Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Marta Luzie (1999:11-15) – o jogo [Spiel]

segunda-feira 11 de março de 2024

Tomemos um jogo como exemplo: o futebol. Antes de se dar início a qualquer jogo, faz-se mister conhecer as regras a priori  . Todo e qualquer jogo possui normas, regras e limites que se impõem e que não podem ser ultrapassados. O jogador precisa estar preparado para aceitar as condições e se dispor a pôr-se sob [11] as condições impostas. Tendo iniciado o jogo, os jogadores são levados de um lugar a outro e necessitam manter-se na mesma disponibilidade, do início ao fim, com o risco de perder. Se por instantes titubeiam, se desesperam, se entediam, eles estão pondo em risco a sua vitória. As normas já estão pré-estabelecidas, mas o que vai ocorrer durante as jogadas, não. Este acontecer é como que a potência organizadora que vige no jogo, sem que nós a possamos ver. Esta potência mostra-se através das jogadas, dos fatos e dos acontecimentos. Ou seja, nós vislumbramos o acontecer a partir dos acontecimentos.

Além disso, os jogadores põem-se a procura do mesmo, ou seja, da vitória. A vitória os move e os anima  . Ela é o fogo de Prometeu que os impulsiona. No jogo, o que está posto em questão é a capacidade dos jogadores de — apesar de todas as experiências inquietantes e possíveis de serem vivenciadas durante o jogo, tais como: angústia, horror, culpa, dúvida, dor, encantamento, desespero, alegria, desconfiança, aventura, perigo, medo, coragem, questionamento, tormento, entre outras — não se tornarem joguetes das circunstâncias impostas pelo próprio jogo e não esquecerem o que fazem ali, mantendo-se na concentração do necessário, isto é, o anseio pela vitória. Para tal é preciso amar o jogar, amar pôr-se em risco, amar ter de superar a si próprio. Sem esta condição sine qua non, certamente se perderá. Ganhar quer dizer: apesar dos limites, a superação. Perder quer dizer: apesar da tentativa, a derrota.

[…]

No entanto o jogo, ao qual Píndaro   e sua época se remetiam [Jogos Píticos], possuía um significado distinto da compreensão atual de jogo, isto é, tinha um nível de compreensão e profundidade maior. O Jogo era o lugar onde a relação entre o homem e o mundo, a vida e a existência, aparecia mais solenemente. Esta relação descrevia e descreve a “brincadeira” que é o aparecer e o velar próprios da estruturação de mundo e de existência. Neste jogo que é a vida, o mundo, o homem se vê jogado, daí a palavra jogo. Jogado no sentido de lançado, portanto diz respeito a um lance, a um jogo.

O jogo, então, é um lugar privilegiado onde aparece de maneira singular a relação entre o homem e o mundo. Com a mundanidade que há no jogo, eclode o brilho de uma potência organizadora que ilumina, morre e produz jogando. É o tempo que joga como criança. Neste lugar— que posteriormente no capítulo 1 nós analisaremos como sendo o eón— abre-se o espaço, a clareira onde as coisas nascem e perecem, aumentam e diminuem, aparecem e desaparecem, enfim, onde ocorre o tumultuar dos antagonismos, das oposições. Este lugar guarda a plenitude da força vigente nos horizontes [14] das novas possibilidades, quer dizer, da força vigente na instauração do novo, do por fazer, do porvir.

Mas esta força, compreendida como potência organizadora que tudo produz, é quase sempre esquecida devido ao privilégio que se dá ao ente, ao real, às coisas feitas, concretizadas, acabadas, isto é, esquecemos o porvir em prol do repetir.

[LUZIE  , Marta. A Dobra do Destino. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999]


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