constitui justamente um modo especial de ser-no-mundo em que é totalmente absorvido pelo “mundo” e pela co-presença [Dasein] dos outros no impessoal. Não ser ele mesmo é uma possibilidade positiva dos entes que se empenham essencialmente nas ocupações de mundo. Deve-se conceber esse não-ser como o modo mais próximo de ser da presença [Dasein], o modo em que, na maioria das vezes, ela se mantém. STMSC: §38

Essa tranquilidade no ser impróprio não conduz, todavia, à inércia e à inatividade. Ao contrário, move para “promoções” desenfreadas. O decair no “mundo” já não tem mais repouso. A tranquilidade tentadora aumenta a decadência. No tocante à interpretação da presença [Dasein], pode surgir a convicção de que compreender as culturas mais estranhas e a sua “síntese” com a própria cultura levaria a um esclarecimento verdadeiro e total da presença [Dasein] a seu próprio respeito. A curiosidade multidirecionada e a inquietação de tudo saber dá a ilusão de uma compreensão universal de presença [Dasein]. Mas o que propriamente se deve compreender permanece, no fundo, indeterminado e inquestionado; não se compreende que compreender é um PODER-SER que só pode ser liberado na presença [Dasein] mais própria. Essa comparação de si mesma com tudo, tranquila e que tudo “compreende”, move a presença [Dasein] para uma alienação na qual se lhe encobre o seu PODER-SER mais próprio. O ser-no-mundo decadente, tentador e tranquilizante é também alienante. STMSC: §38

Contudo, nessa demonstração da decadência não se evidencia um fenômeno que fala diretamente contra a determinação pela qual se indicou e caracterizou a ideia formal   de existência? Será que a presença [Dasein] pode ser compreendida como no ente em cujo ser está em jogo o PODER-SER, se justamente em sua cotidianidade a presença [Dasein] se perdeu a si mesma e, na decadência, “vive” fora de si mesma? A decadência no mundo só constituirá, porém, uma “prova” fenomenal contra a existencialidade da presença [Dasein], caso se admita a presença [Dasein] como um eu-sujeito isolado, como um si-mesmo pontual, do qual ela parte e se move. Nesse caso, o mundo seria um objeto. A decadência no mundo sofreria assim uma transformação em sua interpretação ontológica, tornando-se algo simplesmente dado nos moldes de um ente intramundano. Se, no entanto, mantivermos o ser da presença [Dasein] na constituição de ser-no-mundo, revelar-se-á que enquanto modo de ser deste ser-em, a decadência apresenta a prova mais elementar a favor da existencialidade da presença [Dasein]. Na decadência, trata-se apenas de PODER-SER-no-mundo, embora no modo da impropriedade. A presença [Dasein] só pode decair porque nela está em jogo o ser-no-mundo, no modo de compreender e dispor-se. Em contrapartida, a existência própria não é nada que paire por sobre a decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ela é apenas uma apreensão modificada da cotidianidade. STMSC: §38

A presença [Dasein] existe faticamente. O que se questiona é a unidade ontológica de existencialidade e facticidade, a copertinência essencial destas com relação àquela. A presença [Dasein], em razão da disposição a que pertence de modo essencial, possui um modo de ser em que ela é trazida para diante de si mesma e se abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser de um ente que sempre é ele mesmo as suas possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas (projeta-se para elas). O ser-no-mundo, ao qual pertencem, de maneira igualmente originária, tanto o ser junto ao que está à mão quanto o ser-com os outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-mesmo. O ser-no-mundo já está sempre em decadência. Pode-se, portanto, determinar a cotidianidade mediana da presença [Dasein] como ser-no-mundo aberto na decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao “mundo” e em seu ser-com os outros, está em jogo o seu PODER-SER mais próprio. STMSC: §39

No propósito de alcançar o ser da totalidade do todo estrutural, partiremos das últimas análises concretas da decadência. Imergir no impessoal junto ao “mundo” das ocupações revela algo como uma fuga de si mesmo da presença [Dasein], e isso enquanto seu próprio PODER-SER propriamente. Esse fenômeno da fuga de si mesmo e de sua propriedade parece ser, na verdade, o solo fenomenal menos indicado para se investigar o que haverá de seguir. Pois nessa fuga, a presença [Dasein] não se coloca diante de si mesma. De acordo com a tendência característica da decadência, o desvio conduz para longe da presença [Dasein]. Não obstante, em tais fenômenos, deve-se evitar confundir os caracteres ôntico-existenciários com a interpretação ontológico-existencial. Deve-se também evitar passar por cima dos fundamentos fenomenais positivos presentes naqueles caracteres e importantes para essa investigação. STMSC: §40

Para se compreender o que se quer dizer com fuga decadente de si mesma, inerente à presença [Dasein], é preciso lembrar que a constituição fundamental da presença [Dasein] é ser-no-mundo. Aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal. Como se distingue fenomenalmente o com quê a angústia se angustia daquilo que o medo teme? O com quê da angústia não é, de modo algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer nenhuma conjuntura essencial. A ameaça não possui o caráter de algo prejudicial que diria respeito ao ameaçado na perspectiva determinada de um específico PODER-SER fático. O com quê da angústia é inteiramente indeterminado. Essa indeterminação não apenas deixa faticamente indefinido que ente intramundano “ameaça” como também diz que o ente intramundano é “irrelevante”. Nada do que é simplesmente dado ou que se acha à mão no interior do mundo serve para a angústia com ele angustiar-se. A totalidade conjuntural do manual e do ser simplesmente dado que se descobre no mundo não tem nenhuma importância, ela se perde em si. O mundo possui o caráter de total insignificância. Na angústia, não se dá o encontro disso ou daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura ameaçadora. STMSC: §40

A angústia não é somente angústia com… mas, enquanto disposição, é também angústia por… O por quê a angústia se angustia não é um modo determinado de ser e de possibilidade da presença [Dasein]. A própria ameaça é indeterminada, não chegando, portanto, a penetrar como ameaça nesse ou naquele PODER-SER faticamente concreto. A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo. Na angústia perde-se o que se encontra à mão no mundo circundante, ou seja, o ente intramundano em geral. O “mundo” não é mais capaz de oferecer alguma coisa, nem sequer a co-presença [Dasein] dos outros. A angústia retira, pois, da presença [Dasein] a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesma a partir do “mundo” e da interpretação pública. Ela remete a presença [Dasein] para aquilo por que a angústia se angustia, para o seu próprio PODER-SER-no-mundo. A angústia singulariza a presença [Dasein] em seu próprio ser-no-mundo que, em compreendendo, se projeta essencialmente para possibilidades. Naquilo por que se angustia, a angústia abre a presença [Dasein] como ser-possível e, na verdade, como aquilo que, somente a partir de si mesmo, pode singularizar-se na singularidade. STMSC: §40

Na presença [Dasein], a angústia revela o ser para o PODER-SER mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de escolher e acolher a si mesma. A angústia arrasta a presença [Dasein] para o ser-livre para… (propensio in…), para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é. A presença [Dasein] como ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo tempo, à responsabilidade desse ser. STMSC: §40

O por quê a angústia se angustia desvela-se como o com quê ela se angustia: o ser-no-mundo. A mesmidade do com quê e do pelo quê a angústia se angustia se estende até ao próprio angustiar-se. Pois, enquanto disposição, esse constitui um modo fundamental de ser-no-mundo. A mesmidade existencial do abrir e do aberto em que se abre o mundo como mundo, o ser-em como PODER-SER singularizado, puro e lançado, evidencia que, com o fenômeno da angústia, se fez tema de interpretação uma disposição privilegiada. A angústia singulariza e abre a presença [Dasein] como “solus ipse”. Esse “solipsismo” existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere à presença [Dasein] justamente um sentido extremo em que ela é trazida como mundo para o seu mundo e, assim, como ser-no-mundo para si mesma. STMSC: §40

A presença [Dasein] é um ente em que, sendo, está em jogo seu próprio ser. Na constituição de ser do compreender, o “estar em jogo” evidenciou-se como o ser que se projeta para o PODER-SER mais próprio. Esse PODER-SER é o em virtude de, onde a presença [Dasein] é sempre como ela é. Em seu ser, a presença [Dasein] já sempre se conjugou com uma possibilidade de si mesma. É na angústia que a liberdade de ser para o PODER-SER mais próprio e, com isso, para a possibilidade de propriedade e impropriedade mostra-se numa concreção originária e elementar. Do ponto de vista ontológico, porém, ser para o PODER-SER mais próprio significa: em seu ser, a presença [Dasein] já sempre antecedeu a si mesma. A presença [Dasein] já está sempre “além de si mesma”, não como atitude frente aos outros entes que ela mesma não é, mas como ser para o PODER-SER que ela mesma é. Designamos a estrutura ontológica essencial do “estar em jogo” como o anteceder-a-si-mesmo da presença [Dasein]. STMSC: §41

É no anteceder-a-si-mesma, enquanto ser para o PODER-SER mais próprio, que subsiste a condição ontológico-existencial de possibilidade de ser livre para as possibilidades propriamente existenciárias. O PODER-SER é aquilo em virtude de que a presença [Dasein] é sempre tal como ela é faticamente. Na medida, porém, em que este ser para o próprio PODER-SER acha-se determinado pela liberdade, a presença [Dasein] também pode relacionar-se involuntariamente com as suas possibilidades, ela pode ser imprópria. Faticamente, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, é nessa modalidade que ela se encontra. O próprio em virtude de não é apreendido, e o projeto de PODER-SER ela mesma fica entregue ao talante do impessoal. Assim, no anteceder-a-si-mesma, o “si” indica sempre o si-mesmo, no sentido do impessoalmente-si-mesmo. Mesmo na impropriedade, a presença [Dasein] permanece essencialmente um anteceder-a-si-mesma, da mesma forma que a fuga de si mesma na decadência ainda apresenta a constituição de ser na qual está em jogo o seu ser. STMSC: §41

O PODER-SER, em virtude de que a presença [Dasein] é, possui em si mesmo o modo de ser-no-mundo. Nele reside, portanto, ontologicamente, a remissão ao ente intramundano. A cura é sempre ocupação e preocupação, mesmo que de modo privativo. No querer só se apreende um ente já compreendido, isto é, um ente já projetado em suas possibilidades como ente a ser tratado na ocupação ou a ser cuidado em seu ser na preocupação. É por isso que ao querer sempre pertence algo que se quer, algo que já se determinou a partir daquilo em-virtude-de que se quer. Para a possibilidade ontológica do querer são constitutivos: a abertura prévia do em-virtude-de que (o anteceder-a-si-mesma), a abertura do que se pode ocupar (o mundo como algo em que já se é) e o projeto de compreender da presença [Dasein] num PODER-SER para a possibilidade de um ente “que se quis”. No fenômeno do querer, transparece a totalidade subjacente da cura. STMSC: §41

O “querer” tranquilo, que se acha sob a guia do impessoal, também não significa a extinção do ser no PODER-SER, mas somente uma modificação. O ser para possibilidades mostra-se, pois, na maior parte das vezes, como simples desejar. No desejo, a presença [Dasein] projeta o seu ser para possibilidades as quais não somente não são captadas na ocupação como não se pensa ou se espera, sequer uma vez, a sua realização. Ao contrário, a predominância do anteceder-a-si-mesma, no modo do simples desejar, comporta uma incompreensão das possibilidades fáticas. O ser-no-mundo, cujo mundo se projeta primariamente como mundo do desejo, perde-se, de modo insustentável, no que se acha disponível, e isso de tal modo que o que está disponível como o único manual jamais é suficiente à luz do que se deseja. Desejar é uma modificação existencial do projetar-se do compreender que, na decadência do estar-lançado, ainda adere pura e simplesmente às possibilidades. Essa adesão fecha as possibilidades; aquilo que está “por aí” [»da«] na adesão do desejo torna-se “mundo real”. Ontologicamente, desejar pressupõe a cura. STMSC: §41

3. O projeto pertence à constituição de ser da presença [Dasein]: do ser que se abre para o seu PODER-SER. Como um em compreendendo, a presença [Dasein] pode compreender-se tanto a partir do “mundo” e dos outros entes quanto a partir de seu PODER-SER mais próprio. Esta última possibilidade diz: a presença [Dasein] abre-se para si mesma em seu PODER-SER mais próprio e como tal. Esta abertura própria mostra o fenômeno da verdade mais originária no modo da propriedade. A verdade da existência é a abertura mais originária e mais própria que o PODER-SER da presença [Dasein] pode alcançar. Ela só poderá receber sua determinação ontológico-existencial no contexto de uma análise da propriedade da presença [Dasein]. STMSC: §44

O que diz “pressupor”? Compreender alguma coisa como a base e o fundamento do ser de um outro ente. Essa compreensão dos entes em seus nexos ontológicos só é possível com base na abertura, ou seja, no ser-descobridor da presença [Dasein]. Pressupor “verdade” significa, pois, compreendê-la como algo em virtude da qual a presença [Dasein] é. Presença, no entanto – e isso reside na constituição de ser como cura – já sempre antecedeu a si mesma. Ela é um ente em que, em seu ser, está em jogo o PODER-SER mais próprio. A abertura e o descobrimento pertencem, de modo essencial, ao ser e ao PODER-SER da presença [Dasein] como ser-no-mundo. Na presença [Dasein] está em jogo o seu PODER-SER-no-mundo e, com isso, a ocupação que descobre na circunvisão o ente intramundano. Na constituição de ser da presença [Dasein] como cura, no anteceder-a-si-mesma, reside o “pressupor” mais originário. Porque esse pressupor a si mesmo pertence ao ser da presença [Dasein], “nós” devemos pressupor também a “nós” como algo que se determina pela abertura. Esse “pressupor” radicado no ser da presença [Dasein] não se comporta com os entes não dotados do caráter de presença [Dasein], mas unicamente consigo mesmo. A verdade pressuposta, o “se dá”, pelo qual se deve determinar o seu ser, possui o modo e o sentido de ser da própria presença [Dasein]. Devemos “fazer” a pressuposição de verdade porque ela já se “fez” com o ser do “nós”. STMSC: §44

O que se conquistou e o que se busca na análise preparatória da presença [Dasein]? O que achamos foi a constituição fundamental desse ente tematizado, isto é, o ser-no-mundo, cujas estruturas essenciais estão centradas na abertura. A totalidade desse todo estrutural desvelou-se como cura. Nela encontra-se inserido o ser da presença [Dasein]. A análise desse ser tomou como fio condutor a existência que, numa concepção prévia, foi determinada como essência da presença [Dasein]. Enunciado formalmente, isso significa: enquanto PODER-SER que compreende, a presença [Dasein] é o que, sendo, está em jogo como seu próprio ser. O ente, que desse modo está sendo, é sempre eu mesmo. A elaboração do fenômeno da cura permitiu vislumbrar a constituição concreta da existência, ou seja, em seu nexo igualmente originário com a facticidade e a decadência da presença [Dasein]. STMSC: §45

Como é a visão prévia que, até aqui, orientou o procedimento ontológico? Determinamos a ideia de existência como o PODER-SER que compreende, e onde está em jogo seu próprio ser. Sendo porém sempre meu, o PODER-SER é livre para a propriedade e a impropriedade ou ainda para um modo de indiferença. Tomando como ponto de partida a cotidianidade mediana, a interpretação limitou-se à análise da existência indiferente e imprópria. Na verdade, por essa via, foi possível e necessário alcançar uma determinação concreta da existencialidade da existência. Entretanto, a caracterização ontológica da constituição existencial ainda guardou uma falta essencial. Existência significa PODER-SER, mas também um PODER-SER próprio. Enquanto não se incorporar a estrutura existencial do PODER-SER próprio à ideia de existência, a visão prévia, orientadora de uma interpretação existencial, ressentir-se-á de originariedade. STMSC: §45

Como se apresenta, portanto, a posição prévia da situação hermenêutica até aqui considerada? Quando e como a análise existencial, que parte da cotidianidade, forçou toda a presença [Dasein] – esse ente do seu “princípio” ao seu “fim” – a entrar na visão fenomenológica propiciadora do tema? De fato, afirmou-se que a cura é a totalidade do todo estrutural da constituição da presença [Dasein]. Mas o ponto de partida da interpretação já não impõe a renúncia da possibilidade de apreender a presença [Dasein] como um todo? A cotidianidade é justamente o ser “entre” nascimento e morte. E, se a existência determina o ser da presença [Dasein] e o PODER-SER também constitui CH: simultaneamente o já ser sua essência, então a presença [Dasein], enquanto existir, deve, em podendo ser, ainda não ser alguma coisa. O ente, cuja essência é constituída pela existência resiste, de modo essencial, à sua possível apreensão como ente total. A situação hermenêutica não apenas não assegurou a “posição” de todo o ente, como é até questionável se isso, por fim, se pode alcançar e se uma interpretação ontológica originária da presença [Dasein] não estará fadada ao fracasso, considerando-se o modo de ser do próprio ente tematizado. STMSC: §45

