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Gadamer (VM): reflexão hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Schleiermacher   e Hegel   poderiam representar as duas possibilidades extremas de resposta a esta pergunta. Suas respostas poderiam ser designadas com os conceitos de reconstrução e integração. Tanto para Schleiermacher como para Hegel, no começo se encontra a consciência de uma perda e alienação frente à tradição, que é a que move a reflexão hermenêutica. Entretanto, eles determinam a tarefa da hermenêutica cada um de maneira bem diferente. 921 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Este sentido vivo e mesmo genial que Schleiermacher caracteriza para a individualidade humana não deve ser tomado como uma característica individual que estivesse influindo, aqui na sua teoria. É, antes, a repulsa crítica contra tudo o que, na era do Aufklärung, se fazia passar por essência comum da humanidade, sob o título de "pensamentos racionais", o que leva necessariamente a determinar de uma maneira fundamentalmente nova a relação com a tradição. A arte de compreender é honrada com uma atenção teórica de princípio e com um cultivo universal, porque nem um consenso fundamentado biblicamente, nem racionalmente, não formam mais o fio condutor dogmático de toda compreensão de texto. Por isso é que importa a Schleiermacher proporcionar à reflexão hermenêutica uma motivação fundamental, que situe o problema da hermenêutica num horizonte que esta não havia conhecido até então. 971 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O que Heidegger diz aqui não é em primeiro lugar uma exigência à praxis   da compreensão, mas, antes, descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva. A reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui esta prejaz um círculo, mas, antes, que este círculo tem um sentido ontológico positivo. A descrição como tal será evidente para qualquer intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de "felizes ideias" e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua vista "às coisas elas mesmas" (que para os filólogos são textos com sentido, que também tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, evidentemente, não é para o intérprete uma decisão "heróica", tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente "a tarefa primeira, constante e última". Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das ideias que lhe ocorram. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. 1464 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse   histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral   de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como Aristóteles   mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada [304] pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. 1647 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Ainda menos consistente é, sem dúvida, a imagem oposta que esta investigação faz das ciências da natureza. Tenho claro para mim que, aqui, se deixou para trás um amplo campo de problemas hermenêuticos, que ultrapassa meu próprio alcance no processo de investigação científica. Somente nas ciências histórico-filológicas cheguei a participar esporadicamente e com alguma competência do trabalho de investigação das mesmas. Onde não posso estudar trabalhos originais, sinto não ter o direito de querer conscientizar o investigador do que ele faz ou do que acontece com ele. A essência da reflexão hermenêutica consiste justamente em que ela deve surgir da práxis hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Também não estou convencido de que a "experiência estética", que Jauss tenta fazer valer, satisfaça à experiência da arte. Este era exatamente o ponto nuclear do meu conceito de "indistinção estética", segundo a qual a experiência estética não pode ser isolada, de tal forma que a arte se torne um mero objeto de fruição. O mesmo ocorre, segundo me parece, com a "recusa" de Jauss da fusão de horizontes. Eu próprio sublinhei em minha análise que a distinção do horizonte representa um momento integral no processo de investigação hermenêutica. A reflexão hermenêutica ensina, no entanto, que jamais se consegue realizar plenamente essa tarefa, por razões essenciais, e que isto não demonstra a debilidade de nossa experiência. A investigação da recepção não pode querer liberar-se das implicações hermenêuticas, contidas em toda interpretação. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

O que Heidegger diz aqui não é de imediato uma exigência da praxis da compreensão. Ele descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva.»0 ponto culminante da reflexão hermenêutica de Heidegger não se encontra na demonstração de que há um círculo, mas antes no fato de esse círculo possuir um sentido ontológico positivo. A descrição como tal torna-se evidente para todo intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta deve guardar-se da arbitrariedade dos "chutes" e do caráter limitado de hábitos mentais inadvertidos, de maneira a voltar-se "para as coisas elas mesmas" (que para os filólogos são textos com sentido, que por seu turno tratam novamente de coisas). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann   que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de "mito" usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do "falar sobre Deus". Bultmann procurava uma solução "positiva", isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana   da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na "autenticidade" do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Assim, a dimensão hermenêutica afeta especialmente o trabalho milenar do conceito filosófico. Como tradição de uma experiência pensante, deve ser compreendida como um único grande diálogo, no qual todo presente participa sem poder controlar [113] superiormente ou dominar criticamente. O ponto fraco da história dos problemas foi ler a história da filosofia somente como confirmação da própria visão do problema e não como um parceiro crítico que revela a limitação de nossas próprias ideias. Para isso há que submeter-se à reflexão hermenêutica. Ela nos ensina que a linguagem da filosofia sempre comporta algo de inadequado e que, na sua intenção, persegue sempre mais do que pode ser encontrado em seus enunciados e do que pode ser trazido à palavra. As palavras que servem de conceitos, cunhadas e transmitidas nela pela filosofia, não são marcas e sinais fixos que designam algo unívoco como acontece no sistema de símbolos da matemática, da lógica e em suas aplicações. As palavras brotam do movimento comunicativo da interpretação que o homem faz do mundo, e que se dá na linguagem. Movidas e transformadas por esta interpretação, as palavras se enriquecem, alcançam novos contextos que recobrem os antigos, resguardam-se num quase esquecimento para tornar à vida em ideias novas e questionadoras. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Nesse ponto, aparece uma distinção que não se pode ignorar. A crítica da ideologia pretende ser uma reflexão emancipatória. De modo correspondente, o diálogo terapêutico pretende tornar conscientes as máscaras do inconsciente e com isso dissolvê-las. Ambas pressupõem seu saber e consideram-se cientificamente fundamentadas. Contrário a isso, a reflexão hermenêutica não contém nenhuma pretensão de conteúdo deste tipo. Não afirma saber que as condições sociais fácticas possibilitam apenas uma comunicação distorcida. Isso implicaria já, em seu juízo, que soubéssemos o que uma comunicação correta e não distorcida deveria produzir. Tampouco considera atuar como um terapeuta que leva o processo reflexivo do paciente a um bom termo, conduzindo-o a um conhecimento mais elevado de sua história de vida e de seu verdadeiro ser. Em ambos os casos, na crítica da ideologia e na psicanálise, a interpretação pretende orientar-se por um saber prévio, a partir do qual as fixações prévias e os preconceitos podem ser dissolvidos. Nesse sentido, ambas podem ser compreendidas como "Iluminismo". A experiência hermenêutica vê, ao contrário, com ceticismo todo postulado de um saber prévio. O conceito da compreensão prévia, introduzido por Bultmann, não se refere a esse tipo de saber: Os nossos preconceitos devem ser colocados em jogo no processo do compreender… Na concreção da experiência hermenêutica, conceitos como "esclarecimento", "emancipação", "diálogo livre de coerção" revelam-se como pobres abstrações. A experiência hermenêutica faz ver o enraizamento profundo que podem ter os preconceitos e o pouco que uma mera conscientização pode fazer para dissolver sua força. Sabia disso muito bem um dos pais do Iluminismo moderno, Descartes  , procurando legitimar seu novo conceito de [116] método não tanto por argumentos mas pela meditação, por uma reflexão reiterada. Isso não deve ser descartado como se fosse mero revestimento retórico. Sem isso, não há comunicação, mesmo em trabalhos filosóficos e científicos, que precisam de recursos retóricos para impor sua vigência. Toda a história do pensamento confirma essa antiga proximidade entre a retórica e a hermenêutica. No entanto, a hermenêutica contém sempre um elemento que ultrapassa a mera retórica: inclui sempre um encontro com as opiniões do outro, que vêm, por sua vez, à fala. Isso vale também para a compreensão de textos e outras criações culturais do mesmo gênero. Precisam desenvolver sua própria força persuasiva para serem compreendidos. Por isso, a hermenêutica é filosofia porque não pode ser restrita a uma teoria da arte, que "apenas" compreende as opiniões de um outro. A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um outro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento   da consciência da história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Mas, nas condições hermenêuticas de nosso comportamento na linguagem, impõe-se outra forma de reflexão hermenêutica ainda mais profunda, que não se refere apenas ao não-dito, mas ao que o dizer encobre. O fato de o dizer poder encobrir, em seu próprio desempenho, é notório no caso específico da mentira. O intrincado tecido das relações inter-humanas onde se dá a mentira, desde a fórmula de cortesia oriental até a nítida quebra da confiança entre duas pessoas, não possui um caráter primariamente semântico. Quem mente sob pressão, faz isso sem hesitar e sem deixar transparecer sua mentira. Nesse caso, aquele que mente encobre o próprio encobrimento de sua fala. Mas esse caráter próprio da mentira só adquire realidade de linguagem quando o objetivo é apenas pela linguagem evocar a realidade, isto é, na obra de arte da linguagem. No seio da totalidade de um conjunto de enunciados poéticos, no âmbito da linguagem, o modo de encobrimento que chamamos de mentira possui suas estruturas semânticas próprias. A linguística moderna fala de sinais da mentira, pelos quais o enunciado de um texto é conhecido como um enunciado destinado ao encobrimento. A mentira não é simplesmente a afirmação de algo falso. Trata-se de um falar encobridor consciente do que faz. E por isso, no contexto poético, a tarefa de exposição da linguagem é revelar a mentira, ou melhor, compreender o caráter mentiroso da mentira como ele se dá na real intenção daquele de quem fala. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

No sentido de erro, porém, o encobrimento é de natureza bem diferente. Aqui tanto o comportamento na linguagem no caso da afirmação correta como o comportamento na linguagem no caso da afirmação errônea não se distinguem. O erro não é um fenômeno semântico e nem hermenêutico, embora ambos estejam em jogo. Os enunciados errôneos são expressões "corretas" de opiniões errôneas, mas enquanto fenômenos expressivos e de linguagem não são propriamente corretos frente à expressão das opiniões corretas. É certo que a mentira é um fenômeno de linguagem bem característico, mas de maneira geral é um caso irrelevante de encobrimento. Não apenas porque a mentira tem pernas curtas, [181] mas porque está inserida num comportamento na linguagem que nela se confirma à medida que pressupõe no dizer o valor comunicativo da verdade, que se restabelece quando a mentira é revelada ou colocada a descoberto. Aquele que é levado a mentir reconhece a mentira como tal. Só quando a mentira não se reconhece como encobrimento é que adquire um novo caráter, determinando a relação global com o mundo. Conhecemos esse fenômeno como mendacidade, no qual perdeu-se o sentido para o verdadeiro e para a verdade. Essa mendacidade não se reconhece a si própria e assegura-se de seu desmascaramento através do próprio discurso. Ela se consolida estendendo o véu do discurso sobre si. Aqui aparece o poder do discurso, mesmo que ainda na mera apresentação de um veredicto social, em seu desenvolvimento total e oniabrangente. A mendacidade torna-se exemplar para a auto-alienação que a consciência da linguagem pode sofrer e que reclama uma dissolução mediante o esforço da reflexão hermenêutica. Para o interlocutor que toma conhecimento, a mendacidade significa que o outro está excluído da comunicação porque não é coerente consigo próprio. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Com efeito, a hermenêutica se impõe onde não há entendimento com os demais e consigo próprio. Existem duas importantes formas de encobrimento pela fala, às quais a reflexão hermenêutica deve dedicar-se acima de tudo. Elas estão ligadas àquele encobrimento pela fala que determina a totalidade do comportamento com relação ao mundo. É o que pretendo abordar agora. Uma dessas formas é o tácito e silencioso emprego de preconceitos. Constitui uma estrutura fundamental de nosso dizer tanto o fato de sermos orientados por preconceitos quanto o fato desses permanecerem de tal modo encobertos que somente mediante uma ruptura do que subjaz à orientação intencional do discurso é que podem se tornar conscientes. De modo geral, essa ruptura gera uma nova experiência, que torna o preconceito insustentável. Mas os preconceitos básicos são mais poderosos. Asseguram-se, ou bem por reivindicar para si uma certeza evidente ou por se mostrarem relativamente isentos de preconceitos, confirmando assim sua validade. Conhecemos essa configuração de linguagem, em que os preconceitos se consolidam, como a repetição obstinada inerente a todo dogmatismo. Mas também