Desse modo, é urgente a tarefa de se colocar a presença [Dasein] como um todo em sua posição prévia. Isto significa, porém: desenvolver, ao menos uma vez, a questão do PODER-SER desse ente como um todo. Na presença [Dasein], enquanto ela é, sempre se acha algo pendente, que ela pode ser e será. A esse pendente pertence o próprio “fim”. O “fim” do ser-no-mundo é a morte. Esse fim, que pertence ao PODER-SER, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível da presença [Dasein]. Mas o estar-no-fim CH: “ser”-para-o-fim da presença [Dasein] na morte e, com isso, o ser desse ente como um todo, só poderá ser introduzido, de modo fenomenalmente adequado, na discussão da possibilidade de seu possível ser todo, caso se tenha conquistado um conceito ontológico suficiente, ou seja, existencial da morte. De acordo com o modo CH: pensado de acordo com o modo de ser da presença [Dasein] de ser da presença [Dasein], a morte CH: ser do não ser só é num ser-para-a-morte existenciário. A estrutura existencial desse ser evidencia-se na constituição ontológica de seu PODER-SER todo. Toda a presença [Dasein] existente deixa-se, assim, trazer para a posição prévia existencial. Mas será que a presença [Dasein] também pode existir toda ela de modo próprio? Como se deve, então, determinar a propriedade da existência senão na perspectiva do existir de modo próprio? E de onde retirar o seu critério? Manifestamente, a própria presença [Dasein] deve propiciar antecipadamente em seu ser a possibilidade e a maneira de sua existência própria, uma vez que estas não lhe podem ser impostas, onticamente, e nem encontradas, ontologicamente, por acaso. O testemunho de um PODER-SER próprio é fornecido pela consciência. Assim como a morte, esse fenômeno da presença [Dasein] exige uma interpretação existencial genuína. Esta leva à compreensão de que um PODER-SER próprio da presença [Dasein] reside no querer-ter-consciência. Segundo seu sentido ontológico, porém, essa possibilidade existenciária tende para uma determinação existenciária no ser-para-a-morte. STMSC: §45

A investigação a se realizar nessa seção atravessa os seguintes estágios: o possível ser-todo da presença [Dasein] e o ser-para-a-morte (capítulo I); o testemunho, segundo o modo de ser da presença [Dasein], de um PODER-SER em sentido próprio e a decisão (capítulo II); o PODER-SER todo em sentido próprio da presença [Dasein] e a temporalidade como sentido ontológico da cura (capítulo III); temporalidade e cotidianidade (capítulo IV); temporalidade e historicidade (capítulo V); temporalidade e intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo (capítulo VI). STMSC: §45

A possibilidade da presença [Dasein] ser-toda contradiz, manifestamente, a cura que, de acordo com seu sentido ontológico, constitui a totalidade do todo estrutural da presença [Dasein]. Entretanto, o momento primordial da cura, o “anteceder-a-si-mesma”, significa que a presença [Dasein] existe, cada vez, em virtude de si mesma. “Enquanto ela é” e até o seu fim, a presença [Dasein] relaciona-se com o seu PODER-SER. Mesmo que, ainda existindo, nada mais possua “diante de si” e “feche para balanço”, o “anteceder-a-si-mesma” ainda determina o seu ser. A falta de esperança, por exemplo, não retira a presença [Dasein] de suas possibilidades, sendo apenas um modo próprio de ser para essas possibilidades. Do mesmo modo, ser e estar voltado para tudo “sem qualquer ilusão” também conserva em si o “anteceder-a-si-mesmo”. Contudo, esse momento estrutural da cura diz, sem ambiguidades, que, na presença [Dasein], há sempre ainda algo pendente, que ainda não se tornou “real”, como um PODER-SER de si mesma. Na essência da constituição fundamental da presença [Dasein] reside, portanto, uma insistente inconclusão. A não-totalidade significa uma pendência no PODER-SER. STMSC: §46

A morte é uma possibilidade ontológica que a própria presença [Dasein] sempre tem de assumir. Com a morte, a própria presença [Dasein] é impendente em seu PODER-SER mais próprio. Nessa possibilidade, o que está em jogo para a presença [Dasein] é pura e simplesmente seu ser-no-mundo. Sua morte é a possibilidade de poder não mais ser presença [Dasein]. Se, enquanto essa possibilidade, a presença [Dasein] é, para si mesma, impendente, é porque depende plenamente de seu PODER-SER mais próprio. Sendo impendente para si, nela se desfazem todas as remissões para outra presença [Dasein]. Essa possibilidade mais própria e irremissível é, ao mesmo tempo, a mais extrema. Enquanto PODER-SER, a presença [Dasein] não é capaz de superar a possibilidade da morte. A morte é, em última instância, a possibilidade da impossibilidade pura e simples de presença [Dasein]. Desse modo, a morte desvela-se como a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável. Como tal, ela é um impendente privilegiado. Essa possibilidade existencial funda-se em que a presença [Dasein] está, essencialmente, aberta para si mesma e isso no modo de anteceder-a-si-mesma. Esse momento estrutural da cura possui sua concreção mais originária no ser-para-a-morte. O ser-para-o-fim torna-se, fenomenalmente, mais claro como ser-para essa possibilidade privilegiada da presença [Dasein]. STMSC: §50

Não é, porém, de forma ocasional ou suplementar que a presença [Dasein] realiza para si essa possibilidade mais própria, irremissível e insuperável, no curso de seu ser. Em existindo, a presença [Dasein] já está lançada nessa possibilidade. De início e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] não possui nenhum saber explícito ou mesmo teórico de que ela se ache entregue à sua morte e que a morte pertença ao ser-no-mundo. É na disposição da angústia que o estar-lançado na morte se desvela para a presença [Dasein] de modo mais originário e penetrante. A angústia com a morte é angústia “com” o PODER-SER mais próprio, irremissível e insuperável. O próprio ser-no-mundo é aquilo com que ela se angustia. O porquê dessa angústia é o puro e simples PODER-SER da presença [Dasein]. Não se deve confundir a angústia com a morte e o medo de deixar de viver. Enquanto disposição fundamental da presença [Dasein], a angústia não é um humor “fraco”, arbitrário e casual de um indivíduo singular e sim a abertura de que, como ser-lançado, a presença [Dasein] existe para seu fim. Assim, esclarece-se o conceito existencial da morte como ser-lançado para o PODER-SER mais próprio, irremissível e insuperável. Com isso, ganha nitidez a delimitação frente a um mero desaparecer, a um mero finar ou ainda a uma “vivência” do deixar de viver. STMSC: §50

A exposição do ser-para-a-morte mediano na vida cotidiana orienta-se pelas estruturas da cotidianidade já explicitadas. No ser-para-a-morte, a presença [Dasein] relaciona-se com ela mesma enquanto um PODER-SER privilegiado. Entretanto, o próprio da cotidianidade é o impessoal, constituído na interpretação pública expressa na falação. Este deve, portanto, revelar de que modo a presença [Dasein] cotidiana interpreta para si o seu ser-para-a-morte. O fundamento da interpretação sempre molda uma compreensão que, por sua vez, também é sempre disposta, ou seja, afinada e sintonizada no humor. Impõe-se, assim, a pergunta: Como a compreensão, que se acha disposta na falação do impessoal, abriu o ser-para-a-morte? Como o impessoal se relaciona na compreensão com essa possibilidade mais própria, irremissível e insuperável da presença [Dasein]? Que disposição o estar entregue à responsabilidade da morte abre para o impessoal e de que modo? STMSC: §51

A análise desse “morre-se” impessoal desvela, inequivocamente, o modo do ser-para-a-morte cotidiano. Numa tal fala, ele é compreendido como algo indeterminado, que deve surgir em algum lugar mas que, numa primeira aproximação, para si mesmo, ainda-não é simplesmente dado, não constituindo, portanto, uma ameaça. O “morre-se” divulga a opinião   de que a morte atinge, por assim dizer, o impessoal. A interpretação pública da presença [Dasein] diz: “morre-se” porque, com isso, qualquer um outro e o próprio impessoal podem dizer com convicção: mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém. A “morte” nivela-se a uma ocorrência que, embora atinja a presença [Dasein], não pertence propriamente a ninguém. Se a ambiguidade é o próprio da falação, isso se dá, sobretudo, nessa fala sobre a morte. A morte que é sempre minha, de forma essencial e insubstituível, converte-se num acontecimento público que vem ao encontro do impessoal. A fala assim caracterizada refere-se à morte como um “caso” que permanentemente ocorre. Ele propaga a morte como algo sempre “real”, mas encobre-lhe o caráter de possibilidade e os momentos que lhe pertencem de irremissibilidade e insuperabilidade. Com essa ambiguidade, a presença [Dasein] adquire a capacidade de perder-se no impessoal, no tocante a um PODER-SER privilegiado, que pertence ao seu ser mais próprio. O impessoal dá razão e incentiva a tentação de encobrir para si o ser-para-a-morte mais próprio. STMSC: §51

Todavia, ao mesmo tempo que o impessoal tranquiliza a presença [Dasein], desviando-a de sua morte, ele mantém seu direito e prestígio, regulando tacitamente o modo de comportamento frente à morte. No âmbito público, “pensar na morte” já é considerado um medo covarde, uma insegurança da presença [Dasein] e uma fuga sinistra do mundo. O impessoal não permite a coragem de se assumir a angústia com a morte. O predomínio da interpretação pública do impessoal também já decidiu acerca da disposição que deve determinar a atitude frente à morte. Angustiando-se com a morte, a presença [Dasein] coloca-se diante da possibilidade insuperável, a cuja responsabilidade ela está entregue. O impessoal ocupa-se em reverter essa angústia num medo frente a um acontecimento que advém. Ademais, considera-se a angústia, que no medo se torna ambígua, uma fraqueza que a presença [Dasein] segura de si mesma deve desconhecer. Segundo esse decreto mudo do impessoal, o que “cabe” é a tranquilidade indiferente frente ao “fato” de que se morre. A elaboração dessa indiferença “superior” aliena a presença [Dasein] de seu PODER-SER mais próprio e irremissível. STMSC: §51

Num prelineamento existencial, determinou-se o ser-para-o-fim como o ser para o PODER-SER mais próprio, irremissível e insuperável. O ser que existe para essa possibilidade coloca diante de si a pura e simples impossibilidade de existência. Além dessa caracterização aparentemente vazia do ser-para-a-morte, desvelou-se a concreção desse ser no modo da cotidianidade. Conforme a tendência essencial de decadência da cotidianidade, o ser-para-a-morte mostrou-se como escape encobridor da morte. Enquanto a investigação precedente passou do prelineamento formal da estrutura ontológica da morte para a análise concreta do ser-para-o-fim cotidiano, deve-se, agora, invertendo-se a direção, conquistar o pleno   conceito existencial da morte mediante uma interpretação complementadora do ser-para-o-fim cotidiano. STMSC: §52

Costuma-se dizer: é certo que “a” morte vem. Diz-se, impessoalmente, e o se-impessoal desconsidera que, para poder ter certeza da morte, a própria presença [Dasein] deve ter certeza de seu PODER-SER mais próprio e irremissível. Diz-se que a morte é certa e, com isso, implanta-se, na presença [Dasein], a aparência de que se está em si mesmo certo da morte. E onde se encontra o fundamento do estar-certo cotidiano? Manifestamente ele não reside numa persuasão recíproca. Cotidianamente, faz-se a experiência do “morrer” dos outros. A morte é um inegável “fato da experiência”. STMSC: §52

O ser-para-a-morte em sentido próprio significa uma possibilidade existenciária da presença [Dasein]. Esse PODER-SER ôntico deve, por sua vez, ser ontologicamente possível. Quais as condições existenciais dessa possibilidade? Como elas podem se fazer acessíveis? STMSC: §52

Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se atém faticamente a um ser-para-a-morte impróprio. Como se haverá de caracterizar “objetivamente” a possibilidade ontológica de um ser-para-a-morte em sentido próprio? Sobretudo porque a presença [Dasein] finalmente jamais se comporta com propriedade em relação ao seu fim e porque, de acordo com seu sentido, o ser próprio com relação ao fim deve sempre permanecer velado para os outros. O projeto da possibilidade existencial de um PODER-SER existenciário digno de questão não seria, pois, um empreendimento fantástico? O que se faz necessário para que tal projeto ultrapasse uma construção meramente arbitrária e fictícia? Será que a própria presença [Dasein] propicia alguma indicação para esse projeto? Podem extrair-se da própria presença [Dasein] fundamentos para a sua legitimidade fenomenal? Será que a tarefa ontológica agora proposta pode retirar da análise feita da presença [Dasein] um esboço prévio, de modo a garantir pistas seguras para este seu propósito? STMSC: §53

Ser-para-a-morte é antecipar o PODER-SER de um ente cujo modo de ser é, em si mesmo, o antecipar. Ao desvelar numa antecipação esse PODER-SER, a presença [Dasein] abre-se para si mesma, no tocante à sua possibilidade mais extrema. Projetar-se para seu PODER-SER mais próprio significa, contudo: poder compreender-se no ser de um ente assim desvelado: existir. A antecipação comprova-se como possibilidade de compreender seu PODER-SER mais próprio e mais extremo, ou seja, enquanto possibilidade de existir em sentido próprio. A sua constituição ontológica deve fazer-se visível com a elaboração da estrutura concreta do antecipar da morte. Como se cumpre a delimitação fenomenal dessa estrutura? Manifestamente no modo em que determinarmos os caracteres de sua abertura antecipadora a fim de se poder compreender puramente a possibilidade mais própria, irremissível, insuperável, certa e, como tal, indeterminada. Deve-se ainda atentar a que, primariamente, compreender não diz agarrar um sentido, mas compreender-se em suas possibilidades de ser, desveladas no projeto. STMSC: §53

A morte é a possibilidade mais própria da presença [Dasein]. O ser para essa possibilidade abre à presença [Dasein] o seu PODER-SER mais próprio, em que sempre está em jogo o próprio ser da presença [Dasein]. Pode-se então revelar para a presença [Dasein] que, na possibilidade privilegiada de si mesma, ela permanece desgarrada do impessoal, ou seja, antecipando, ela sempre pode dele desgarrar-se. Contudo, somente a compreensão desse “poder” é que desvela que ela está de fato perdida na cotidianidade do impessoalmente-si-mesmo. STMSC: §53

A possibilidade mais própria é irremissível. O antecipar permite à presença [Dasein] compreender que o PODER-SER, onde o que está em jogo é o seu próprio ser, só pode ser assumido por ela mesma. A morte não apenas “pertence” de forma não indiferente à própria presença [Dasein], como reivindica a presença [Dasein] enquanto singular. A irremissibilidade da morte, compreendida no antecipar, singulariza a presença [Dasein] em si mesma. Essa singularização é um modo de se abrir o “pre” [das Da] para a existência. Ela revela que todo ser-junto a uma ocupação e todo ser-com os outros falha quando se trata de seu PODER-SER mais próprio. Assim, a presença [Dasein] só pode ser propriamente ela mesma quando ela mesma dá a si essa possibilidade. A falha da ocupação e da preocupação não significa, contudo, de forma alguma, que esses modos da presença [Dasein] se descartem de seu ser próprio em sua propriedade. Enquanto estruturas essenciais da constituição da presença [Dasein], esses modos também pertencem à condição de possibilidade da existência. A presença [Dasein] é propriamente ela mesma, apenas à medida que, enquanto ser-junto a… na ocupação e ser-com… na preocupação, ela se projeta primariamente para o seu PODER-SER mais próprio e não para a possibilidade do impessoalmente-si-mesma. O antecipar da possibilidade irremissível obriga o ente que assim antecipa a possibilidade de assumir seu próprio ser a partir de si mesmo e para si mesmo. STMSC: §53

A possibilidade mais própria e irremissível é insuperável. O ser para essa possibilidade permite à presença [Dasein] compreender que a renúncia de si mesma lhe é impendente como a sua possibilidade mais extrema. O antecipar não lhe permite, contudo, escapar da insuperabilidade enquanto ser-para-a-morte impróprio, liberando-a, ao contrário, para a insuperabilidade. A liberação antecipadora para a própria morte liberta do perder-se nas possibilidades ocasionais, permitindo assim compreender e escolher em sentido próprio as possibilidades fáticas que se antepõem às insuperáveis. O antecipar abre para a existência como possibilidade mais extrema a tarefa de sua propriedade, rompendo assim todo e qualquer enrijecimento da existência já alcançada. Antecipando, a presença [Dasein] evita recuar para trás de si mesma e da compreensão de seu PODER-SER, evitando “tornar-se velha demais para as suas vitórias” (Nietzsche  ). Livre para as possibilidades mais próprias, determinadas a partir do fim, ou seja, compreendidas como possibilidades finitas, a presença [Dasein] bane o perigo de, assentada em sua compreensão finita da existência, não reconhecer ou mal-interpretar as possibilidades superáveis da existência dos outros, reconduzindo-as para as suas próprias a fim de endossar sua existência fática mais própria. Todavia, enquanto possibilidade irremissível, a morte singulariza somente a fim de tornar a presença [Dasein], enquanto possibilidade insuperável, compreensiva para o PODER-SER dos outros, na condição de ser-com. Porque o antecipar da possibilidade insuperável inclui em si todas as possibilidades situadas à sua frente, nela reside a possibilidade de se tomar previamente de modo existenciário toda a presença [Dasein], ou seja, a possibilidade de existir como todo o PODER-SER. STMSC: §53

A possibilidade mais própria, irremissível e insuperável é certa. O modo de ser certa determina-se a partir da verdade (abertura) que lhe corresponde. A possibilidade certa da morte abre a presença [Dasein] como possibilidade apenas no sentido de, antecipando-a, essa possibilidade possibilitar a si mesma como o PODER-SER mais próprio de si. A abertura da possibilidade funda-se no possibilitar antecipador. Manter-se nessa verdade, ou seja, estar certo do que se abriu, exige justamente o antecipar. A certeza da morte não pode ser computada a partir da constatação de casos de morte ocorrentes. Ela não se detém, de forma alguma, numa verdade do ser simplesmente dado que, no tocante à sua descoberta, se dá ao encontro, no sentido mais puro, num deixar vir ao encontro meramente contemplativo dos entes em si mesmos. Para se alcançar a coisalidade, ou seja, a indiferença da evidência apodítica, a presença [Dasein] precisa, primeiramente, perder-se na conjuntura das coisas – o que pode até constituir uma tarefa e uma possibilidade da cura. Se o estar-certo da morte não possui esse caráter, não significa que ele tenha um grau inferior, mas que: ele não pertence, de modo algum, à ordem de gradações das evidências sobre o ser simplesmente dado. STMSC: §53

O ter-por-verdadeira a morte – a morte é sempre apenas própria – mostra um outro modo de certeza, sendo mais originário com relação à certeza referente a um ente que vem ao encontro dentro do mundo ou aos objetos formais; trata-se do estar-certo de ser-no-mundo. Como tal, ele não apenas reivindica um comportamento determinado da presença [Dasein], mas a reivindica na plena propriedade de sua existência. No antecipar, a presença [Dasein] só pode certificar-se de seu ser mais próprio numa totalidade insuperável. Por isso, a evidência dos dados imediatos das vivências, do eu e da consciência (Bewusstsein  ) permanece necessariamente aquém da certeza incluída no antecipar. E isso não porque o seu modo de apreensão não seja rigoroso mas porque, em princípio, esse modo não pode ter por verdadeiro (aberto) o que ele, no fundo, quer “manter” como verdadeiro: enquanto PODER-SER, a presença [Dasein] que eu mesmo sou só pode ser propriamente antecipando. STMSC: §53

A possibilidade mais própria, irremissível, insuperável e certa é, no tocante à certeza, indeterminada. Como o antecipar abre esse caráter da possibilidade privilegiada da presença [Dasein]? Como a compreensão antecipadora projeta-se para um certo PODER-SER constantemente possível, de maneira que sempre fique indeterminado quando a absoluta impossibilidade da existência tornar-se-á enfim possível? No antecipar para a morte certa mas indeterminada, a presença [Dasein] abre-se para uma ameaça que sempre emerge de seu próprio pre [das Da]. O ser para o fim deve manter-se nessa ameaça e não pode apagá-la, mas, ao contrário, ela é que deve construir a indeterminação da certeza. Como é possível, do ponto de vista existencial, a abertura genuína dessa ameaça permanente? Todo compreender se dá numa disposição. O humor lança a presença [Dasein] para o estar-lançado de seu “que ela é pre-sença” [»dass  -es-da-ist«]. A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singular da presença [Dasein]. Na angústia, a presença [Dasein] dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo PODER-SER daquele ente assim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema. Porque o antecipar simplesmente singulariza a presença [Dasein] e, nessa singularização, torna certa a totalidade de seu PODER-SER, a disposição fundamental da angústia pertence ao compreender de si mesma, própria da presença [Dasein]. O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia CH: mas não apenas angústia e muito menos angústia como mera emoção. Isso é testemunhado, de modo indubitável, embora “apenas” indireto, pelo ser-para-a-morte já caracterizado, quando a angústia se faz medo covarde e, superando, denuncia a covardia à angústia. STMSC: §53

Todas as remissões para o conteúdo integral da possibilidade mais extrema da presença [Dasein], que pertencem ao ser-para-a-morte, congregam-se para desvelar, desdobrar e consolidar o antecipar por ela constituída enquanto o que possibilita essa possibilidade. Ao se delimitar no projeto existencial o antecipar, tornou-se visível a possibilidade ontológica de um ser-para-a-morte em sentido próprio e existenciário. Com isso, surge também a possibilidade de a presença [Dasein] PODER-SER toda em sentido próprio, mas somente como uma possibilidade ontológica. O projeto existencial do antecipar deteve-se, na verdade, nas estruturas da presença [Dasein] anteriormente conquistadas, permitindo que a própria presença [Dasein] se lançasse para essa possibilidade, sem imposição e pressão de um determinado “conteúdo” como ideal de existência. Apesar disso, esse ser-para-a-morte existencialmente “possível” permaneceu, do ponto de vista existenciário, uma suposição fantástica. A possibilidade ontológica de a presença [Dasein] PODER-SER toda em sentido próprio nada significa, porém, enquanto não se demonstrar, a partir da própria presença [Dasein], o PODER-SER ôntico que lhe corresponde. Será que, de fato, a presença [Dasein] sempre se lança num ser-para-a-morte? Será que ela exige um PODER-SER em sentido próprio, determinado pelo antecipar, somente com base em seu ser mais próprio? STMSC: §53

Antes de responder a essas questões, urge investigar até onde em geral e de que modo a presença [Dasein], a partir de seu PODER-SER mais próprio, dá testemunho de uma possível propriedade de sua existência a ponto desta não apenas se declarar possível existenciariamente, mas ser exigida pela presença [Dasein]. STMSC: §53

A questão sobre um ser todo da presença [Dasein] em sentido próprio e sua constituição existencial só poderá ser colocada em bases fenomenais consistentes quando se conseguir atá-la a uma possível propriedade de seu ser, testemunhada pela própria presença [Dasein]. Caso esse testemunho e o que ele testemunha logrem uma descoberta fenomenológica, poder-se-á recolocar o problema se o antecipar para a morte, até agora projetado apenas em sua possibilidade ontológica, estabelece ou não um nexo essencial com o próprio PODER-SER testemunhado. STMSC: §53

O que se busca é um PODER-SER próprio da presença [Dasein], testemunhado por ela mesma em sua possibilidade existenciária. Antes de tudo é preciso que esse testemunho se deixe CH: 1) o testemunho como tal; 2) o que nele é testemunhado encontrar. E caso esse testemunho “se dê a compreender” para a presença [Dasein] em sua existência própria e possível, então ele deve ter suas raízes no ser da presença [Dasein]. A demonstração fenomenológica desse testemunho resguarda, pois, a comprovação de sua origem a partir da constituição de ser da presença [Dasein]. STMSC: §54

No momento em que a presença [Dasein] se perde no impessoal, já se decidiu sobre o PODER-SER mais próximo e fático da presença [Dasein], ou seja, sobre as tarefas, regras, parâmetros, a premência e a envergadura do ser-no-mundo da ocupação e preocupação. O impessoal já sempre impediu para a presença [Dasein] a apreensão dessas possibilidades ontológicas. O impessoal encobre até mesmo o ter-se dispensado do encargo de escolher explicitamente tais possibilidades. Fica indeterminado quem “propriamente” escolhe. Essa escolha feita por ninguém, através da qual a presença [Dasein] se enreda na impropriedade, só pode refazer-se quando a própria presença [Dasein] passa da perdição do impessoal para si mesma. Essa passagem, no entanto, deve possuir o modo de ser por cuja negligência a presença [Dasein] se perde na impropriedade. A passagem do impessoal, ou seja, a modificação existenciária do impessoalmente si mesmo para o ser-si-mesmo de maneira própria deve-cumprir-se como recuperação de uma escolha. Recuperar a escolha significa escolher essa escolha, decidir-se por um PODER-SER a partir de seu próprio si-mesmo. Apenas escolhendo a escolha é que a presença [Dasein] possibilita para si mesma o seu PODER-SER próprio CH: o acontecimento do ser-filosofia, liberdade. STMSC: §54

Porque está perdida no impessoal, a presença [Dasein] deve primeiro encontrar-se. Para encontrar-se, ela deve “mostrar-se” a si mesma em sua possível propriedade. A presença [Dasein] necessita do testemunho de um PODER-SER si mesma que, como possibilidade, ela já sempre é. STMSC: §54

Essa interpretação existencial dista, necessariamente, da compreensão ôntico-cotidiana, embora elabore os fundamentos ontológicos do que a interpretação vulgar da consciência sempre compreendeu em determinados limitese conceituou numa “teoria” da consciência. Nesse sentido, a interpretação existencial precisa submeter-se ao crivo de uma crítica da interpretação vulgar da consciência. E a partir da elaboração do fenômeno pode-se alcançar em que medida ele testemunha um PODER-SER próprio da presença [Dasein]. Ao apelo da consciência corresponde a possibilidade de uma escuta. O compreender do interpelar desvela-se como um querer-ter-consciência. Nesse fenômeno, porém, dá-se a escolha existenciária que escolhe um ser-si-mesmo denominado, em correspondência à sua estrutura existencial, de decisão. Com isso temos a articulação das análises desse capítulo: os fundamentos ontológico-existenciais da consciência (§55); o caráter de apelo da consciência (§56); a consciência como apelo da cura (§57); a compreensão do interpelar e a dívida (§58); a interpretação existencial da consciência e sua interpretação vulgar (§59); a estrutura existencial do PODER-SER próprio, testemunhado na consciência (§60). STMSC: §54

Através da abertura, o ente que chamamos presença [Dasein] está na possibilidade de ser o seu pre [das Da]. Com o seu mundo, ele é, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, uma presença [Dasein] para si mesmo, e isso de tal modo que, a partir do “mundo” das ocupações, ele já abriu para si mesmo o PODER-SER. O PODER-SER em que a presença [Dasein] existe sempre já se entregou a determinadas possibilidades. E isso porque se trata de um ente lançado. Este estar-lançado acha-se aberto pela determinação da afinação do humor, de modo mais ou menos penetrante e claro. O compreender pertence, de forma igualmente originária, à disposição (humor). Por isso a presença [Dasein] “sabe” CH: pretende sabê-lo a quantas ela mesma anda na medida em que se projetou em possibilidades de si mesma ou, afundando-se no impessoal, recebeu da interpretação pública do impessoal as suas possibilidades. Essa recepção, no entanto, só é existencialmente possível porque a presença [Dasein], enquanto ser-com em compreendendo, pode escutar CH: de onde provém esse ouvir e poder ouvir? O ouvir sensível dos ouvidos como um modo lançado de aceitação os outros. Perdendo-se no teor público do impessoal e na sua falação, a presença [Dasein], ao escutar o impessoalmente si mesmo, não dá ouvidos ao próprio de si mesma. Para a presença [Dasein] retirar-se da perdição em que não dá ouvidos – retirar-se por ela mesma – ela deve primeiro poder encontrar a si enquanto o que não deu ouvidos a si mesma, por ter dado ouvidos ao impessoal. Esse último dar ouvidos deve ser rompido, ou seja, a própria presença [Dasein] deve dar a si a possibilidade de uma escuta que o interrompa. A possibilidade dessa interrupção reside em ser interpelada sem mediação. Esse apelo rompe o dar ouvidos ao impessoal em que a presença [Dasein] não dá ouvidos quando, de acordo com seu próprio caráter, desperta uma escuta que, em tudo, se contrapõe à escuta perdida. Se este se caracteriza pelo “ruído” da ambiguidade múltipla e variada da falação cotidianamente “nova”, o apelo deve apelar sem ruído, sem ambiguidade, sem apoiar-se na curiosidade. O que assim apelando se dá a compreender é a consciência. STMSC: §55

Como devemos, então, determinar o que se fala nessa fala? Que apelo a consciência faz para o interpelado? Em sentido rigoroso, nada. O apelo não exprime nada, não fornece nenhuma informação sobre acontecimentos do mundo, nada tem para contar. Muito menos pretende iniciar, no próprio interpelado, uma “conversa consigo mesmo”. “Nada” é con-fessado para o si-mesmo interpelado, mas este é apelado para si mesmo, ou seja, para assumir seu PODER-SER mais próprio. Correspondendo à sua tendência, o apelo não coloca o si-mesmo interpelado numa “negociação” consigo mesmo mas, enquanto um fazer apelo para o seu PODER-SER mais próprio, o apelo é uma “a”-pelação (para “adiante”) da presença [Dasein] para suas possibilidades mais próprias. STMSC: §56

Devemos ater-nos ao seguinte: o apelo característico da consciência é uma interpelação do impessoalmente-si-mesmo para o seu si-mesmo; tal interpelação é fazer apelo ao si-mesmo para seu PODER-SER si-mesmo e, assim, uma apelação da presença [Dasein] para suas possibilidades. STMSC: §56

Faz-se ainda necessário recolocar explicitamente a pergunta de quem apela? Não será então que para a presença [Dasein] essa pergunta se responde com a mesma precisão que a questão do que é interpelado no apelo? Na consciência, a presença [Dasein] apela para si. Essa compreensão de quem apela deve estar mais ou menos desperta na escuta fática do apelo. Do ponto de vista ontológico, não é de forma alguma suficiente a resposta de que a presença [Dasein] é, ao mesmo tempo, quem apela e quem é interpelado. Na condição de interpelada, a presença [Dasein] não se a-pre-senta [»da«] diferentemente do que como apelante? Não será o seu PODER-SER si-mesmo mais próprio que faz apelo? STMSC: §57

Que a presença [Dasein] seja faticamente, esse que ela é já está aberto para a presença [Dasein], não obstante o seu porquê possa manter-se velado. O estar-lançado desse ente pertence à abertura do “pre” [das Da] e se desvela constantemente em cada disposição. Este leva a presença [Dasein], de forma mais ou menos explícita e própria, para diante desse “que” (ela é) enquanto o ente que tem de ser o que é e pode ser”. Na maior parte das vezes, porém, o humor fecha o estar-lançado. A presença [Dasein] foge desse estar-lançado para a facilidade da liberdade pretendida pelo impessoalmente-si-mesmo. Caracterizou-se essa fuga como fuga da estranheza que, no fundo, determina a singularidade do ser-no-mundo. A estranheza desvela-se propriamente na disposição fundamental da angústia e, enquanto abertura mais elementar da presença [Dasein] lançada, coloca o seu ser-no-mundo diante do nada do mundo com o qual ela se angustia na angústia por seu PODER-SER mais próprio. E se, dispondo no fundo de sua estranheza, a presença [Dasein] fosse quem apela o apelo da consciência? STMSC: §57

Nada “mundano” pode determinar quem apela em seu modo de ser. Quem apela é a presença [Dasein] em sua estranheza, o ser-no-mundo originariamente lançado enquanto um não sentir-se em casa, o nu e cru “que” (a presença [Dasein] é) no nada do mundo. Quem apela também não é familiar ao impessoalmente-si-mesmo da cotidianidade é algo como uma voz estranha. O que poderia ser mais estranho para o impessoal, perdido no “mundo” das múltiplas ocupações, do que o si-mesmo singularizado na estranheza de si e lançado no nada? O apelo “se” faz e, ao mesmo tempo, nada oferece à escuta do ouvido curioso das ocupações que pudesse ser divulgado e discutido em público. Mas o que a presença [Dasein] deve também relatar a partir da estranheza de seu estar-lançado? O que ainda lhe resta senão o PODER-SER de si mesma, desvelado na angústia? Como se faz o apelo senão enquanto um fazer apelo a esse PODER-SER, unicamente em jogo para si? STMSC: §57

O apelo não relata nenhum dado ou conteúdo. Apela sem nenhuma verbalização. O apelo fala estranhamente em silêncio. E isso somente porque o apelo não interpela para a falação pública do impessoal mas sim para dele sair e passar para a silenciosidade do PODER-SER existente. Em que contexto funda-se a certeza fria e estranha, embora não evidente, com a qual aquele que apela atinge o interpelado, senão em que, na estranheza de sua singularidade, a presença [Dasein] é para si absolutamente insubstituível? O que mais retira tão radicalmente da presença [Dasein] a possibilidade de deturpar a compreensão e o conhecimento de si do que a entrega e o abandono a si mesma? STMSC: §57

Estranheza é, na verdade, o modo fundamental, mas encoberto, de ser-no-mundo. Enquanto consciência, é do fundo desse ser que a presença [Dasein] apela. O “eu sou apelado” é uma fala privilegiada da presença [Dasein]. Só o apelo sintonizado pela angústia possibilita que a presença [Dasein] se projete para o seu PODER-SER mais próprio. Compreendido existencialmente, o apelo da consciência é que anuncia o que, anteriormente, não passou de mera afirmação: a estranheza posterga a presença [Dasein] e ameaça a sua perdição no esquecimento de si mesma. STMSC: §57