a conhecemos na ciência, quando por exemplo, em nome do conhecimento sem preconceitos e de sua objetividade, transfere-se sem nenhuma modificação o método de uma ciência experimental, como a física, para outros âmbitos, como, por exemplo, o conhecimento da sociedade. E ainda mais, quando a ciência é aclamada como a mais elevada instância nos processos de decisão social, como ocorre cada vez mais em nossos dias. Em casos assim, só a reflexão hermenêutica pode demonstrar que os verdadeiros interesses ligados ao conhecimento permanecem desconhecidos. Conhecemos essa reflexão hermenêutica como crítica da ideologia, uma crítica que coloca essa ideologia sob suspeita, isto é, que revela a suposta objetividade como expressão da estabilidade das relações de poder social. A pretensão da crítica ideológica é conscientizar e dissolver os preconceitos sociais reinantes com ajuda da reflexão histórica e social. Sua intenção é desfazer o encobrimento que rege a influência incontrolada desses preconceitos. Trata-se de uma tarefa extremamente difícil, uma vez que colocar sob suspeita o óbvio provoca sempre a resistência de todas as evidências práticas. Mas é justamente aqui que se encontra a função da teoria hermenêutica, a saber, inaugurar uma disposição geral capaz de bloquear a disposição especial de hábitos e preconceitos arraigados. A crítica da ideologia constitui uma forma especial de reflexão hermenêutica que busca desfazer criticamente certo tipo de preconceitos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Mas a reflexão hermenêutica tem alcance universal. Contrariamente à ciência, ela deve lutar por seu reconhecimento, mesmo quando está em questão não um problema específico de crítica social da ideologia mas o problema de um auto-esclarecimento da metodologia científica. A ciência repousa na particularidade do que ela estabelece, mediante seus métodos objetivantes, como seu objeto. No sentido de ciência metodológica moderna, define-se por uma renúncia de princípio que descarta tudo que se furta à metodologia de seus próprios procedimentos. Justamente por isso comprova sua competência ilimitada, não podendo jamais ser negada em sua legitimidade. Nesses termos, a ciência dá a impressão de um conhecimento total, por trás do qual escondem-se preconceitos ou interesses sociais. Basta lembrar por exemplo o papel dos especialistas na sociedade atual, o modo como a economia e a política, a guerra e o direito se definem com maior força pela voz dos especialistas do que pelas associações políticas, essas que representam a vontade da sociedade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Mas a crítica hermenêutica só adquire sua verdadeira eficácia quando produz auto-reflexão, ou seja, quando consegue refletir sobre seu próprio esforço crítico, sobre as suas próprias condições e dependências. Uma reflexão hermenêutica capaz de realizar essa auto-reflexão parece-me estar muito próxima de um verdadeiro ideal   de conhecimento, porque torna consciente a ilusão da própria reflexão. Uma consciência crítica, que demonstra por toda parte a existência de preconceitos e dependências, mas que se considera ela mesma absoluta, isto é, independente e livre de preconceitos, permanece necessariamente presa a ilusões. Pois é motivada justamente pelo que ela critica. Está de forma irrecusável dependente do que pretende dissolver. A pretensão de uma ausência total de [183] preconceitos é uma ingenuidade, seja na forma delirante de um iluminismo absoluto, seja como o delírio de um empirismo livre de todos os preconceitos da tradição metafísica, ou ainda como o delírio de uma superação da ciência pela crítica ideológica. Em todo caso, ao refletir sobre si própria, a consciência hermenêutica iluminista parece-me fazer valer uma verdade superior. Sua verdade é a verdade da tradução. A sua superioridade consiste em apropriar-se do estranho, não simplesmente dissolvendo-o criticamente ou reproduzindo-o acritícamente, mas conferindo-lhe nova validade a partir do momento em que o interpreta no horizonte de seus próprios conceitos. A tradução permite que o estranho e o próprio se conjuguem numa nova configuração, à medida que respeita o ponto de verdade do outro frente a si própria. Nessa forma de prática reflexiva, o que se dá como formulado na linguagem se vê de certo modo superado, ou seja, retirado de sua própria estrutura de mundo própria da linguagem. Mas essa nova realidade, e não nossa própria opinião   sobre ela, insere-se numa nova interpretação de mundo feita na linguagem. Nesse processo de constante avanço do pensamento, em que se respeita o outro em relação a si mesmo, demonstra-se o poder da razão. A razão sabe que o conhecimento humano é e permanece limitado, mesmo quando sabe de seus limites. A reflexão hermenêutica exerce assim uma autocrítica da consciência pensante que retraduz todas as suas abstrações, inclusive os conhecimentos das ciências, para o conjunto da experiência humana de mundo. A filosofia que, expressamente ou não, deve ser sempre uma crítica do pensamento tradicional, é esse exercício hermenêutico que incorpora as totalidades estruturais, elaboradas pela análise semântica, no continuum da tradução e da conceituação, onde existimos e desaparecemos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

É próprio da universalidade do princípio hermenêutico precisar ser observado também pela lógica das ciências sociais. Assim, Habermas utilizou-se das análises da "consciência da história dos efeitos" e do modelo da "tradução", presentes em Verdade e método I, reconhecendo-lhe uma função positiva para a superação da rigidez positivista da lógica das ciências sociais e para sua fundamentação nos processos da linguagem, a qual historicamente continua irrefletida. Essa referência à hermenêutica portanto está expressamente a serviço dos pressupostos da metodologia das ciências sociais. Essa proposta distancia-se certamente da base tradicional da problemática hermenêutica formada pelas ciências do espírito estético-românticas, distância tomada por uma decisão prévia de grande alcance. É verdade que o estranhamento metodológico que constitui a essência da ciência moderna é usado também nas "humanities", e Verdade e método I jamais considerou como excludente a contraposição implícita em seu título. Mas o ponto de partida da análise foram as ciências do espírito, porque convergem com experiências onde não estão em questão método e ciência, mas experiências que se encontram fora da ciência, como a experiência da arte e a experiência da cultura cunhada pela sua tradição histórica. Em todas elas a experiência hermenêutica atua de modo igual, e como tal ela própria não se converte em objeto de estranhamento metodológico, mas precede-o na medida em que abre as perguntas à ciência, possibilitando assim o emprego de seus [239] métodos. Caso se reconheça a reflexão hermenêutica como indispensável (como ficou demonstrado em Verdade e método para o caso das ciências do espírito), as ciências sociais modernas, segundo Habermas, reivindicam, por intermédio de um "estranhamento controlado", elevar a compreensão "de um exercício pré-científico para o nível de um procedimento reflexivo", por assim dizer pelo "desenvolvimento metodológico da inteligência" (172-174). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Esse é o caminho que trilha a ciência, desde antigamente, a fim de alcançar, através de procedimentos ensináveis e controláveis, o que a inteligência individual às vezes também consegue, mesmo que de modo inseguro e não controlável. Se a conscientização das condições hermenêuticas presentes nas ciências da compreensão leva as ciências sociais — que não buscam "compreender" mas apreender cientificamente a estrutura real da sociedade pela inclusão das compreensibilidades que se alojam na estrutura da linguagem — a sistematizações metodológicas úteis ao seu trabalho, isso certamente é um ganho científico. Mas a reflexão hermenêutica não permitirá que aquelas lhe prescrevam uma obrigação de restringir-se a essa função científica imanente, e sobretudo não permitirá que lhe impeçam de aplicar novamente uma reflexão hermenêutica ao estranhamento metodológico da compreensão que move as ciências sociais, mesmo que isso provoque uma nova desvalorização positivista da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

No entanto, quando Habermas se guia pela análise da [240] compreensão prévia e dos condicionamentos essenciais dos preconceitos próprios a toda compreensão e ação humanas, a reivindicação que ele faz à hermenêutica é de caráter fundamentalmente diferente. E verdade que a consciência da história dos efeitos, que busca refletir sobre os próprios preconceitos e controlar sua própria compreensão prévia, desbanca o objetivismo ingênuo que falseia tanto a teoria positivista da ciência quanto a fundamentação fenomenológica e de análise da linguagem próprias das ciências sociais. Mas em que contribui essa reflexão? Aí está o problema da história universal, isto é, a ideia de uma meta da história que a ação social se representa como meta. Quando se contenta com considerações gerais que jamais ultrapassam os limites do próprio ponto de vista, a reflexão hermenêutica acaba se tornando estéril e infrutífera. É verdade que com essa consideração nega-se a pretensão de uma filosofía da historia baseada em conteúdos. Mas, apesar disso, a consciência histórica projetará sempre uma história universal pré-compreendida a partir de sua própria orientação ao futuro. De que serve conhecer seu caráter provisório e sua superabilidade essencial? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas o que faz a reflexão hermenêutica quando é efetiva? Qual a relação da reflexão histórico-efeitual com a tradição da qual ela se torna consciente? Minha tese é de que — e penso que ela seja a consequência necessária do reconhecimento de nosso condicionamento histórico-efeitual e de nossa finitude — a hermenêutica nos ensina a perceber o dogmatismo presente na contradição entre a tradição viva e "natural" e a apropriação reflexiva da mesma. Ai esconde-se um objetivismo dogmático que deforma também o conceito de reflexão. O sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, não consegue evadir-se do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão sempre está implicada nesse acontecer. O historiador, mesmo aquele da chamada ciência crítica, está tão longe de desfazer-se das tradições vivas, por exemplo das tradições nacionais, que, enquanto historiador nacional, acaba ao contrário formando-as e conformando-as pela sua atuação. E o mais importante: quanto mais conscientemente reflete sobre seu condicionamento hermenêutico tanto mais atua. Droysen, que desmascarou a "objetividade eunuca" dos historiadores em sua ingenuidade hermenêutica, atuou decisivamente em favor de uma consciência nacional da cultura burguesa do século XIX — em todo caso, teve muito mais influência do que a consciência épica de Ranke, que buscava educar para uma apoliteia estatal. A compreensão é, ela mesma, um acontecimento. Só um historicismo ingênuo e irrefletido poderia considerar as ciências histórico-hermenêuticas como algo absolutamente novo, [241] capaz de eliminar o poder da tradição. Através do aspecto da estruturação da linguagem, como um fenômeno capaz de sustentar toda compreensão, procurei demonstrar inequivocamente a mediação constante pela qual sobrevive a tradição social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Habermas contrapõe a essa ideia o argumento de que a intervenção da reflexão acabou transformando profundamente o médium da ciência. Foi exatamente essa a herança imperecível que o idealismo alemão nos legou do espírito do século XVIII. Segundo Habermas, mesmo que a experiência hegeliana de reflexão já não possa realizar-se numa consciência absoluta, o "idealismo da estrutura da linguagem" (179) — que no fundo não passaria de mera "transmissão cultural", na sua apropriação e desenvolvimento hermenêuticos — seria uma triste impotência frente ao todo real do nexo vital da sociedade, conjugando não apenas a linguagem mas também o trabalho e o domínio. A reflexão hermenêutica deveria transformar-se em crítica da ideologia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Para a reflexão hermenêutica, o conceito de reflexão e conscientização utilizado por Habermas aparece carregado de dogmatismos, e é nesse particular que gostaria de ver os efeitos da reflexão hermenêutica que eu proponho. Através de Husserl   (em sua teoria das intencionalidades anônimas) e de Heidegger (na demonstração da redução ontológica presente no conceito subjetivo e objetivo do idealismo) aprendemos a desmascarar a falsa objetivação que pesa sobre o conceito de reflexão. Há sem dúvida uma regressão interna da intencionalidade que jamais tematiza o conotado (Mitgemeinte) como objeto. Brentano   já percebera esse ponto ao retomar as ideias aristotélicas. Não saberia como conceber a enigmática figura ôntica da linguagem, se não a partir dessa ideia. Devemos distinguir (para falar com as palavras de J. Lohmann) entre a reflexão "efetiva", que acontece no desenvolvimento da linguagem, e a reflexão expressa e temática, formada na história do pensamento ocidental, ao converter tudo em objeto temático, quando a ciência criou os pressupostos da civilização planetária do futuro. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas a questão continua de pé. Se quiser afirmar-se tanto frente à universalidade da retórica quanto frente à atualidade da crítica da ideologia, a problemática hermenêutica deve fundamentar sua própria universalidade, e isso frente à pretensão da ciência moderna de assumir em si a reflexão hermenêutica e colocá-la a serviço da ciência (pela "formação metodológica da inteligência"). O que só será possível se ela não ficar presa à imanência inapreensível da reflexão transcendental  , mas se puder dizer em que essa reflexão contribui para a ciência moderna — e não só dentro dela. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Se a reflexão hermenêutica pode produzir o que realiza toda conscientização, isso deve ser mostrado dentro da própria ciência. A reflexão de uma determinada compreensão prévia coloca diante de mim algo que antes se dava às minhas costas. Algo, não tudo. Pois a consciência histórico-efeitual é insuperavelmente mais ser que consciência. Mas isso não significa que possa prescindir de uma constante conscientização sobre o perigo do enrijecimento ideológico. É só com essa reflexão que posso superar a falta de liberdade que me prendia a mim mesmo e posso sentir-me livre diante do direito ou não de minha compreensão prévia — mesmo que seja apenas no modo em que aprendo a alcançar uma nova compreensão de coisas que eu via guiado por preconceitos. Mas isso implica que os preconceitos que guiavam minha compreensão prévia sempre estão em jogo também — até serem abandonados, o que pode significar, também, até serem reformulados. A força incansável da experiência consiste em formar sempre uma nova compreensão prévia em toda instrução. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Nas áreas iniciais de meus estudos hermenêuticos, as ciências da arte e as ciências da história da filologia, é fácil demonstrar como a reflexão hermenêutica torna-se efetiva. Basta lembrar o abalo que a reflexão hermenêutica sobre o conceito de arte — ou sobre o conceito das épocas singulares ou de estilo — impingiu à autonomia que gozava a história dos estilos na consideração das ciências da arte; como a iconografia passou de uma posição marginal para uma posição de destaque, como a reflexão hermenêutica sobre os conceitos de vivência e expressão teve consequências na ciência da literatura — mesmo que apenas no sentido de dar um impulso mais consciente às tendências de investigação presentes de há muito (A ação recíproca também é ação). É óbvio e [248] natural que o abalo de preconceitos bem estabelecidos prometa progresso científico. Possibilita novas perguntas, e nós experimentamos constantemente o que pode alcançar a investigação histórica através da consciência da história dos conceitos. Nessas áreas, creio ter demonstrado como se intermedeia o estranhamento histórico pela figura da "fusão de horizontes". Devo ao lúcido trabalho de Habermas ter-me feito ver a contribuição hermenêutica no campo das ciências sociais, sobretudo pela confrontação da compreensão prévia da teoria positivista da ciência, mas também a de uma fenomenologia apriorística e de uma linguística geral, com a dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas a função da reflexão hermenêutica não se esgota no que ela significa para as ciências. Todas as ciências modernas apresentam um estranhamento profundamente enraizado que elas impõem à consciência natural. Já no estágio inicial da ciência moderna, esse estranhamento alcançou uma consciência reflexiva através do conceito de método. A reflexão hermenêutica não pode pretender modificar isso. Mas, à medida que torna transparentes as pré-compreensões que guiam as ciências, pode liberar novas dimensões, prestando assim um serviço indireto ao trabalho metodológico. Além disso, pode trazer à consciência aquilo que realmente dispõe a metodologia das ciências para seu próprio progresso, quais são as cegueiras e abstrações que impõe, pelas quais suplanta e desnorteia a consciência natural. Essa consciência natural, como consumidora das invenções e informações alcançadas pela ciência, acaba seguindo-a sempre. Com Wittgenstein  , podemos expressar isso da seguinte forma: Os "jogos de linguagem" da ciência permanecem referidos à metalinguagem representada pela língua materna. Os conhecimentos alcançados pela ciência ingressam na consciência social por meio dos modernos meios de informação e com uma demora pertinente (às vezes também grandemente impertinente) através da escola e da educação. Assim articulam as realidades "sociais da linguagem". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas isso não tem muita importância para as ciências da natureza, como tais. O pesquisador da natureza sabe perfeitamente quão particular é o âmbito de conhecimento de sua ciência no todo da realidade humana. Não partilha do endeusamento que a opinião pública lhe atribui. E assim que, tanto a opinião pública quanto o pesquisador que recorre a ela precisam da reflexão hermenêutica sobre as pressuposições e limites da ciência. Na suposição de que ainda consigam exercê-la, as assim chamadas humaniora dispõem de uma boa comunicação com a consciência geral, porque seus objetos pertencem imediatamente à tradição cultural e ao corpo formativo tradicional. Mas as ciências sociais mantêm uma relação especialmente [249] tensa com seu objeto, a realidade social, necessitando assim da reflexão hermenêutica. O estranhamento metodológico, a que elas devem seu progresso, refere-se aqui ao todo do mundo humano-social. Por causa desse estranhamento, o mundo vê-se colocado à disposição da ciência, no que se refere à planificação, direção, organização, desenvolvimento, enfim, numa infinidade de funções que determinam por assim dizer a partir de fora a vida de cada indivíduo e de cada grupo. O engenheiro social que cuida do funcionamento da máquina social parece dissociado da sociedade a que pertence. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas isso não é tudo. O marco interpretativo elaborado por Freud   reivindica o caráter de verdadeiras hipóteses de ciência natural ou de leis válidas para o conhecimento. Isso deve refletir-se no papel que desempenha o estranhamento metodológico no âmbito da psicanálise, e assim é de fato. Embora a análise adquira sua credibilidade no êxito, a pretensão de conhecimento da psicanálise não pode ser reduzida ao pragmático. O que significa que ela deve se expor a uma nova reflexão hermenêutica. Qual a relação existente entre o saber do psicanalista e sua postura dentro da realidade social a que pertence? O fato de questionar além das interpretações superficiais, de desbaratar autoconcepções mascaradas, de desmascarar a função repressiva dos tabus sociais, isso tudo pertence à reflexão emancipatória que ele aplica a seus pacientes. Mas se ele aplica essa reflexão onde não está legitimado como médico, onde [250] ele próprio é um comparsa no jogo da sociedade, estará se colocando fora de sua função social. Quem "põe a descoberto" seu comparsa de jogo, à luz de algo que se situa fora do jogo, isto é, que não leva a sério o que estão jogando, é um perdedor que se deve evitar. A força emancipatória da reflexão reivindicada pelo psicanalista deve encontrar seu limite na consciência social, na qual tanto o analista quanto seu paciente se entendem com todos os outros. A reflexão hermenêutica ensina-nos que, em todas as tensões e perturbações, a comunidade social remete-nos sempre de novo a um acordo social, em virtude do qual ela subsiste. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O "nada nadificante", p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Trata-se de retificar uma autocompreensão. Essa reflexão hermenêutica é "filosófica" não porque reivindicasse para si uma determinada legitimação filosófica, mas ao contrário porque contesta uma certa pretensão "filosófica". O que critica não é um procedimento científico como tal, como por exemplo o da pesquisa científica ou o da análise lógica, mas a falta de justeza metodológica dessas aplicações, como foi descrito acima. E ademais, a legitimação filosófica baseada nessa questão de crítica não tem nada de especial. Não existe nenhuma outra justificação para o filosofar a não ser remeter-se ao fato de que sempre se filosofou, mesmo que muitas vezes sob os signos negativos de oposição à pretensão da "metafísica", por exemplo, no caso do ceticismo, da crítica da linguagem ou da teoria da ciência. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Ora, a significação paradigmática que corresponde à psicanálise para a crítica à hermenêutica e para a crítica dentro da comunicação social encontra-se no papel da reflexão emancipatória, que tem sua função terapêutica nela. A reflexão liberta alguém na medida em que torna visível o que o domina imperceptivelmente. De certo, trata-se de reflexão crítica num sentido diferente do que o sentido que se dá na reflexão hermenêutica, que como eu dizia destrói a autocompreensão inadequada descobrindo a falta de retidão metodológica. Não que a crítica que se orienta no paradigma da psicanálise estivesse em contradição com a crítica hermenêutica (mesmo que, como gostaria de demonstrar, a crítica hermenêutica deva negar-se a assumir esse paradigma). Isso não lhe é suficiente. Por meio da reflexão hermenêutica, as ciências hermenêuticas defendem-se contra a tese de que seu procedimento seria acientífico, visto negarem a "objetividade" da science. Nesse ponto, a crítica da ideologia concorda com a hermenêutica filosófica. Acusa, porém, a hermenêutica de perpetuar de modo indevido uma persistência tradicionalista de preconceitos herdados. Desde a irrupção da revolução industrial e da ciência na vida social, o momento da tradição desempenharia um papel meramente secundário. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Mas na medida em que essa hermenêutica, a partir da teoria, destrói essas deformações práticas procedentes da teoria, ocorre sem dúvida um efeito retroativo de uma falsa autocompreensão sobre o procedimento prático e também o efeito retroativo inverso de uma autocompreensão adequada. Mas a tarefa da reflexão da história dos efeitos não é buscar atualização e "aplicação", mas antes descobrir e impedir todas as ingerências atualizantes na compreensão da tradição, não apenas pela disciplina formal   da metodologia científica, mas pela reflexão concreta sobre o conteúdo. Apel expressa exatamente o que penso quando diz: "pertence ao âmbito dos deveres de um método de interpretação, com consciência de sua aplicação, ter de dificultar em certas circunstâncias sua aplicação ao presente no interesse de um entendimento não limitado" (141). Ousaria ir mais longe, e em lugar de "em certas circunstâncias", dizer "em todas as circunstâncias"; só que não considero esse princípio como a consequência da consciência de aplicação, mas como a realização do verdadeiro dever da cientificidade, que muitas vezes parece-me ferido onde os preconceitos ideológicos continuam atuando como pano de fundo, como uma vis a tergo. Isso porque um senso metodológico de falsa exatidão não quer verificá-los. Nesse ponto, vejo com Apel (32) um perigo de real corrupção ideológica. Não saberia dizer se esse perigo atinge, como diz Apel (35), também aquelas ciências hermenêuticas do espírito que ele chama de "existencialistas", uma vez que não sei o que ele tem em mente. Mas certamente o perigo não atinge aquelas ciências nas quais se orienta a reflexão hermenêutica, nem atinge essa reflexão. É só nesse caso que a reflexão hermenêutica pode tornar-se "prática". Ela torna suspeita toda ideologia, à medida que evidencia seus preconceitos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O melhor a fazer é examinar isso num exemplo concreto. Vejamos, por exemplo, para ficar dentro do âmbito de minha competência, a história da interpretação dos pensadores pré-socráticos no século XX. Ali, cada interpretação coloca em jogo determinados preconceitos: Joël, usa o preconceito da ciência da religião; Karl Reinhardt, o do iluminismo lógico; Werner Jaeger, um monoteísmo religioso inexplícito (como W. Bröcker mostrou de maneira brilhante [262]), e eu mesmo, quando inspirado na exposição da questão do ser de Heidegger, procuro compreender "o divino" à luz da filosofia clássica e do pensamento filosófico. Em todos esses casos pode-se perceber a atuação de um preconceito orientador, que se torna produtivo exatamente por corrigir preconceitos vigentes até o presente. Aqui não se aplicam aos textos concepções preconcebidas, mas procura-se compreender o que se encontra ali. Procura-se compreender melhor, uma vez que se percebe o preconceito do outro. Mas essa percepção só é possível porque se olha o que se encontra ali com novos olhos. A reflexão hermenêutica não é dissociável da práxis hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

É justamente por isso que parece-me ser um mal-entendido querer equiparar a aplicação ingênua que dominava o curso da tradição antes do aparecimento da consciência histórica com o momento da aplicação de todo compreender. Não resta dúvidas de que com a ruptura com a tradição e o surgimento da consciência [263] histórica modificou-se a praxis da compreensão. Apesar disso, não me parece convincente dizer que a consciência histórica e sua depuração nas ciências históricas deva ser o motivo de desmoronamento do poder da tradição, e que o fator decisivo para isso não tenha sido antes a própria ruptura da tradição, iniciada com o nascimento da modernidade que alcançou sua primeira culminação radical na Revolução Francesa. Parece-me que as ciências históricas do espírito passaram ao primeiro plano muito mais como reação a essa ruptura com a tradição do que por terem-na provocado ou apenas confirmado a partir de si. O certo é que as próprias ciências do espírito, apesar de sua procedência romântica, representam um fenômeno de ruptura da tradição e em certo sentido dão continuidade ao iluminismo crítico. A seu tempo, chamei isso de reflexo distorcido do iluminismo. Mas, por outro lado, atuam nela impulsos da restauração romântica. A aprovação ou o rechaço não modifica em nada o fato de que possam realizar contribuições cognitivas específicas. Basta recordar, por exemplo, o "Geschichte   de Stauferzeit" de Raumer. Pode ser tudo, menos aplicação consciente. A força de penetração do iluminismo crítico, que critica a vigência ingênua das tradições e a persistência da tradição, a qual co-determina o horizonte histórico, pertencem à essência das ciências históricas, e isso não apenas no reino das ciências românticas do espírito. A história de Atenas na Guerra do Peloponeso ou a valoração de um Péricles ou de um "curtidor Cleon", é assombrosamente diferente na tradição da Alemanha imperial e na democracia americana, por mais jovens que sejam essas duas tradições. Não é diferente para a tradição do marxismo. Quando leio por exemplo a continuação do pensamento de Giegels nas categorias das lutas de classe, não esqueço (como ele parece temer) o que a reflexão histórico-efeitual pode explicitar ali; mas ele equivoca-se ao afirmar que isso produz uma legitimação. A reflexão hermenêutica limita-se a abrir possibilidades de conhecimento que sem ela não seriam percebidas. Ela não oferece um critério de verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Ora, essa