A proposição: a presença [Dasein] é, ao mesmo tempo, quem apela e o interpelado perde agora o seu vazio formal e a sua evidência. A consciência revela-se como apelo da cura: quem apela é a presença [Dasein] que, no estar-lançado (já-ser-em…), angustia-se com o seu PODER-SER. O interpelado é justamente essa presença [Dasein] apelada para assumir o seu PODER-SER mais próprio (anteceder-se…). Apela-se a presença [Dasein], interpelando-a para sair da decadência no impessoal (já-ser-junto-ao-mundo-das-ocupações). O apelo da consciência, ou seja, dela mesma, encontra sua possibilidade ontológica em que, no fundo de seu ser, a presença [Dasein] é cura. STMSC: §57

Mas essa “consciência pública” poderia ser outra coisa do que a voz do impessoal? A presença [Dasein] só pode chegar à descoberta duvidosa de uma “consciência de mundo” porque a consciência, em sua essência e fundamento, é sempre minha. E isso não apenas no sentido de que, a cada vez, o PODER-SER mais próprio é interpelado mas porque o apelo provém desse ente que eu mesmo sou. STMSC: §57

Com relação à interpretação da consciência enquanto apelo da cura, pode-se, contudo, levantar as seguintes questões: Uma interpretação da consciência tão distante da “experiência natural” pode ser consistente? Como a consciência há de fazer apelo ao PODER-SER mais próprio se, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela apenas censura e adverte? Será que a consciência fala somente de forma indeterminada e vazia sobre um PODER-SER mais próprio e não se manifesta com determinação e concretude acerca das falhas e omissões ocorridas e cometidas? Essa interpelação afirmada nasce da “boa” ou da “má” consciência? Será que a consciência propicia algo positivo ou só funciona criticamente? STMSC: §57

Não se pode contestar a legitimidade de tais ponderações. Pode-se exigir de uma interpretação da consciência que nela “se” reconheça o fenômeno questionado no modo em que ele é cotidianamente experimentado. Satisfazer essa exigência também não significa reconhecer a compreensão ôntica e vulgar da consciência como instância primordial de uma interpretação ontológica. Por outro lado, porém, as ponderações referidas são ainda prematuras posto que a análise da consciência que lhes conviria ainda não se concluiu. Buscou-se até agora reconduzir a consciência, enquanto fenômeno da presença [Dasein], à constituição ontológica desse ente. Isso serve como preparação para a tarefa de tornar a consciência compreensível enquanto testemunho de seu PODER-SER mais próprio, constitutivo da própria presença [Dasein]. STMSC: §57

A fim de se apreender fenomenalmente o que se ouviu na compreensão do interpelar é preciso retornar, de forma renovada, à interpelação. A interpelação do impessoalmente-si-mesmo significa fazer apelo ao si-mesmo mais próprio para assumir o seu PODER-SER e isso enquanto presença [Dasein], ou seja, enquanto ser-no-mundo das ocupações e ser-com os outros. A interpretação existencial daquilo para que o apelo faz apelo não pode pretender delimitar nenhuma possibilidade concreta e singular de existência, desde que suas possibilidades e tarefas metodológicas sejam devidamente compreendidas. Não se pode e nem se quer fixar no apelado o que sempre se dá, existenciariamente, em cada presença [Dasein], mas sim aquilo que pertence à condição existencial de possibilidade do PODER-SER fático e existenciário. STMSC: §58

Já indicamos a resposta para essas questões com a seguinte tese: o apelo não “diz” nada que se pudesse discutir. Não oferece nenhum conhecimento a respeito de dados. O apelo coloca a presença [Dasein] diante de seu PODER-SER e isso enquanto apelo proveniente da estranheza. É indeterminado quem apela – mas o lugar de onde ele apela não é indiferente para o apelo. No apelo, esse lugar de onde – a estranheza da singularidade lançada – é convocado, ou seja, abre-se conjuntamente. Na apelação para…, o lugar de onde provém o apelo é o lugar para onde se destina a reclamação. O apelo não dá a compreender um PODER-SER ideal e universal; ele abre o PODER-SER como a singularidade de cada presença [Dasein]. O caráter de abertura do apelo só se determina plenamente na sua compreensão de reclamação que apela. Somente orientando-se por essa apreensão do apelo é que se deve perguntar o que ele dá a compreender. STMSC: §58

O ser da presença [Dasein] é a cura. Ela compreende em si facticidade (estar-lançado), existência (projeto) e decadência. Sendo, a presença [Dasein] é lançada, mas não foi levada por si mesma para o seu pre [das Da]. Ela é em se determinando como PODER-SER que pertence a si mesma, mas não no sentido de ter dado a si mesma o que tem de próprio. Existindo, ela nunca retorna aquém de seu estar-lançado, de tal modo que sempre só pudesse desenvolver esse “que é e (comporta) um ter de ser” propriamente a partir de seu ser si mesma e conduzi-lo ao seu pre [das Da]. O estar-lançado não se encontra aquém dela como um acontecimento que de fato ocorreu e que se teria desprendido da presença [Dasein] e com ela acontecido. Mas enquanto é, e como cura, a presença [Dasein] é constantemente o seu “que é”. Existindo, a presença [Dasein] é o fundamento de seu PODER-SER porque só pode existir como o ente que está entregue à responsabilidade de ser o ente que ela é. Embora não tendo ela mesma colocado o fundamento, a presença [Dasein] repousa em sua gravidade que, no humor, se revela como peso. STMSC: §58

E como é esse fundamento lançado? Ele só é projetando-se em possibilidades nas quais está lançado. O si-mesmo, que, como tal, tem de colocar o fundamento de si-mesmo, nunca dele pode-se apoderar, embora, ao existir, tenha de assumir ser-fundamento. Ser o próprio fundamento lançado é o PODER-SER em jogo na cura. STMSC: §58

O apelo é apelo da cura. O ser e estar em dívida constitui o ser que chamamos de cura. Na estranheza, a presença [Dasein] se encontra originariamente reunida consigo mesma. A estranheza coloca esse ente diante de seu nada inconfundível, o qual pertence à possibilidade de seu PODER-SER mais próprio. Na medida em que, para a presença [Dasein] enquanto cura, o que está em jogo é o seu ser, a partir da estranheza, ela faz apelo a si mesma, enquanto faticamente decadente no impessoal, para assumir o seu PODER-SER. A interpelação é uma reclamação apeladora: a-pelar a possibilidade de, em existindo, assumir, em si mesmo, o ente-lançado que é; re-clamar para o estar-lançado de modo a se compreender como fundamento do nada a ser assumido na existência. A reclamação apeladora da consciência oferece para a presença [Dasein] a compreensão de que ela, na possibilidade de seu ser, é o fundamento nulo de seu projeto nulo, devendo recuperar-se para si mesma da perdição no impessoal, ou seja, de que ela é e está em dívida. STMSC: §58

O sentido de apelo esclarece-se caso a compreensão se atenha ao sentido existencial de ser e estar em dívida, em lugar de supor o conceito derivado de culpa, no sentido de uma dívida “nascida” de um ato ou omissão. Essa exigência não é arbitrária desde que o apelo da consciência, que provém ele mesmo da presença [Dasein], se dirija unicamente para esse ente. O fazer apelo ao ser e estar em dívida significa uma apelação do PODER-SER que, enquanto presença [Dasein], eu sempre sou. Esse ente não precisa primeiramente carregar-se de “culpa” por falta ou omissão. Ele deve apenas ser e estar propriamente em dívida – tal como ele é e está. STMSC: §58

A escuta legítima da interpelação equivale a um compreender de si em seu PODER-SER mais próprio, ou seja, em se projetando para o seu PODER-SER e estar em dívida mais próprio. Permitir a apelação desta possibilidade numa compreensão implica o tornar-se livre da presença [Dasein] para o apelo: a prontidão para poder ser interpelada. Compreendendo o apelo, a presença [Dasein] se faz escuta para a sua possibilidade de existência mais própria. Ela escolheu a si mesma. STMSC: §58

Embora o apelo nada dê a conhecer, ele não é meramente crítico, sendo também positivo; ele abre o PODER-SER mais originário da presença [Dasein] como ser e estar em dívida. A consciência revela-se, portanto, como testemunho pertencente ao ser da presença [Dasein] onde ela apela a si mesma em seu PODER-SER mais próprio. Será que esse PODER-SER em sentido próprio assim testemunhado pode ser determinado existencialmente de forma ainda mais concreta? Antes de mais nada surge a seguinte pergunta: Enquanto não desaparecer a estranheza de aqui se ter interpretado unilateralmente a consciência pela constituição da presença [Dasein], passando-se apressadamente por cima de todos os dados conhecidos da interpretação vulgar da consciência, será que a explicitação do PODER-SER testemunhado na presença [Dasein] pode reivindicar suficiente evidência? Será que na presente interpretação ainda se pode reconhecer o fenômeno da consciência tal como ele é “realmente”? Não será que se deduziu, com demasiada ingenuidade, da constituição ontológica da presença [Dasein] uma ideia de consciência? STMSC: §58

Para se assegurar que, no último passo da interpretação da consciência, a saber, da delimitação existencial do PODER-SER próprio testemunhado na consciência, se tenha acesso à compreensão vulgar da consciência, faz-se necessária uma comprovação explícita do nexo entre os resultados da análise ontológica e as experiências cotidianas da consciência. STMSC: §58

O com a caracterização da originariedade das ideias de uma “má” a e “boa” consciência já se decidiu também acerca da distinção entre uma consciência que censura retroativamente e adverte previamente. Na verdade, a ideia da consciência que adverte parece ser a que mais se aproxima do fenômeno do fazer apelo… Com esta, ela tem a em comum o caráter de referência prévia. No entanto, essa concordância não passa de aparência. A experiência de uma consciência que adverte só vê a voz orientada para o ato da vontade, frente ao qual ela deve resguardar-se. Enquanto interdição do que se quer, a advertência só é possível porque o apelo “que adverte” almeja o PODER-SER da presença [Dasein], ou seja, a compreensão do ser e estar em dívida aonde “o que se quer” pode romper-se. A consciência que adverte tem a função de regulamentar, momentaneamente, o ficar livre de culpabilizações. A experiência de uma consciência “que adverte” apenas revê a tendência de apelo da consciência, quando ela permanece nos limites da compreensibilidade do impessoal. STMSC: §59

É a partir da expectativa de uma indicação útil das possibilidades de “ação”seguras, disponíveis e calculáveis que se sente a falta de um conteúdo “positivo” no que se apela. Essa expectativa funda-se no horizonte da ocupação que compreende e força a existência da presença [Dasein] à ideia de um todo negociável segundo regras. Tais expectativas que, em parte, constituem também o solo implícito da exigência de uma ética material dos valores frente a uma ética “meramente” formal acabam se decepcionando com a consciência. O apelo da consciência não propicia tais indicações “práticas” unicamente porque ele faz apelo à presença [Dasein] para a existência, para o PODER-SER mais próprio de si mesma. Com as máximas esperadas e precisamente calculadas, a consciência negaria à existência nada menos do que a possibilidade de agir. Porque, manifestamente, a consciência não pode ser “positiva” nesse modo, ela também não funciona nesse mesmo modo “apenas negativamente”. O apelo não entreabre nada que, enquanto algo passível de ocupação, pudesse ser positivo ou negativo, porque ele diz respeito a um ser ontologicamente diverso, qual seja, à existência. Em contrapartida, no sentido existencial, o apelo, compreendido corretamente no sentido existencial, propicia o que há “de mais positivo”, ou seja, a possibilidade mais própria que se pode dar à presença [Dasein] enquanto reclamação apeladora do PODER-SER faticamente a cada vez si-mesma. Ouvir com propriedade o apelo significa colocar-se na ação fática. Só podemos conquistar uma interpretação plena e suficiente do que se apela no apelo quando se elaborar e apresentar a estrutura existencial à base da compreensão que propriamente escuta o interpelar como tal. STMSC: §59

A interpretação existencial da consciência deve expor um testemunho de seu PODER-SER mais próprio que está sendo na própria presença [Dasein]. O testemunho da consciência não é um anúncio indiferente mas uma apelação apeladora do ser e estar em dívida. O que se testemunha é, pois, “apreendido” no ouvir que compreende o apelo sem deturpações, no sentido por ele mesmo intencionado. Apenas a compreensão do interpelar, enquanto modo de ser da presença [Dasein], propicia o teor fenomenal do que é testemunhado no apelo da consciência. Caracterizamos a compreensão própria do apelo como querer-ter-consciência. Esse deixar o si-mesmo mais próprio agir em si por si mesmo, em seu ser e estar em dívida, representa, do ponto de vista fenomenal, o PODER-SER próprio, testemunhado na presença [Dasein]. A sua estrutura existencial deve ser agora liberada numa exposição. Somente assim penetraremos na constituição fundamental da propriedade da existência que se abre na própria presença [Dasein]. STMSC: §60

Enquanto compreender-se no PODER-SER mais próprio, o querer-ter-consciência é um modo de abertura da presença [Dasein]. Além do compreender, esta se constitui de disposição e fala. O compreender existenciário significa: projetar-se para a possibilidade fática cada vez mais própria do PODER-SER-no-mundo. Poder-ser, porém, só pode ser compreendido em existindo nessa possibilidade. STMSC: §60

O terceiro momento essencial da abertura é a fala. Entendido como fala originária da presença [Dasein], o apelo exclui toda e qualquer fala contrária, algo no sentido de uma discussão negociadora do que diz a consciência. A escuta compreensiva do apelo recusa a fala contrária não porque essa escuta fosse atropelada por um “poder obscuro” e repressor mas por se apropriar, sem encobrimentos, do conteúdo do apelo. O apelo apresenta o insistente ser e estar em dívida, retirando, assim, o si-mesmo da algazarra da compreensão impessoal. Por isso a silenciosidade é o modo de articulação da fala que pertence ao querer-ter-consciência. Caracterizou-se o silêncio como possibilidade essencial da fala. Aquele que, silenciando, quer dar a compreender, deve “ter algo a dizer”. Na interpelação, a presença [Dasein] dá a compreender o seu PODER-SER mais próprio. Por isso, o apelo é um silêncio. A fala da consciência nunca chega a articular-se. A consciência só apela em silêncio, ou seja, o apelo provém da mudez da estranheza e reclama a presença [Dasein] apelada para aquietar-se na quietude de si mesma. É só na silenciosidade, portanto, que o querer-ter-consciência compreende, adequadamente, essa fala silenciosa. A silenciosidade retira a palavra da falação e da compreensão impessoal. STMSC: §60

Com a decisão conquistamos, agora, a verdade mais originária da presença [Dasein] porque a mais própria. A abertura do pre [das Da] abre, cada vez de modo igualmente originário, a totalidade do ser-no-mundo, ou seja, o mundo, o ser-em e o si-mesmo que esse ente é enquanto “eu sou”. Com a abertura do mundo, sempre já se descobriram entes intramundanos. A descoberta do que está à mão e do que é simplesmente dado funda-se na abertura de mundo; pois a liberação do todo conjuntural de qualquer manual exige um pre-compreender [Vorverstehen] da significância. Compreendendo-a, a presença [Dasein] ocupada numa circunvisão remete para o que vem ao encontro da mão. O compreender da significância como abertura de cada mundo funda-se, assim, no compreender em virtude de… a que está remetida toda descoberta da totalidade conjuntural. O abrigo, a manutenção, o abandono de suas funções são possibilidades constantes e imediatas da presença [Dasein] para as quais esse ente, em que está em jogo seu ser, sempre já se projetou. Lançada em seu “pre” [das Da], a presença [Dasein] já está sempre faticamente remetida a um “mundo” determinado, o seu. Junto com ele, os projetos são faticamente conduzidos da perdição nas ocupações para o impessoal. Essa perdição pode ser interpelada pelo próprio de cada presença [Dasein], e a interpelação pode ser compreendida no modo da decisão. Essa abertura própria, porém, modifica, de forma igualmente originária, a descoberta do “mundo” e a abertura da co-presença [Dasein] dos outros nela fundada. Quanto a seu “conteúdo”, o “mundo” à mão não se torna um outro mundo, o círculo dos outros não se modifica, embora, agora, o ser-para o que está à mão, no modo de compreender e ocupar-se, e o ser-com da preocupação com os outros sejam determinados a partir de seu PODER-SER mais próprio. STMSC: §60

A presença [Dasein] decidida se liberta para seu mundo a partir daquilo em virtude de que o PODER-SER se escolhe a si mesmo. Somente a decisão de si mesma coloca a presença [Dasein] na possibilidade de, sendo com outros, se deixar “ser” em seu PODER-SER mais próprio e, juntamente com este, abrir a preocupação liberadora e antecipadora. A presença [Dasein] decidida pode tornar-se “consciência” dos outros. Somente a partir do ser si-mesma mais próprio da decisão é que brota a convivência em sentido próprio. Esta não brota nem dos compromissos ambíguos e invejosos das alianças tagarelas características do impessoal e nem de qualquer coisa que, impessoalmente, se queira empreender. STMSC: §60

De acordo com sua essência ontológica, a decisão é sempre decisão de uma determinada presença [Dasein] fática. A essência desse ente é sua existência. Decisão só “existe” enquanto a decisão que se projeta num compreender. Mas em virtude de que a presença [Dasein] se decide na decisão? Para que ela deve se decidir? Somente o decisivo pode dar a resposta. Seria uma total incompreensão do fenômeno da decisão pretender que ele seja meramente um apoderar-se das possibilidades apresentadas e recomendadas. O decisivo é justamente o projeto e a determinação que abrem as possibilidades faticamente dadas a cada vez. A indeterminação que caracteriza cada PODER-SER faticamente lançado da presença [Dasein] pertence necessariamente à decisão. A decisão só está segura de si enquanto o decisivo. Mas a indeterminação existenciária da decisão, que só se determina no decisivo, também possui sua determinação existencial. STMSC: §60

É na existencialidade da presença [Dasein], como um PODER-SER no modo da preocupação em ocupações, que se prelineia, ontologicamente, o para quê da decisão. Todavia, enquanto cura, a presença [Dasein] se determina por facticidade e decadência. Aberta em seu “pre” [das Da], ela se mantém, de modo igualmente originário, na verdade e na não-verdade. “Propriamente” isso vale justamente para a decisão enquanto verdade própria. Ela se apropria propriamente da não-verdade. A presença [Dasein] já está e, talvez sempre esteja, na indecisão. Esse termo designa apenas o fenômeno já interpretado como abandono à interpretação predominante do impessoal. A presença [Dasein] é “vivida” como o impessoal-si-mesmo pela ambiguidade do senso comum, característica do público em que ninguém se decide e que, no entanto, já sempre incide. A decisão significa deixar-se receber o apelo a partir da perdição no impessoal. A indecisão do impessoal permanece também predominante, embora não seja capaz de alcançar a existência decidida. Enquanto conceito inverso à decisão em sua compreensão existencial, a indecisão não significa uma qualidade ôntica e psíquica, no sentido de sobrecarga de repressões. O decisivo também continua referido ao impessoal e a seu mundo. A possibilidade disto ser compreendido depende do que se abre na decisão, já que só a decisão propicia à presença [Dasein] a transparência própria. Na decisão está em jogo o PODER-SER mais próprio da presença [Dasein] que, lançado, só pode projetar-se para possibilidades faticamente determinadas. O decisivo não se retira da “realidade” mas descobre o faticamente possível, a tal ponto que o apreende como o PODER-SER mais próprio, possível no impessoal. A determinação existencial da presença [Dasein] decidida a cada possibilidade abrange os momentos constitutivos do fenômeno existencial, até agora desconsiderado, que chamamos de situação. STMSC: §60

A decisão conduz o ser do pre [das Da] à existência de sua situação. A decisão, porém, delimita a estrutura existencial do PODER-SER próprio, testemunhado na consciência, isto é, do querer-ter-consciência. Nele reconhecemos a compreensão adequada do interpelar. Com isso, torna-se inteiramente claro que o apelo da consciência, o fazer apelo ao PODER-SER, não propõe nenhum ideal vazio de existência, mas faz apelo para a situação. Essa positividade existencial do apelo da consciência, corretamente compreendido, também evidencia a medida em que a limitação da tendência do apelo para culpabilizações anteriormente cometidas e contraídas desconhece o caráter de abertura da consciência e aparentemente só nos transmite a compreensão concreta de sua voz. A interpretação existencial que compreende o interpelar enquanto decisão desvela a consciência como o modo de ser que se acha no fundo da presença [Dasein]. É neste modo de ser que a consciência, testemunhando o PODER-SER mais próprio, possibilita para si mesma a sua existência fática. STMSC: §60

Expor os traços fundamentais e as correlações das possibilidades faticamente existenciárias bem como interpretá-las em sua estrutura existencial pertence ao âmbito das tarefas da antropologia tematicamente existencial. Para o propósito da ontologia fundamental inerente à presente investigação basta delimitar, existencialmente, o PODER-SER próprio testemunhado na consciência pela e para a própria presença [Dasein]. STMSC: §60

Ao elaborar a decisão como o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio, esta investigação se vê capacitada para delimitar o sentido ontológico do PODER-SER todo em sentido próprio da presença [Dasein]. Propriedade da presença [Dasein] agora não é mais uma expressão vazia e nem uma ideia inventada. Todavia, mesmo assim, o ser-para-a-morte próprio enquanto PODER-SER todo de modo próprio, existencialmente deduzido, permanece um projeto puramente existencial, que ainda necessita de um testemunho da presença [Dasein]. Somente encontrando esse testemunho a investigação poderá satisfazer a demonstração, exigida por sua problemática, de um PODER-SER todo da presença [Dasein] em sentido próprio, confirmado e esclarecido existencialmente. Pois só quando esse ente se tornar fenomenalmente acessível em sua propriedade e totalidade é que a questão do sentido ontológico desse ente, a cuja existência pertence toda e qualquer compreensão de ser, poderá alcançar um solo resistente. STMSC: §60

Projetou-se existencialmente um PODER-SER todo em sentido próprio da presença [Dasein]. A análise e interpretação do fenômeno desvelou o ser-para-a-morte próprio como antecipar. Em seu testemunho existenciário, o PODER-SER próprio da presença [Dasein] mostrou-se na decisão, tendo sido, ao mesmo tempo, interpretado existencialmente. Como se devem conjugar ambos os fenômenos? O projeto ontológico do PODER-SER todo em sentido próprio não levou a uma dimensão da presença [Dasein] muito distante do fenômeno da decisão? O que a morte tem em comum com a “situação concreta” da ação? Será que a tentativa de forçar a união entre decisão e antecipação não leva a uma construção insuportável, de todo não fenomenológica, que nem é capaz de reivindicar o caráter de um projeto ontológico com base fenomenal? STMSC: §61

Uma ligação exterior entre os fenômenos já está de per si proibida. Metodologicamente, resta apenas um caminho possível, a saber, partir do fenômeno da decisão, testemunhado em sua possibilidade existenciária, e perguntar: Será que em sua tendência de ser mais propriamente existenciária, a decisão remete ela mesma para a decisão antecipadora como a sua possibilidade mais própria? E se, de acordo com seu sentido próprio, a decisão só alcançasse a sua propriedade quando não se projetasse para possibilidades arbitrárias e sempre as mais imediatas mas, ao contrário, somente quando se projetasse para a possibilidade extrema que antecede todo PODER-SER fático da presença [Dasein] e, como tal, inserindo-se, de forma mais ou menos inconfundível, em cada PODER-SER faticamente assumido? E se, enquanto verdade própria da presença [Dasein], a decisão só alcançasse a sua certeza própria e pertinente no antecipar para a morte? E se toda “antecipação” fática de decisões só fosse propriamente compreendida, isto é, existenciariamente alcançada, no antecipar para a morte? STMSC: §61

Enquanto a interpretação existencial não esquecer que o seu ente temático possui o modo de ser da presença [Dasein] e que ele nunca pode ser um ente simplesmente dado, resultante da colagem de pedaços simplesmente dados, todos os seus passos devem deixar-se guiar, em conjunto, pela ideia de existência. No que concerne à questão do nexo possível entre antecipação e decisão, trata-se, nada menos, do que da exigência de projetar esses fenômenos existenciais sobre as possibilidades existenciárias já delineadas e pensá-las, existencialmente, “até o fim”. Com isso, elaborar a decisão antecipadora no sentido de um PODER-SER todo, existenciariamente possível e próprio, perde o caráter de uma construção arbitrária. Trata-se, pois, de liberar, numa interpretação, a presença [Dasein] para a sua possibilidade de existência mais extrema. STMSC: §61

É comprovando-se que, no fundo, todas as estruturas fundamentais da presença [Dasein] até aqui expostas devem ser concebidas “temporalmente” e como modos da temporalização da temporalidade em sua possível totalidade, unidade e desdobramento, que se pode assegurar o fenômeno originário da temporalidade. Com a liberação da temporalidade, emerge para a analítica existencial a tarefa de retomar a análise já realizada da presença [Dasein] no sentido de uma interpretação das estruturas essenciais em sua temporalidade. As linhas-mestras das análises assim exigidas são traçadas pela própria temporalidade. O presente capítulo obedece à seguinte divisão: o PODER-SER todo, em sentido existenciário e próprio, da presença [Dasein] enquanto decisão antecipadora (§62); a situação hermenêutica adquirida para uma interpretação do sentido ontológico da cura e o caráter metodológico da analítica existencial (§63); cura e si-mesmo (§64); a temporalidade como sentido ontológico da cura (§65); a temporalidade da presença [Dasein] e as tarefas daí decorrentes de uma retomada mais originária da análise existencial (§66). STMSC: §61

Em que medida a decisão, “pensada até o fim” em sua tendência ontológica mais própria, conduz ao ser-para-a-morte próprio? Como se deve conceber o nexo entre o querer-ter-consciência e o PODER-SER todo próprio, inerente à presença [Dasein], projetado existencialmente? Será que a fusão de ambos resulta em um novo fenômeno? Ou será que esse fenômeno se mantém na decisão, testemunhada em sua possibilidade existenciária, de tal modo que a decisão poderia, através do ser-para-a-morte, fazer a experiência de uma modalização existenciária? O que significa, porém, “pensar até o fim”, de modo existencial, o fenômeno da decisão? STMSC: §62

Caracterizou-se a decisão como o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio. Este pertence ao ser da presença [Dasein] e significa o ser-fundamento nulo de um nada. A “dívida” inerente ao ser da presença [Dasein] não admite aumento e nem diminuição. Pois se acha antes de qualquer quantificação, caso esta possua de todo algum sentido. Essencialmente em dívida, a presença [Dasein] não pode de vez em quando estar em dívida e depois não mais. O querer-ter-consciência decide-se por esse ser e estar em dívida. No sentido próprio da decisão reside o projetar-se para esse ser e estar em dívida que a presença [Dasein] é enquanto é. O assumir existenciário dessa “dívida” na decisão só se realiza propriamente caso a decisão se torne, em sua abertura, tão transparente que compreenda o ser e estar em dívida como algo constante. Esse compreender, porém, só é possível porque a presença [Dasein] abre para si o PODER-SER “até o fim”. Mas ser e estar-no-fim da presença [Dasein] diz, existencialmente, ser-para-o-fim. A decisão só se torna propriamente aquilo que ela pode ser como ser-para-o-fim que compreende, isto é, como antecipar da morte. A decisão não “possui” meramente um nexo com o antecipar no sentido de ser algo diferente dela. Ela abriga em si o ser-para-a-morte enquanto modalidade existenciariamente possível de sua própria propriedade. Cabe, pois, esclarecer, fenomenalmente, esse “nexo”. STMSC: §62

Decisão diz: deixar-se apelar no ser e estar em dívida mais próprio. O ser e estar em dívida pertence ao próprio ser da presença [Dasein] que determinamos, primariamente, como PODER-SER. Dizer que a presença [Dasein] constantemente “é e está” em dívida só pode significar que ela sempre se mantém nesse ser, existindo própria ou impropriamente. O ser e estar em dívida não é apenas uma característica insistente do que é sempre simplesmente dado, mas a possibilidade existenciária de ser e estar em dívida de modo próprio ou impróprio. O “dívida” só é num PODER-SER fático. Porque pertence ao ser da presença [Dasein], deve-se conceber o ser e estar em dívida como PODER-SER e estar em dívida. A decisão projeta-se para esse PODER-SER, isto é, nele se compreende. Esse compreender mantém-se, pois, numa possibilidade originária da presença [Dasein]. Propriamente, ela aí se mantém caso a decisão seja originária naquilo que ela tende a ser. O ser originário da presença [Dasein] para o seu PODER-SER desvelou-se como ser-para-a-morte, ou seja, para a possibilidade característica e privilegiada da presença [Dasein]. O antecipar abre essa possibilidade como possibilidade. Somente antecipando a decisão torna-se um ser originário para o PODER-SER mais próprio da presença [Dasein]. A decisão só compreende o “pode” do PODER-SER e estar em dívida quando ela se “qualifica” como ser-para-a-morte. STMSC: §62

Decidida, a presença [Dasein] assume propriamente, em sua existência, que ela é o fundamento nulo de seu nada. Concebemos existencialmente a morte como a possibilidade característica da impossibilidade de existência, ou seja, como o absolutamente nada da presença [Dasein]. A morte não se agrega à presença [Dasein] no seu “fim”. Enquanto cura, a presença [Dasein] é o fundamento lançado (isto é, nulo) de sua morte. O nada que originariamente domina o ser da presença [Dasein] se lhe desvela no ser-para-a-morte próprio. O antecipar revela o ser e estar em dívida a partir do fundamento de todo o ser da presença [Dasein]. A cura abriga em si, de modo igualmente originário, morte e dívida. É a decisão antecipadora que compreende o PODER-SER e estar em dívida propriamente e totalmente, ou seja, originariamente. STMSC: §62

A compreensão do apelo da consciência desvela a perdição no impessoal. A decisão recupera a presença [Dasein] para o seu PODER-SER si-mesma. mais próprio. É na compreensão do ser-para-a-morte enquanto possibilidade mais própria que o PODER-SER próprio torna-se totalmente transparente em sua propriedade. STMSC: §62

Na interpelação, o apelo da consciência ultrapassa todo prestígio e poder “mundanos” da presença [Dasein]. O apelo singulariza, de forma inexorável, a presença [Dasein] em seu PODER-SER e estar em dívida, dispondo-a a ser propriamente aquilo que é. STMSC: §62

A singularização essencial do PODER-SER mais próprio revela, em sua completa nitidez, a antecipação para a morte como a possibilidade irremissível. A decisão antecipadora faz ressoar inteiramente na consciência o PODER-SER e estar em dívida como o mais próprio e irremissível. STMSC: §62

O querer-ter-consciência significa a prontidão para reclamar o ser e estar em dívida mais próprio, que sempre já determinou, de fato, a presença [Dasein], antes de toda e qualquer culpabilização e depois de sua quitação. Esse ser e estar em dívida insistente e antecedente só se mostra descoberto em sua antecedência caso esta antecedência se coloque dentro da possibilidade absolutamente insuperável para a presença [Dasein]. Se, antecipando, a decisão tiver alcançado a possibilidade da morte em seu PODER-SER, a existência própria da presença [Dasein] já não pode mais ser por nada ultrapassada. STMSC: §62

Com o fenômeno da decisão, colocamo-nos diante da verdade originária da existência. Decidida, a presença [Dasein] se desvela para si mesma em seu PODER-SER fático, de maneira a ser este desvelar e estar desvelado. Pertence à verdade um ter-por-verdadeiro, que sempre lhe corresponde. O ser e estar-certo é a apropriação explícita do que se abriu e se descobriu. A verdade originária da existência exige um estar-certo igualmente originário, no sentido de ater-se ao que a decisão lhe abre. Ela dá a si a situação fática e nela se coloca. A situação não pode ser antecipadamente calculada ou prevista como algo simplesmente dado, que espera por sua apreensão. Ela só se abre numa decisão livre, previamente indeterminada mas aberta a determinações. O que significa a certeza inerente a tal decisão? Ela deve ater-se ao que se abriu na decisão. Isso significa, porém, que ela não pode enrijecer-se na situação mas deve compreender que, de acordo com o seu sentido próprio de abertura, a decisão deve manter-se aberta e livre para as possibilidades fáticas. A certeza da decisão significa: manter-se livre para o seu reassumir possível e faticamente necessário. Esse ter-por-verdadeiro da decisão (enquanto verdade da existência) não permite, em absoluto, recair na indecisão. Ao contrário, enquanto manter-se livre na decisão para reassumir, este ter-por-verdadeiro é decidir com propriedade pela retomada de si mesmo. Com isso, enterra-se justamente a perdição existenciária na indecisão. O ter-por-verdadeiro inerente à decisão tende, de acordo com seu sentido, a manter-se constantemente livre, ou seja, para todo o PODER-SER da presença [Dasein]. Essa certeza insistente só confirma a decisão quando se atém à possibilidade da qual ela pode ser e estar absolutamente certa. Em sua morte, a presença [Dasein] deve, pura e simplesmente, “reassumir-se”. Estando constantemente certa dela, isto é, antecipando-a, a decisão conquista sua certeza própria e total. STMSC: §62

A presença [Dasein], no entanto, está de modo igualmente originário na não-verdade. A decisão antecipadora lhe dá, ao mesmo tempo, a certeza originária de seu fechamento. Antecipadamente decidida, e com base em seu próprio ser, a presença [Dasein] mantém-se aberta para a possibilidade de, constantemente, perder-se na indecisão do impessoal. Como possibilidade insistente da presença [Dasein], a indecisão também é certa. Transparente para si mesma, a decisão compreende que a indeterminação do PODER-SER só se determina no decisivo de cada situação. Ela sabe da indeterminação que domina um ente que existe. Caso pretenda corresponder à própria decisão, esse saber deve então surgir de uma abertura em sentido próprio. A indeterminação do PODER-SER próprio, embora certa na decisão, só se revela totalmente no ser-para-a-morte. O antecipar coloca a presença [Dasein] diante de uma possibilidade constantemente certa e, não obstante, a todo instante, indeterminada, quando a possibilidade se torna impossibilidade. Ela revela que esse ente está-lançado na indeterminação de sua “situação limite”, em cuja decisão a presença [Dasein] adquire seu PODER-SER toda em sentido próprio. A indeterminação da morte entreabre-se, originariamente, na angústia. Essa angústia originária, porém, aspira a dispor-se à decisão. Ela varre todo encobrimento acerca do abandono da presença [Dasein]. O nada trazido pela angústia desvela a nulidade que determina o fundamento da presença [Dasein] que, por sua vez, é enquanto estar-lançado na morte. STMSC: §62

Por outro lado, a interpretação do “nexo” entre decisão e antecipar alcançou, assim, a compreensão existencial plena do próprio antecipar. Até aqui, ele só podia valer como projeto ontológico. Agora, porém, mostrou-se que antecipar não é uma possibilidade inventada e a seguir imposta à presença [Dasein], mas o modo de um PODER-SER, testemunhado existenciariamente na presença [Dasein] a que ela se dispõe quando se compreende propriamente numa decisão. Antecipar não “é” uma atitude solta no ar mas deve ser concebido como a possibilidade de sua propriedade velada e incluída na decisão existenciariamente co-testemunhada. Em sentido próprio, “pensar na morte” é a transparência existenciária do querer-ter-consciência. STMSC: §62

Se a decisão tende propriamente para o modo delimitado pelo antecipar e se esta constitui, por sua vez, o PODER-SER todo da presença [Dasein] em sentido próprio, então a decisão testemunhada existenciariamente também atesta um PODER-SER todo da presença [Dasein] em sentido próprio. A questão do PODER-SER todo é, portanto, uma questão fática e existenciária, a que a presença [Dasein] responde numa decisão. A questão sobre o PODER-SER todo da presença [Dasein] desvinculou-se agora, por completo, do caráter inicialmente apontado em que ela se apresentava como questão teórica e metodológica da analítica da presença [Dasein], nascida de um esforço por alcançar o “dar-se” da presença [Dasein] em seu todo. Esta questão, de início discutida apenas do ponto de vista de uma metodologia ontológica, era legítima, mas somente porque a sua base remonta a uma possibilidade ôntica da presença [Dasein]. STMSC: §62

O esclarecimento do “nexo” entre antecipar e decisão, no sentido da modalização possível desta através daquela, tornou-se demonstração fenomenal de um PODER-SER todo da presença [Dasein] em sentido próprio. Se com esse fenômeno chegou-se a encontrar um modo de ser da presença [Dasein] em que ela se coloca diante de si e para si, então, para a interpretação cotidiana e comum do impessoal, ele deve permanecer incompreensível, tanto ôntica quanto ontologicamente. Seria um equívoco tanto jogar para o alto essa possibilidade existenciária, considerando-a “incomprovada”, quanto pretender “comprová-la” teoricamente. Entretanto, o fenômeno precisa proteger-se das mais grosseiras inversões. STMSC: §62

A decisão antecipadora não é, de modo algum, um subterfúgio inventado para “superar” a morte. Ela é o compreender que responde ao apelo da consciência, a qual libera a possibilidade de a morte apoderar-se da existência da presença [Dasein] e de, no fundo, dissipar todo encobrimento de si mesma, por menor que seja. O querer-ter-consciência, determinado como ser-para-a-morte, também não significa um desprendimento do mundo mas conduz, sem ilusões, à decisão do “agir”. A decisão antecipadora também não surge de uma disposição “idealista” que sobrevoa a existência e suas possibilidades. Ela brota do compreender sóbrio de possibilidades fundamentais e fáticas da presença [Dasein]. Junto com a angústia sóbria que leva para a singularidade do PODER-SER, está a alegria mobilizada dessa possibilidade. Nela, a presença [Dasein] se vê livre dos “acasos” dos entretenimentos que a curiosidade solícita cria, sobretudo, a partir das ocorrências do mundo. A análise destes estados fundamentais de humor ultrapassa, porém, os limites estabelecidos para a presente interpretação em seu propósito de ontologia fundamental. STMSC: §62

Com a decisão antecipadora, a presença [Dasein] tornou-se fenomenalmente visível no tocante à sua possível propriedade e totalidade. A situação hermenêutica, que até aqui havia permanecido insuficiente para a interpretação do sentido ontológico da cura, conseguiu alcançar a originariedade exigida. Originariamente, ou seja, no tocante a seu PODER-SER todo em sentido próprio, a presença [Dasein] já se acha na posição prévia; mediante o esclarecimento do PODER-SER mais próprio, ganhou determinação a visão prévia orientadora, isto é, a ideia de existência; com a elaboração concreta da estrutura ontológica da presença [Dasein], torna-se de tal modo clara a sua especificidade ontológica frente a todo e qualquer ser simplesmente dado que a concepção prévia da existencialidade da presença [Dasein] adquire articulação suficiente para orientar, com segurança, a elaboração conceituai dos existenciais. STMSC: §63

Não apenas a demonstração das estruturas mais elementares do ser-no-mundo, a delimitação do conceito de mundo, o esclarecimento do quem mais imediato e mediano desse ente, do impessoalmente-si-mesmo, a interpretação do “pre” [das Da], mas, sobretudo, as análises de cura, morte, consciência e dívida, mostram como se consolidou, na própria presença [Dasein], a compreensibilidade do PODER-SER nas ocupações e de sua abertura, isto é, de seu fechamento. STMSC: §63

Mas ainda assim de onde se deve retirar o que constitui “propriamente” a existência da presença [Dasein]? Sem uma compreensão existenciária, toda análise da existencialidade permanece sem solidez. Será que a interpretação da propriedade e totalidade da presença [Dasein] não tem por base uma concepção ôntica da existência que, não obstante possível, não precisa, obrigatoriamente, impor-se a toda e qualquer concepção de existência? A interpretação existencial nunca pretenderá exercer poder sobre as possibilidades e obrigações existenciárias. Mas não deverá ela justificar a si mesma no que tange às possibilidades existenciárias com as quais ela oferece um solo ôntico para a interpretação ontológica? Se, de modo essencial, o ser da presença [Dasein] é PODER-SER e ser-livre para as suas possibilidades mais próprias, e se ele só existe na liberdade e não-liberdade para estas possibilidades, poderá então a interpretação ontológica basear-se em outras possibilidades senão as ônticas (modos de PODER-SER) e projetá-las sobre a sua possibilidade ontológica? E se, na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se interpreta a partir da perdição no “mundo” das ocupações? Nesse caso, a determinação das possibilidades ôntico-existenciárias, conquistada em contracorrente à perdição, e a análise existencial que nelas se funda não constituiriam o modo de abertura adequado a esse ente? A violência do projeto não se tornaria, assim, cada vez, uma liberação do teor fenomenal não distorcido da presença [Dasein]? STMSC: §63

Mesmo imposta metodologicamente, será que a “violência” do dado prévio das possibilidades da existência consegue escapar da arbitrariedade? Mas se, enquanto PODER-SER propriamente existenciário, a analítica está à base da decisão antecipadora cuja possibilidade é interpelada pela própria presença [Dasein] e isso com base em sua a existência, será então essa possibilidade arbitrária CH: isso não; entretanto, “não arbitrário” ainda não significa necessário e constringente? Será casual a concepção do modo de ser em que o PODER-SER da presença [Dasein] se comporta frente à sua possibilidade mais privilegiada, a morte? Terá o ser-no-mundo uma instância de seu PODER-SER ainda mais elevada do que a morte? STMSC: §63

Mesmo não sendo arbitrário, será que o projeto ôntico-ontológico da presença [Dasein] para um PODER-SER todo em sentido próprio já se legitima com a interpretação existencial desse fenômeno? De onde ela retira o fio condutor a não ser da “pressuposição” da ideia de existência? A partir de onde os passos da análise da cotidianidade imprópria retiram suas regras a não ser da suposição de um conceito de existência? E quando dizemos: a presença [Dasein] “decai” e, por isso, a propriedade do PODER-SER deve ser arrancada contra essa tendência de ser – de que ponto de vista se está falando? Tudo isso não se esclarece de algum modo, mesmo que obscuramente, à luz da “pressuposição” de uma ideia da existência? De onde ela retira seu direito? Teria sido destituído de orientação o seu primeiro projeto indicador? De modo nenhum. STMSC: §63

A indicação formal da ideia de existência orientou-se pela compreensão ontológica subsistente na própria presença [Dasein]. Mesmo sem transparência ontológica, desvelou-se, na verdade, que o ente chamado presença [Dasein] sou sempre eu mesmo e isso enquanto PODER-SER, pois o que nele está em jogo é seu ser esse estar sendo. Não obstante a falta de determinação ontológica suficiente, a presença [Dasein] se compreende como ser-no-mundo. Sendo desse modo, vêm-lhe ao encontro entes que possuem o modo de ser do manual e do ser simplesmente dado. Por mais que a diferença entre existência e realidade esteja longe de um conceito ontológico, por mais que a presença [Dasein] até compreenda, inicialmente, a existência como realidade, ela não apenas não é algo simplesmente dado mas ela já sempre se compreendeu, em qualquer interpretação mítica ou mágica. Pois, do contrário, ela não “viveria” num mito e não se ocuparia, no rito e no culto, de sua magia. A ideia de existência suposta é o prelineamento, existenciariamente não obrigatório, da estrutura formal de toda compreensão de presença [Dasein]. STMSC: §63

A unidade dos momentos constitutivos da cura, existencialidade CH: existência: 1) para todo o ser da presença [Dasein]; 2) somente para o “compreender”, facticidade e decadência, possibilitou uma primeira delimitação ontológica da totalidade do todo estrutural da presença [Dasein]. A estrutura da cura chegou à seguinte fórmula existencial: anteceder-a-si-mesmo-em (um mundo) enquanto ser-junto-a (um ente intramundano que vem ao encontro). Embora articulada, a totalidade da estrutura da cura não resulta de um ajuntamento. Tivemos de avaliar esse resultado ontológico quanto à possibilidade de satisfazer as exigências de uma interpretação originária da presença [Dasein]. Da reflexão resultou que não se tematizou nem toda a presença [Dasein] e nem o seu PODER-SER próprio. A tentativa de apreender fenomenalmente toda a presença [Dasein] pareceu fracassar justamente na estrutura da cura. O anteceder-a-si-mesmo apresentou-se como um ainda-não. Para uma consideração genuinamente existencial, o anteceder-a-si-mesmo desvelou-se como o que está pendente, mas no sentido de ser-para-o-fim que, no fundo de seu ser, toda presença [Dasein] é. Também esclarecemos que, no apelo da consciência, a cura faz apelo à presença [Dasein] para o seu PODER-SER mais próprio. Entendida originariamente, o compreender do apelo revelou-se como decisão antecipadora. Ele abriga em si um PODER-SER todo da presença [Dasein] em sentido próprio. A estrutura da cura não fala contra um possível ser-todo mas é a condição de possibilidade desse PODER-SER existenciário. No encaminhamento da análise, tornou-se claro que os fenômenos existenciais de morte, consciência e dívida estão ancorados no fenômeno da cura. A articulação da totalidade do todo estrutural é ainda mais rica e, por isso, torna também mais urgente a questão existencial da unidade dessa totalidade. STMSC: §64

Sem dúvida, a interpretação ontológica do “eu” não obtém, de forma alguma, a solução do problema, negando-se a seguir o cotidiano falar eu, mas prelineando a direção em que se deve prosseguir o questionamento. O eu significa o ente que se é, “sendo-no-mundo”. O já-ser-em-um-mundo enquanto ser-junto-a-um-manual-intramundano diz, porém, de modo igualmente originário, anteceder-se. “Eu” significa o ente em que está em jogo o ser deste ente que ele é. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, com o “eu” pronuncia-se a cura na fala “fugaz” do eu nas ocupações. O impessoalmente-si-mesmo diz, em alto e bom tom, eu-eu porque, no fundo, ele não é propriamente ele mesmo e escapole de seu PODER-SER próprio. Se a constituição ontológica do si-mesmo não se deixa remontar a uma substância-eu e nem a um “sujeito” mas, inversamente, o dizer-eu-eu fugaz e cotidiano é que deve ser compreendido a partir do PODER-SER próprio, disso ainda não segue que o si-mesmo seja, então, o fundamento constantemente e simplesmente dado da cura. O si-mesmo só pode ser lido existencialmente no PODER-SER si-mesmo em sentido próprio, ou seja, na propriedade do ser da presença [Dasein] como cura. A partir dela é que se esclarece a consistência do si-mesmo enquanto pretensa permanência do sujeito. Mas o fenômeno do PODER-SER próprio abre também uma visão para a consistência do si-mesmo no sentido de ter adquirido sustento. A consistência do si-mesmo no duplo sentido da solidez consistente do que permanece é a contra-possibilidade própria da consistência do que não é si-mesmo, na indecisão decadente. Do ponto de vista existencial, a autoconsistência nada mais é do que a decisão antecipadora. A estrutura ontológica desta desvela a existencialidade do si-mesmo que ele, em si-mesmo, é. STMSC: §64

Liberar a perspectiva de um projeto diz abrir o que possibilita o projetado. Do ponto de vista do método, essa liberação exige que se persiga o projeto, à base da interpretação, embora, na maior parte das vezes, implícito, de tal maneira que o projetado no projeto possa se apreender e abrir no tocante à sua perspectiva. Expor o sentido da cura significa, portanto: perseguir o projeto orientador e fundamental da interpretação existencial originária da presença [Dasein] para que se torne visível a perspectiva do projetado. O projetado é o ser da presença [Dasein] e este enquanto o aberto no PODER-SER todo em sentido próprio, que o constitui. A perspectiva deste projeto, do ser que assim se abriu e constituiu, é o que possibilita esta constituição de ser como cura. A questão do sentido da cura é, pois, a seguinte: o que possibilita a totalidade articulada do todo estrutural da cura na unidade desdobrada de suas articulações. STMSC: §65

Em si mesma, a presença [Dasein] se abre em sua existência de modo próprio ou impróprio. Existindo, ela se compreende de tal maneira que este compreender não constitui uma pura apreensão mas o ser existenciário do PODER-SER fático. O ser que se abriu é o ser de um ente em que está em jogo o seu ser. O sentido deste ser, isto é, da cura, que lhe possibilita a constituição, constitui, originariamente, o ser do PODER-SER. O sentido ontológico da presença [Dasein] não é algo diferente e “fora” de si-mesmo, solto no ar, mas a própria presença [Dasein] que se compreende. O que possibilita o ser da presença [Dasein] é, com isso, sua existência fática? STMSC: §65

No projeto existencial originário da existência, o projetado desvelou-se como decisão antecipadora CH: equívoco: aqui se confundem projeto existenciário e transposição existencial para o projeto. O que possibilita que a presença [Dasein] seja toda em sentido próprio na unidade de toda a sua estrutura de articulação? Apreendida formal e existencialmente, sem que se nomeie agora constantemente o conteúdo pleno de sua estrutura, a decisão antecipadora é o ser para o PODER-SER mais próprio e privilegiado. Isto só é possível caso a presença [Dasein] possa de todo a modo vir-a-si em sua possibilidade mais própria e, deixando-se vir-a-si, suporte a possibilidade enquanto possibilidade, ou seja, exista. Este deixar-se-vir-a-si que, na possibilidade privilegiada a sustém, é o fenômeno originário do porvir. Se, ao ser da presença [Dasein], pertence o ser-para-a-morte, próprio ou impróprio, este então só é possível como porvindouro, no sentido agora indicado e que ainda deve ser determinado de forma mais precisa. “Porvir” não significa aqui um agora que, ainda-não tendo se tornado “real”, algum dia o será. Porvir significa o advento em que a presença [Dasein] vem a si em seu PODER-SER mais próprio. O antecipar torna a presença [Dasein] propriamente porvindoura, de tal maneira que o próprio antecipar só é possível quando a presença [Dasein], enquanto um sendo, sempre já vem a si, ou seja, em seu ser, é e está por vir. STMSC: §65

Vindo-a-si mesma num porvir, a decisão atualiza-se na situação. O vigor de ter sido surge do porvir e isso de tal maneira que o porvir do ter sido (melhor, do que tem sido) deixa vir-a-si a atualidade. Chamamos de temporalidade este fenômeno unificador do porvir que atualiza o vigor de ter sido. Somente determinada como temporalidade é que a presença [Dasein] possibilita para si mesma o PODER-SER toda em sentido próprio da decisão antecipadora. Temporalidade desvela-se como o sentido da cura propriamente dito. STMSC: §65

O anteceder-a-si-mesma funda-se no porvir. O já-ser-em… anuncia em si o vigor de ter sido. O ser-junto-a encontra sua possibilidade na atualização. O que foi dito não permite, de modo algum, apreender o “ante” de “anteceder” (Vor im Vorweg) e o “já” de “já-ser-em” a partir da compreensão vulgar de tempo. O “ante” (Vor) não significa o “antes” no sentido de “agora-ainda-não, mas depois”; da mesma forma, o “já” não significa um “agora-não-mais, mas antes”. Se estas expressões “ante” (Vor) e “já” possuíssem este significado temporal  , que aliás também podem possuir, então com temporalidade da cura estar-se-ia dizendo que cura é alguma coisa que se dá “antes” e “depois”, “ainda não” e “não mais”. Nesse caso, a cura seria concebida como um ente que ocorre e transcorre “no tempo”. O ser de um ente com caráter de presença [Dasein] tornar-se-ia, portanto, algo simplesmente dado. Se isso é impossível, então o significado temporal das expressões mencionadas deve ser outro. “Ante” (Vor) e “anteceder” (vorweg) indicam o porvir que, como tal, os possibilita, de maneira que possa dar-se um ente em que está em jogo seu PODER-SER. O projetar-se “em virtude de si-mesmo”, fundado no porvir, é um caráter essencial da existencialidade. O seu sentido primário é o porvir. STMSC: §65

Estas questões devem ser respondidas afirmativamente. E mesmo assim elas não significam nenhuma objeção à finitude da temporalidade originária. Isto porque já não dizem respeito a ela. A questão não é o que ainda pode acontecer “num tempo que prossegue” e nem que espécie de deixar-vir-a-si ocorre “a partir deste tempo”. A questão é como se determina originariamente o deixar-vir-a-si ele mesmo como tal. Finitude não diz primariamente término. Finitude é um caráter da própria temporalização. O porvir originário e próprio é o para-si, um para-si que existe como a possibilidade insuperável do nada. O caráter ekstático do porvir originário reside justamente em incluir o PODER-SER, isto é, em estar ele mesmo incluído e, como tal, possibilitar a compreensão existenciária e decidida do nada. O vir-a-si originário e próprio é o sentido do existir no nada mais próprio. Com a tese da finitude originária da temporalidade não se contesta que “o tempo prossegue”, mas esta tese deve simplesmente manter o caráter fenomenal da temporalidade originária que se mostra no que é projetado pelo projeto existencial e originário da própria presença [Dasein]. STMSC: §65

A primeira tarefa consiste em tornar visível a impropriedade da presença [Dasein] em sua temporalidade específica, através da análise temporal do PODER-SER todo em sentido próprio da presença [Dasein] e de uma caracterização geral da temporalidade da cura. Numa primeira aproximação, a temporalidade mostra-se na decisão antecipadora. Ela é o modo próprio da abertura que, na maior parte das vezes, se mantém na impropriedade da auto-interpretação decadente do impessoal. Caracterizar a temporalidade da abertura em geral leva à compreensão temporal do ser-no-mundo mais imediato das ocupações e, com isso, da indiferença mediana da presença [Dasein], aqui tomada como primeiro ponto de partida da analítica existencial. Chamamos de cotidianidade o modo de ser mediano da presença [Dasein] no qual, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela se mantém. Mediante a retomada da análise anterior, a cotidianidade deve desvelar o seu sentido temporal para, com isso, deixar vir à luz a problemática abrigada na temporalidade e fazer desaparecer por completo a aparente “evidência” das análises preparatórias. A temporalidade deve, na verdade, confirmar-se em todas as estruturas essenciais da constituição fundamental da presença [Dasein]. Isto, porém, não leva a uma repetição esquemática e exterior das análises realizadas em sua sequência. O curso da análise temporal toma agora uma outra direção, tornando ainda mais claro o contexto das considerações anteriores e superando a casualidade e a aparente arbitrariedade. Além dessas necessidades metodológicas, motivos inerentes ao próprio fenômeno impõem uma outra articulação da análise a ser retomada. STMSC: §66

Para que os fenômenos obtidos na análise preparatória possam ser reconduzidos à visão fenomenológica, basta uma indicação a respeito dos estágios percorridos. A delimitação da cura resultou da análise da abertura constitutiva do ser do “pre” [das Da]. O esclarecimento deste fenômeno trouxe consigo a interpretação provisória da constituição fundamental da presença [Dasein], a saber, o ser-no-mundo. A investigação teve início com esta caracterização a fim de assegurar, desde o começo, um horizonte fenomenal suficiente frente às determinações ontológicas prévias da presença [Dasein], em sua maior parte inadequadas e não expressas. Ser-no-mundo foi caracterizado, numa primeira aproximação, na perspectiva do fenômeno do mundo. E, na verdade, a explicação partiu da caracterização ôntico-ontológica do que está à mão e do que é simplesmente dado “em” um mundo circundante para, então, destacando a intramundanidade, nela tornar visível o fenômeno da mundanidade. A estrutura da mundanidade, a significância, demonstrou-se, no entanto, conectada com o para onde o compreender, que pertence essencialmente à abertura, projeta-se, isto é, com o PODER-SER da presença [Dasein], em virtude da qual ela existe. STMSC: §67

Apreendido de modo existencialmente originário, compreender significa: ser, projetando-se num PODER-SER, em virtude do qual a presença [Dasein] sempre existe. O compreender abre o PODER-SER próprio de tal maneira que, compreendendo, a presença [Dasein], de algum modo, sempre sabe a quantas ela mesma anda. Esse “saber” não significa, contudo, ter descoberto um fato mas manter-se numa possibilidade existenciária. O não-saber que lhe corresponde não consiste numa ausência do compreender mas deve ser considerado um modo deficiente de se projetar o PODER-SER. A existência pode tornar-se digna de questionamento. Para que este “estar em questão” seja possível, é necessária uma abertura. O porvir está à base do compreender-se no projeto de uma possibilidade existenciária enquanto um vir-a-si, a partir da possibilidade em que a presença [Dasein] cada vez existe. Do ponto de vista ontológico, o porvir possibilita um ente que é de tal modo que, compreendendo, existe em seu PODER-SER. O projetar-se tem por base o porvir e, consequentemente, não apreende, em primeiro lugar, a possibilidade projetada como tema de uma opinião, mas se lança na possibilidade. Em compreendendo, a presença [Dasein] é, cada vez, como ela pode ser. A decisão mostrou-se como um existir originário e próprio. Sem dúvida, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] permanece indecisa, ou seja, fechada em seu PODER-SER mais próprio no qual ela só se empenha singularizando-se. Isto implica que nem sempre a temporalidade se temporaliza a partir do porvir, em sentido próprio. Essa inconsistência não significa, porém, que a temporalidade careça, por vezes, de porvir e sim que a temporalização do porvir está sujeita a mutações. STMSC: §68

Reservamos o termo antecipar para caracterizar, terminologicamente, o porvir em sentido próprio. Ele indica que, existindo propriamente, a presença [Dasein] faz com que ela mesma venha-a-si como seu PODER-SER mais próprio. Indica também que o porvir deve conquistar a si mesmo não a partir de uma atualidade, mas a partir do porvir impróprio. O termo formal e indiferente para o porvir encontra-se na designação do primeiro momento estrutural da cura, isto é, no anteceder-a-si. De fato, a presença [Dasein] constantemente antecede a si mesma mas inconstantemente, segundo a sua possibilidade existenciária, o faz antecipando. STMSC: §68

Como então distinguir o porvir impróprio? Assim como o porvir em sentido próprio desvela-se na decisão, também este modo ekstático só pode desvelar-se reconduzindo-se, ontologicamente, da compreensão imprópria das ocupações cotidianas, a seu sentido existencial e temporal. Como cura, a presença [Dasein] é, em sua essência, antecipar-se. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o ser-no-mundo compreende-se a partir daquilo de que se ocupa. O compreender impróprio projeta-se para o que é passível de ocupação e feitura, para o que é urgente e inevitável nos negócios dos afazeres cotidianos. Todavia, aquilo de que se ocupa é como é, em virtude do PODER-SER da cura. Este permite que a presença [Dasein], em seu ser de ocupações, venha-a-si ocupando-se do que se ocupa. Primariamente, a presença [Dasein] não vem-a-si em seu PODER-SER mais próprio e irremissível mas é em se ocupando que a presença [Dasein] aguarda a si mesma, a partir do que lhe proporciona ou recusa aquilo de que se ocupa. É a partir daquilo de que se ocupa que a presença [Dasein] vem-a-si. O porvir impróprio possui o caráter de aguardar. Compreender-se, impessoalmente, nas ocupações como o impessoalmente-si-mesmo a partir daquilo que se empreende encontra o “fundamento” de sua possibilidade nesse modo ekstático de porvir. E somente porque de fato a presença [Dasein] aguarda o seu PODER-SER, a partir daquilo de que se ocupa, é que ela pode esperar e tecer expectativas… O aguardar sempre já deve ter aberto o horizonte e o âmbito a partir do que algo pode ser esperado. Esperar é o modo do porvir fundado no aguardar que, em sentido próprio, se temporaliza como antecipar. É por isso que no antecipar reside um ser-para-a-morte mais originário do que nas suas esperas das ocupações. STMSC: §68

Enquanto existir, compreender é primariamente porvindouro, no PODER-SER de qualquer projeto. Contudo, ele não se temporalizaria se não fosse temporal, isto é, se não fosse determinado, de modo igualmente originário, pelo vigor de ter sido e pela atualidade. Já esclarecemos, embora de modo grosseiro, que esta última ekstase   também constitui o compreender impróprio. A ocupação cotidiana compreende-se a partir do PODER-SER que lhe vem ao encontro num possível sucesso ou insucesso, relativo àquilo de que se ocupa. Ao porvir impróprio, ao aguardar, corresponde um ser próprio junto àquilo de que se ocupa. O modo ekstático desta atualidade que vem de encontro desvela-se quando se compara esta ekstase com o modo da temporalidade própria. Pertence ao antecipar da decisão uma atualidade segundo a qual a decisão abre uma situação. Na decisão não apenas se recupera a atualidade da dispersão nas ocupações imediatas como ela se mantém atrelada ao porvir e ao vigor de ter sido. Chamamos de instante a atualidade própria, isto é, a atualidade mantida na temporalidade própria. Este termo deve ser compreendido em sentido ativo como ekstase. Ele remete a retração da presença [Dasein] decidida, mas mantida na decisão, ao que de possibilidades e circunstâncias passíveis de ocupação vem ao encontro na situação. Fundamentalmente, o fenômeno do instante não pode ser esclarecido pelo agora. O agora é um fenômeno temporal que pertence ao tempo da intratemporalidade: o agora “em que” algo nasce, perece ou simplesmente se dá. “No instante”, nada pode ocorrer. Ao contrário, enquanto atualidade em sentido próprio, é o instante que deixa vir ao encontro o que, estando à mão ou sendo simplesmente dado, pode ser e estar “em um tempo”. STMSC: §68

Por oposição ao instante, no sentido de atualidade própria, chamamos de atualização a atualidade imprópria. Compreendida formalmente, toda atualidade é atualizante mas nem toda atualidade “instaura um instante”. Quando usamos sem nenhum acréscimo o termo atualização significa sempre a atualidade imprópria, indecisa e desprovida de instante. A atualização só se esclarecerá mediante a interpretação temporal da decadência no “mundo” das ocupações que nela encontra o seu sentido existencial. Mas na medida em que o compreender impróprio projeta o PODER-SER a partir do que é passível de ocupação, isso significa que ela se temporaliza a partir da atualização. Inversamente, o instante se temporaliza a partir do porvir em sentido próprio. STMSC: §68

O compreender impróprio temporaliza-se como um aguardar atualizante a cuja unidade ekstática pertence necessariamente um vigor de ter sido, que lhe corresponde. Em sentido próprio, o vira-si da decisão antecipadora é, conjuntamente, um voltar para o si-mesmo mais próprio, lançado em sua singularidade. Esta ekstase possibilita que a presença [Dasein] tenha condições de, decididamente, assumir o ente que ela já é. No antecipar, a presença [Dasein] se retoma previamente em seu PODER-SER mais próprio. Chamamos de retomada o ser de maneira própria o ter sido. O projetar-se impróprio nas possibilidades hauridas e atualizantes nas ocupações só se torna possível caso a presença [Dasein] tenha esquecido a si, em seu PODER-SER lançado mais próprio. Esse esquecer não é um nada negativo, nem simplesmente a falta de recordação, mas um modo próprio, “positivo” e ekstático do vigor de ter sido. A ekstase (retração) do esquecer tem o caráter de uma extração, fechada para si mesma, do vigor de ter sido em sentido mais próprio, de tal maneira que esse extrair-se de… fecha, ekstaticamente, aquilo de que se extrai e, com isso, a si mesmo. No sentido impróprio do vigor de ter sido, o esquecimento refere-se ao próprio ser e estar lançado; o esquecimento é o sentido temporal do modo de ser em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, eu, tendo sido, sou. E somente com base nesse esquecimento é que a atualização que aguarda as ocupações pode reter e guardar o ente, não dotado do caráter de presença [Dasein], que vem ao encontro no mundo circundante. A esse reter corresponde um não-reter que apresenta, por sua vez, um “esquecer” em sentido derivado. STMSC: §68

Assim como a espera só é possível com base no aguardar, também a recordação só é possível com base no esquecer e não o contrário; pois, no modo do esquecimento, o vigor de ter sido “abre”, primariamente, o horizonte em que a presença [Dasein], perdida na “exterioridade” das ocupações, pode recordar-se. O aguardar que atualiza e esquece é uma unidade ekstática própria onde a compreensão imprópria se temporaliza em sua temporalidade. A unidade destas ekstases fecha o PODER-SER próprio sendo, com isso, a condição existencial de possibilidade da indecisão. Embora o compreender impróprio das ocupações se determine pela atualização daquilo de que se ocupa, é primariamente no porvir que o compreender se temporaliza. STMSC: §68

Começaremos a análise com a demonstração da temporalidade do medo. Caracterizou-se o medo como disposição imprópria. Em que medida o vigor de ter sido é o sentido existencial que o possibilita? Que modo desta ekstase caracteriza a temporalidade específica do medo? Medo é ter medo do que ameaça. Trata-se do que se aproxima prejudicialmente, como já descrito, do PODER-SER fático da presença [Dasein], no âmbito do que está à mão e do que é simplesmente dado nas ocupações. No modo da circunvisão cotidiana, o ter medo abre algo que ameaça. Um sujeito meramente espectador nunca poderia descobrir algo assim. Mas não será esta abertura de ter medo de alguma coisa um deixar vir-a-si? Não é correta a determinação do medo como espera de um mal que está vindo (malum futurum  )? Não será o sentido temporal primário do medo tanto o porvir como o vigor de ter sido? Indiscutivelmente, o medo não apenas se “relaciona” com o que “está por vir”, entendido como o que só advém “no tempo”, mas também esse relacionar-se, em si mesmo, já está por vir, no sentido do tempo originário. Sem dúvida, também pertence à constituição existencial e temporal do medo um aguardar. Mas, de início, isso diz apenas que a temporalidade do medo é imprópria. Será que ter medo de alguma coisa é apenas esperar uma ameaça em advento? Esperar uma ameaça em advento ainda não precisa ser medo, e é tão pouco medo que lhe falta justamente o caráter do humor específico do medo. Este reside em que o aguardar próprio ao medo deixa e faz com que aquilo que ameaça volte para o PODER-SER fático, empenhado em ocupações. Só no aguardar é que o que ameaça pode estar de volta para o ente que eu sou e, dessa forma, a presença [Dasein] só pode ser ameaçada caso já se tenha aberto, ekstaticamente, o para onde volta. O caráter de humor e afecção do medo reside em que o aguardar medroso tem medo “de si mesmo”, isto é, em que todo ter medo de alguma coisa é um ter medo por… O seu sentido existencial e temporal constitui-se por um esquecer-se de si: qual seja, extrair-se, de forma conturbada, do PODER-SER fático em sentido próprio; é nesse esquecer que o ser-no-mundo ameaçado se ocupa do que está à mão. É com razão que Aristóteles   determina o medo como lype tis he tarache, aflição e conturbação. A aflição pressiona a presença [Dasein] no sentido de voltar para o seu estar-lançado mas de tal maneira que justamente este estar-lançado se fecha. Já a conturbação funda-se num esquecer. O extrair-se no esquecimento de um PODER-SER fático e decidido baseia-se nas possibilidades de salvação e escape previamente descobertas numa circunvisão. Porque se esquece de si e não apreendendo nenhuma possibilidade determinada, a ocupação que se teme salta do mais próximo para o mais próximo. Com isso, todas as possibilidades “possíveis” e impossíveis se oferecem. Aquele que tem medo não se detém em nenhuma delas; o “mundo circundante” não desaparece, ao contrário, lhe vem ao encontro justamente nesse não-mais-se-reconhecer no mundo circundante. Essa atualização conturbada do que é melhor por ser o mais próximo pertence ao esquecimento de si, inerente ao medo. É sabido que o habitante de uma casa em chamas, por exemplo, frequentemente, quer “salvar” as coisas mais indiferentes por estarem mais imediatamente à mão. A atualização esquecida de si de uma confusão de possibilidades soltas possibilita a conturbação do medo que, como tal, lhe constitui o caráter específico de humor. O esquecimento inerente à conturbação também modifica o aguardar, caracterizando-o como um aguardar aflito e conturbado por oposição a uma pura espera. STMSC: §68

A insignificância do mundo, aberta na angústia, desvela a nulidade das ocupações, a impossibilidade de projetar-se um PODER-SER da existência primariamente fundado na ocupação. Desvelar essa impossibilidade significa, porém, deixar vir à luz a possibilidade de um PODER-SER próprio. Que sentido temporal possui esse desvelar? A angústia angustia-se pela presença [Dasein] nua e crua, enquanto lançada na estranheza. Ela recoloca o puro que (se é) do estar-lançado mais próprio e singular. Esse recolocar não tem o caráter de um esquecer que se esquiva e nem tampouco de uma recordação. A angústia, porém, também não implica um assumir que retoma a existência na decisão. A angústia, bem ao contrário, recoloca o estar-lançado enquanto possível de ser retomado. E isso a tal ponto que ela também desvela a possibilidade de um PODER-SER próprio que, entendido como porvindouro, deve retornar, na retomada, para o “pre” [das Da] que está lançado. Colocar-se diante da possibilidade de retomada é o modo ekstático específico do vigor de ter sido, constitutivo da disposição da angústia. STMSC: §68

A possibilidade de apoderar-se, que distingue o humor da angústia, comprova-se na temporalidade específica da angústia por ela fundar-se, originariamente, no vigor de ter sido e porque somente a partir dele é que se temporalizam porvir e atualidade. Nele, a presença [Dasein] retoma inteiramente a nudez de sua estranheza e é por ela possuída. Esta possessão não só toma de volta a presença [Dasein] das possibilidades “mundanas”, mas também lhe dá a possibilidade de um PODER-SER próprio. STMSC: §68

Por fim, o que demonstra, da forma mais penetrante, o poder do esquecer nos humores cotidianos da ocupação imediata é a morna ausência de humor na indiferença. Pois esta não se prende nem força nada, abandona-se a tudo que cada dia lhe apresenta, aceitando, assim, de certo modo, tudo. Este ir levando a vida, que “deixa tudo ser” como é, funda-se num esquecer que se abandona ao estar-lançado, possuindo o sentido ekstático de um vigor de ter sido, impróprio. Deve-se distinguir com precisão a indiferença, que pode acompanhar a sucessão desenfreada de tarefas, da equanimidade. Este humor surge da decisão. Esta se concentra no instante das possíveis situações do PODER-SER todo, que se abre no antecipar para a morte. STMSC: §68

Quanto mais imprópria a atualidade, isto é, quanto mais a atualização vem a “si-mesma”, tanto mais, fechando, ela foge de um PODER-SER determinado, mas tanto menos pode o porvir retornar para o ente-lançado. No “surgir” da atualidade reside, ao mesmo tempo, um esquecimento crescente. O fato de a curiosidade sempre se deter no mais imediato e esquecer o que veio antes não é uma consequência da curiosidade mas, ao contrário, a sua própria condição ontológica. STMSC: §68

No tocante a seu sentido temporal, os caracteres da decadência, anteriormente demonstrados, como tentação, tranquilização, alienação e auto-aprisionamento significam que a atualização que “surge” busca, de acordo com a sua tendência ekstática, temporalizar-se a partir de si mesma. A presença [Dasein] aprisiona-se – esta determinação possui um sentido ekstático. O retrair-se da existência na atualização não significa que a presença [Dasein] se desligue de seu eu e de seu si-mesmo. Mesmo na atualização mais extrema, ela permanece temporal, ou seja, aguardando e esquecendo. Mesmo atualizando, a presença [Dasein] ainda se compreende, embora alienada de seu PODER-SER mais próprio, primariamente fundado no porvir e no vigor de ter sido, em sentido próprio. Sempre oferecendo algo “novo”, a atualização não deixa que a presença [Dasein] volte a si mesma, tranquilizando-a sempre de novo. Essa tranquilização, no entanto, fortalece a tendência para surgir. A curiosidade não é “provocada” pela visibilidade sem fim do que ainda não se viu mas pelo modo decadente de temporalização da atualidade que surge. Mesmo que tenha visto tudo, a curiosidade sempre inventa algo novo. STMSC: §68

Na temporalidade constitutiva do deixar e fazer em conjunto reside, de modo essencial, um esquecer específico. Para que, em estando “perdido no mundo instrumental”, se possa “realmente” pôr mãos à obra, o si-mesmo deve esquecer-se. Na medida, porém, em que um aguardar sempre serve de guia para as ocupações na unidade da temporalização, o PODER-SER em sentido próprio da presença [Dasein] nas ocupações se acha, como ainda veremos, instalado na cura. STMSC: §69

A circunvisão movimenta-se nas remissões conjunturais de um nexo instrumental à mão. Ela própria, por sua vez, é submetida à direção de uma supervisão, mais ou menos explícita, do todo instrumental de cada mundo de instrumentos e de seu correspondente mundo circundante público. A supervisão não é apenas um ajuntamento posterior de seres simplesmente dados. O essencial da supervisão é a compreensão primária da totalidade conjuntural, dentro da qual a ocupação de fato sempre se coloca. A supervisão, que ilumina a ocupação, recebe sua “luz” do PODER-SER da presença [Dasein], em virtude do qual a ocupação existe como cura. Através de uma interpretação do que se vê, a circunvisão “supervisora”, própria da ocupação, coloca mais perto da presença [Dasein] aquilo que, em cada uso e manejo, está à mão. Chamamos de reflexão a aproximação específica que interpreta, numa circunvisão, aquilo de que se ocupa. O seu esquema característico é: “se-então”, se isto ou aquilo, por exemplo, deve-se produzir, deve ser retirado do uso ou guardado, então se faz necessário este ou aquele meio, caminho, circunstância e ocasião. A reflexão guiada pela circunvisão ilumina cada posição fática da presença [Dasein] em seu mundo circundante de ocupações. Ela nunca é, portanto, mera “constatação” do ser simplesmente dado de um ente ou de suas propriedades. A reflexão também pode realizar-se sem que aquilo mesmo que se aproxima numa circunvisão esteja ao alcance da mão ou vigente no campo mais próximo da visão. Este colocar mais perto o mundo circundante, na reflexão guiada pela circunvisão, tem o sentido existencial de uma atualização. Pois o tornar atual é somente um modo daquela. Nela, a reflexão visa diretamente às necessidades que não estão à mão. A circunvisão que torna atual não se refere a “meras representações”. STMSC: §69

O projeto científico dos entes que, já de algum modo, vêm ao encontro possibilita a compreensão explícita de seu modo de ser e isto de tal maneira que assim se tornam manifestos os possíveis caminhos para a pura descoberta dos entes intramundanos. Chamamos de tematização o todo desse projeto ao qual pertencem a articulação da compreensão de ser, a delimitação dela derivada do setor de objetos e o prelineamento da conceitualização adequada ao ente. A tematização visa liberar os entes que vêm ao encontro dentro do mundo de modo que possam ser “projetados para” uma pura descoberta, isto é, que possam tornar-se objetos. A tematização objetiva. Não é ela que “põe” pela primeira vez o ente. Ela o libera de tal maneira que ele possa ser questionado e determinado “objetivamente”. O ser objetivante junto ao que é simplesmente dado dentro do mundo tem o caráter de uma atualização privilegiada. Ela difere da atualidade da circunvisão, sobretudo, por a descoberta da respectiva ciência só aguardar a descoberta do que é simplesmente dado. Essa atualização da descoberta funda-se, existenciariamente, numa decisão da presença [Dasein] na qual ela se projeta para o PODER-SER na “verdade”. Este projeto é possível já que o ser e estar na verdade constitui uma determinação existencial da presença [Dasein]. Não caberia aqui prosseguir com a investigação da origem da ciência a partir da existência em sentido próprio. Trata-se apenas de compreender que e como a tematização dos entes intramundanos pressupõe a constituição fundamental da presença [Dasein], isto é, o ser-no-mundo. STMSC: §69

A presença [Dasein] existe em virtude de um PODER-SER de si mesma. Existindo, ela está lançada e, enquanto lançada, entregue à responsabilidade de entes dos quais ela necessita para poder ser como ela é, ou seja, em virtude de si mesma. Existindo faticamente, a presença [Dasein] compreende-se nesta conexão entre ser em virtude de si mesma e cada para quê. O contexto em que a presença [Dasein] se compreende em seu existir é e se faz “presença [Dasein]” em sua existência fática. O em que da compreensão primária de si mesma possui o modo de ser da presença [Dasein]. Esta, em existindo, é seu mundo. STMSC: §69

A unidade dos esquemas horizontais de porvir, vigor de ter sido e atualidade funda-se na unidade ekstática da temporalidade. O horizonte de toda a temporalidade determina aquilo na perspectiva de que o ente, existindo faticamente, se abre de modo essencial. Com a presença [Dasein] fática, um PODER-SER está sempre lançado no horizonte do porvir, o “já-ser” está sempre aberto no horizonte do vigor de ter sido, e aquilo de que se ocupa já está sempre descoberto no horizonte da atualidade. É a unidade horizontal dos esquemas das ekstases que possibilita o nexo originário entre as remissões de ser-para e de ser em virtude de. Isto implica que: com base na constituição horizontal da unidade ekstática da temporalidade, algo como um mundo aberto pertence ao ente que, cada vez, é o seu pre [das Da]. STMSC: §69

Embora muitas estruturas da presença [Dasein] ainda permaneçam obscuras em sua singularidade, com o esclarecimento da temporalidade enquanto condição originária de possibilidade da cura parece, na verdade, que se conseguiu uma interpretação originaria da presença [Dasein]. Expôs-se a temporalidade no tocante ao PODER-SER todo em sentido próprio da presença [Dasein]. A temporalidade do ser-no-mundo das ocupações comprovou a interpretação temporal da cura. A análise do PODER-SER todo em sentido próprio desvelou o nexo originário entre morte, dívida e consciência, radicado na cura. Poderá a presença [Dasein] ser compreendida ainda mais originariamente do que no projeto de sua existência própria? STMSC: §72

A interpretação realizada do PODER-SER todo em sentido próprio da presença [Dasein] e a análise da cura, como temporalidade, proporcionam o fio condutor para a construção existencial da historicidade. O projeto existencial da historicidade da presença [Dasein] só chega a desvelar o que já está velado na temporalização da temporalidade. Correspondendo ao enraizamento da historicidade na cura, a presença [Dasein] sempre existe como algo historicamente próprio ou impróprio. O horizonte mais imediato, representado pela cotidianidade na analítica existencial da presença [Dasein], elucida-se, agora, como historicidade imprópria da presença [Dasein]. STMSC: §72

Determinou-se a decisão como o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida em sentido próprio. Ela adquire sua propriedade como decisão antecipadora. Nela, a presença [Dasein] compreende-se quanto a seu PODER-SER, de tal maneira que ela se acha sob os olhares da morte para, assim, poder assumir totalmente, em seu estar-lançado, o ente que ela mesma é. O assumir decidido do “pre” [das Da] faticamente próprio significa, ao mesmo tempo, decidir-se pela situação. A análise existencial não chegou, porém, a discutir em princípio para que a presença [Dasein] faticamente se decide. A presente investigação também exclui o projeto existencial das possibilidades fatuais de existência. Contudo, deve-se questionar de onde se podem simplesmente haurir as possibilidades em que a presença [Dasein] faticamente se projeta. O projetar-se antecipador para a possibilidade insuperável da existência, ou seja, para a morte, apenas garante a totalidade e a propriedade da decisão. As possibilidades faticamente abertas na existência não devem, porém, ser retiradas da morte. E isso ainda menos já que a antecipação da possibilidade não significa, em absoluto, uma especulação a seu respeito e sim uma volta ao pre [das Da] em sentido fático. Será que assumir o estar-lançado do si-mesmo no mundo abre um horizonte do qual a existência retira suas possibilidades fáticas? Mas também não se disse que a presença [Dasein] nunca retorna aquém de seu estar-lançado? Antes de decidirmos apressadamente se a presença [Dasein] haure ou não suas possibilidades existenciais próprias do estar-lançado, devemos assegurar-nos do pleno conceito dessa determinação fundamental da cura. STMSC: §74

Lançada, a presença [Dasein] está, sem dúvida, entregue à responsabilidade de si mesma e de seu PODER-SER, mas como ser-no-mundo. Lançada, ela está referida a um “mundo” e existe faticamente com os outros. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo está perdido no impessoal. Ele se compreende a partir das possibilidades de existência que “estão em curso” na interpretação pública da presença [Dasein], sempre hodierna e “mediana”. Devido à ambiguidade, elas são, em sua maioria, irreconhecíveis embora conhecidas. A compreensão existenciária própria escapa tão pouco da interpretação legada que, no decisivo, ela sempre retira a possibilidade escolhida dessa interpretação, contra ela mas sempre a seu favor. STMSC: §74

Não é necessário que a decisão saiba explicitamente a proveniência das possibilidades para as quais ela se projeta. Mas é na temporalidade da presença [Dasein] e somente nela que reside a possibilidade de tomar expressamente a compreensão transmitida da presença [Dasein] do PODER-SER existenciário para o qual ela se projeta. A decisão que retorna a si e se transmite torna-se, assim, retomada de uma possibilidade legada de existência. A retomada é a transmissão explícita, ou seja, o retorno às possibilidades da presença [Dasein], que é o vigor de ter sido presença [Dasein]. A retomada própria do ter sido de uma possibilidade existencial – que a existência escolhe seus heróis – funda-se, existencialmente, na decisão antecipadora; pois é somente nela que se escolhe a escolha capaz de libertar a sucedaneidade na luta e a fidelidade a outras possibilidades de retomada. Não é, contudo, a transmissão passível de ser retomada de uma possibilidade em vigor que abre a presença [Dasein], enquanto vigor de ter sido presença [Dasein], numa nova realização. A retomada do possível não é uma recolocação do “passado” nem uma religação do “presente” [Gegenwart  ] com “o que foi superado”. Surgindo de um projeto decidido, a retomada não se deixa persuadir pelo “passado” a fim de deixá-lo apenas retornar como o que alguma vez foi real. A retomada controverte a possibilidade da existência que é vigor de ter sido presença [Dasein]. Mas, por ser no modo do instante, a controvérsia da possibilidade no decisivo também é a resposta àquilo que hoje age como “passado”. A retomada não se abandona ao passado nem almeja um progresso. No instante, a existência própria é indiferente a ambos. STMSC: §74

Mas o que significa: presença [Dasein] é “de fato”? Se a presença [Dasein] só é “propriamente” real na existência, então a sua “fatualidade” se constitui justamente no projetar-se decidido para um PODER-SER escolhido. O “fato” próprio do que vigora por ter sido presença [Dasein] é, então, a possibilidade existenciária em que, de fato, se determinam o destino, o envio comum e a história do mundo. Porque, cada vez, a existência sempre está lançada faticamente, a historiografia abrirá tanto mais penetrantemente a força silenciosa do possível quanto mais simples e concretamente ela compreender e “apenas” expuser o vigor de ter sido-no-mundo em sua possibilidade. STMSC: §76

A presença [Dasein] existe como um ente em que está em jogo seu próprio ser. Em sua essência precedendo a si mesma, ela já se projetou para o seu PODER-SER, antes de qualquer consideração posterior de si mesma. É como lançada que ela se desvela no projeto. Lançada, ela se entrega ao “mundo” e decai, ocupando-se dele. Enquanto cura, ou seja, existindo na unidade do projeto já lançado na decadência, ela é o ente que se abriu como pre [das Da]. Sendo-com os outros, ela se mantém numa interpretação mediana, que se articula na fala e se pronuncia na linguagem. O ser-no-mundo sempre já se pronunciou e, enquanto ser junto aos entes que vêm ao encontro dentro do mundo, ele se anuncia, constantemente, no dizer e na discussão daquilo de que se ocupa. A ocupação, comumente compreendida a partir de uma circunvisão, funda-se na temporalidade e no modo de uma atualização que aguarda e retém. Nas ocupações em que desconta, planeja, providencia e previne, sempre já se diz, de forma perceptível ou não: “então”isso deve acontecer, “antes”disso se concluir, “agora” vai se recuperar o que “outrora” malogrou e fracassou. STMSC: §79

O ser da presença [Dasein] é a cura. Esse ente existe lançado na decadência. Entregue ao “mundo” descoberto em seu pre [das Da] e dependente de suas ocupações, a presença [Dasein] aguarda seu PODER-SER-no-mundo. E isso de maneira a “contar” com e por meio daquilo com que ela estabelece uma conjuntura privilegiada em virtude desse PODER-SER. O ser-no-mundo cotidiano da circunvisão precisa de possibilidade de visão, ou seja, de claridade para poder lidar, numa ocupação, com o que está à mão em meio ao que é simplesmente dado. Com a abertura fática de seu mundo, a natureza se descobre para a presença [Dasein]. Em seu estar-lançado, ela se entrega à mudança de dia e noite. Com sua claridade, o dia propicia a visão possível, e a noite a retira. STMSC: §80