determinação originária da hermenêutica ganhou mais definição quando a modernidade rompeu com a tradição, surgindo um ideal de conhecimento completamente diverso, baseado na exatidão. Mas o pressuposto fundamental para se estabelecerem as tarefas da hermenêutica, que não se queria ver corretamente e que eu procurei recuperar, foi desde sempre a apropriação de um sentido superior. Nesse sentido, nada tem de original quando em minha investigação reivindico a produtividade hermenêutica da distância temporal  , ressaltando de modo essencial a finitude e inconclusividade de todo compreender e de toda reflexão da história dos efeitos. Isso nada mais é que a liberação da verdadeira temática hermenêutica. Ela encontra sua real legitimação na experiência da história. O que nada tem a ver com a transparência de sentido. A "historiografia" precisa desviar-se constantemente da diluição humanista. A experiência da história não é a experiência do [265] sentido, do plano e da razão. E foi só sob o olhar perenizante da filosofia do saber absoluto que se pôde pretender conceber a razão na história. Assim, a experiência da história reconduz a tarefa da hermenêutica, de fato, ao seu verdadeiro lugar. Ela precisa decifrar sempre de novo os fragmentos de sentido da história, que se limitam e se quebram na escura contingência dos fatos e sobretudo no crepúsculo onde se encontra mergulhado o futuro para toda consciência presente. Também a "concepção prévia da plenitude", própria da estrutura da compreensão, chama-se enfaticamente assim porque a superioridade daquilo que deve ser compreendido não pode ser esgotada por nenhuma interpretação. Assim ficamos surpresos que em Apel, em Habermas e com uma importante modificação em Giegel, a reflexão hermenêutica precise elevar-se a uma plena transparência idealista de sentido, pela luz brilhante de uma ciência explicativa. Isso se encontra na função paradigmática que esses autores atribuem à psicanálise. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Retornemos ao que se pode discutir, que são as bases teóricas do que representa a praxis hermenêutica. Concordo com meus críticos sobre um ponto e agradeço-lhes o fato de ter que destacá-lo: Creio que, assim como a crítica da ideologia passa da "teoria da arte" compreensiva para a auto-reflexão, também a reflexão hermenêutica representa um momento integral da própria compreensão, a ponto de a separação entre reflexão e praxis incluir um erro dogmático que atinge também o conceito da "reflexão emancipatória". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Com isso, expresso-me com a linguagem do próprio Hegel. Isso foi objeto de observações críticas, sobretudo por parte de Bormann, que classifica como ilegítimo tanto meu uso dos conceitos de Kierkegaard   quanto os de Nicolau de Cusa e especialmente os de Hegel, porque eu estaria separando de seu contexto sistemático os recursos da linguagem conceitual que utilizo. Essa crítica está bem fundamentada e é muito óbvia sobretudo no caso de Hegel, visto que meu confronto com Hegel em Verdade e método foi inegavelmente insatisfatório. Mesmo nesse caso gostaria de defender a vantagem descritiva de um pensamento em diálogo com os clássicos. Parece-me que meu ponto crítico frente a Hegel se mostra objetivamente quando emprego a descrição que Hegel faz do "conceito de experiência dialética da consciência" a um sentido mais abrangente de experiência. A experiência perfeita não é perfeição do saber, mas abertura perfeita para uma nova experiência. Essa é a verdade que a reflexão hermenêutica reivindica frente ao conceito do saber absoluto. Nesse caso ela não é ambígua. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Com o discurso sobre emancipação, a coisa não é diferente. O conceito de reflexão usado nesse contexto não me parece livre de dogmatismos. Não expressa a conscientização própria da práxis, mas repousa, como formulou certa vez Habermas, num "consenso contrafáctico". Isso implica a pretensão de saber antecipadamente — antes da confrontação prática — com que não se está de acordo. Mas o sentido da práxis hermenêutica não consiste em partir desse consenso contrafáctico, mas de possibilitá-lo e realizá-lo, o que [272] significa convencer por meio de uma crítica concreta. O caráter dogmático do conceito de reflexão, pressuposto por Habermas, aparece expressamente no seguinte exemplo: exige "desprender-se do grau de reflexão de uma racionalidade tecnologicamente limitada", mediante uma crítica justificada à superstição dos especialistas da sociedade. Isso implica uma ideia de graus que me parece falsa. Mesmo face à "nova função da ciência" dentro da sociedade vale lembrar que a racionalidade da capacidade de fazer — o que Aristóteles chamou de tekhne — é diferente e não uma espécie de reflexão inferior daquela que se dá no consenso racional dos cidadãos. A reflexão hermenêutica, porém, dedica-se à sua elucidação. Na verdade, não pode ser obtida sem um constante jogo recíproco de argumentos críticos; mas argumentos que reflitam as convicções concretas dos interlocutores. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Mas não vamos nos adiantar. A primeira auto-reflexão hermenêutica realizou-se já no tempo da Reforma por obra de Flacius. Tampouco ele foi, obviamente, mais que um filólogo e humanista conquistado pela causa da Reforma de Lutero  . Corresponde-lhe o mérito indiscutível de ter defendido o princípio da Escritura de Lutero contra os ataques dos teólogos tridentinos pela elaboração de sua hermenêutica. A sua defesa da Sagrada Escritura combateu em duas frontes. Por um lado, contra o ideal humanista do estilo ciceroniano, que não correspondia à Bíblia. Por outro lado, contra o ataque da Contra-Reforma, de que a Sagrada Escritura não poderia ser compreendida se não fosse interpretada com o auxílio da tradição magisterial da Igreja. Expor a Escritura Sagrada sem essa clavis dogmática posterior é a intenção básica da assim chamada "clavis scripturae sacrae", composta por Flacius. Com grande profundidade, aborda ali as causas das dificuldades que encontramos na Sagrada Escritura, recebendo por isso, de seu crítico católico Richard Simon, um elogio irônico, também por seu conhecimento dos Santos Padres. Pois bem, a maior dificuldade, a dificuldade [285] teológica fundamental para o princípio bíblico, não reside, segundo Flacius, naqueles inconvenientes gerais que um texto escrito em língua estranha oferece à compreensão. Esse é apenas o lado mais conhecido da questão, no qual Flacius pode mostrar sua grande competência como hebraísta e helenista. Existe uma razão teológica muito mais importante. "Na doutrina da salvação todos os homens são por natureza não apenas frágeis e néscios, mas, antes, muito propensos ao sentido contrário; não apenas somos incapazes de amar, desejar e compreender essa doutrina, mas consideramo-la absurda e ímpia e nos produz espanto". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Toda leitura e exposição da Sagrada Escritura, sobretudo a pregação, que busca revivificar a Escritura para que se transforme novamente em mensagem, deve ser presidida pela exigência querigmática do evangelho. A reflexão hermenêutica deve reconhecer isso. Esse postulado não justifica de modo algum que se classifique de dogmático o ensinamento hermenêutico de Flacius. Esse ensinamento limita-se a dar uma fundamentação teórica adequada ao princípio bíblico estabelecido por Lutero. A doutrina hermenêutica de Flacius não se opõe aos princípios humanistas e filológicos da reta interpretação por compreender um texto religioso como uma mensagem religiosa. Em relação ao conteúdo, não exige nenhum pressuposto dogmático que não possa ser demonstrado no texto do Novo Testamento e que represente uma instância superior a ele. Toda sua hermenêutica segue um princípio único: é só o contexto total que pode realmente determinar o sentido das frases distintas e das passagens etc. ("ut sensus locorum tum ex scopo scripti aut textus, cum ex toto contextu petatur"). Aqui aparece claramente o enfrentamento polêmico com toda a tradição magisterial, alheia à Bíblia. É nesse sentido que Flacius, como Melanchton, seguem Lutero, prevenindo sobre os perigos da alegorese. A doutrina do scopus totius scripti busca evitar justamente essa tentação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Tampouco podemos relegar Flacius, citado por Dilthey  , à literatura da controvérsia teológica, como faz Jaeger (38). É certo que a clavis de Flacius está a serviço de seus postulados teológicos. Mas seu fundamento é filológico-humanista em sentido geral. Flacius busca mostrar que a Sagrada Escritura pode ser compreendida como qualquer outro texto. Nesse sentido e como grande hebraísta e filólogo, Flacius defende a solução de Lutero (sacra scriptura sui ipsius interpres) contra a polêmica tridentina que afirmava a necessidade da tradição magisterial da Igreja. Não é esse o momento adequado para indagar até que ponto Flacius realizou sua intenção, ou, mais exatamente, se em sua argumentação em favor da compreensibilidade da Bíblia se deixa levar por certos preconceitos dogmáticos injustificados e se isto constitui realmente um defeito, como afirmava ainda Dilthey. Creio que sua doutrina sobre o scopus, subjacente a todo esforço hermenêutico, está estreitamente relacionada com a teologia da justificação de Lutero, de modo que não é possível dissociar a nova reflexão hermenêutica do sentido religioso da leitura da Bíblia. Mas isso não se aplica do mesmo modo à tradição do humanismo e a seu ideal da imitatiol Parece-me que o sentido normativo e canónico dos textos a serem interpretados — como na interpretação das leis — representa o momento decisivo de todo esforço de interpretação. Isso não significa em absoluto [297] nenhuma limitação do postulado hermenêutico de chegar a compreender um texto pouco inteligível. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Não se pode responsabilizar tão globalmente a "hermenêutica recente" pelos erros modernistas. Há que se dizer, antes, que a tarefa da reflexão hermenêutica é superar a oposição da clássica querelle des anciens et des modernes, sem pronunciar-se a favor da fé progressista dos modernos nem a favor da modéstia da mera imitação   dos antigos. Isso significa desmascarar por um lado o preconceito ligado à primazia da autoconsciência e à norma de certeza da cientificidade metodológica e controlar por outro lado o preconceito contrário: nossa suposta capacidade de eliminar sem mais a era cristã e a ciência moderna. Isso já foi expresso muito claramente por Schiller   em sua célebre caracterização de Goethe  . Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. No caso da hermenêutica, isso significa apenas que o pensamento filosófico moderno baseado na autoconsciência deve tomar consciência de sua unilateralidade e aceitar a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos. Jaeger refere-se a esse "subjetivismo" quando polemiza com a "hermenêutica construtivista" e com os "atos doadores de sentido" de Husserl? Se fosse assim, eu estaria plenamente de acordo. Mas isso me parece incompatível com o pensamento do autor. Como se comporta com relação às suas alusões a Heidegger? Que nos resta, então? Existir novamente sem tradição, como Jaeger atribui à hermenêutica moderna? Simplesmente ignorar a tradição em que estamos e na qual ele mesmo está? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

O desenvolvimento posterior da reflexão hermenêutica está dominado justamente pelo questionamento sobre o problema do historicismo, e tem seu ponto de partida em Dilthey, cujas obras completas, nos anos de 1920, acabam anulando também a influência de Ernst   Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Um ponto positivo dessa situação é o fato de o problema hermenêutico ter sido sistematicamente dimensionado e ordenado em toda sua amplitude pelo importante trabalho de um pesquisador italiano. O historiador de direito Emilio Betti, na sua grande obra Teoria genérale delia interpretazione — cujas ideias foram transpostas também para a língua alemã em um hermeneutisches Manifest (manifesto hermenêutico), sob o título Zur Grundlegung   einer allgemeinen Auslegungslehre — , apresentou uma panorâmica do estado da questão, que seduz tanto pela amplitude de seu horizonte, pelo imponente conhecimento de detalhes, quanto por seu desenvolvimento sistemático. Encontra-se muito bem suprido e invulnerável contra os perigos de um objetivismo histórico ingênuo, sendo ao mesmo tempo historiador de direito, professor de direito e concidadão de Croce e Gentile e até muito familiarizado com a grande filosofia alemã, de tal modo que fala e escreve um alemão perfeito. Ele sabe colher e recolher os frutos da reflexão hermenêutica [393] que vêm amadurecendo num esforço incessante desde Wilhelm von Humboldt   e Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Mas ainda mais importante que isso seria uma análise de Platão   como objeto de reflexão hermenêutica. A obra de arte dialógica contida nos escritos de Platão ocupa um lugar peculiar, no centro, entre a multiplicidade das máscaras da poesia dramática e a autenticidade do escrito doutrinário. Nesse sentido, os últimos decênios contribuíram para a formação de uma consciência hermenêutica mais elevada. O próprio Strauss surpreende, em seus trabalhos, com muitas mostras de brilhante decifração das relações de significado ocultas no decurso dos diálogos platônicos. Por mais que tenham nos ajudado a análise formal e outros métodos filológicos, a verdadeira base hermenêutica é a nossa própria relação com os problemas temáticos de que trata Platão. Mesmo a ironia artística de Platão (como qualquer ironia) só pode ser compreendida por quem está por dentro dos temas que ele trata. A consequência é que essas interpretações decifradoras permanecem "inseguras". Sua "verdade" não pode ser demonstrada "objetivamente", a não ser a partir daquele acordo temático que nos liga com o texto interpretado. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Mas na verdade não apenas o legado do humanismo estético mas também o legado da antiga scientia practica vem reforçar a problemática da hermenêutica. Essa scientia se destacava como um modo de saber próprio (alio eidos   gnoseos) frente ao conceito de ciência da antiga episteme   (segundo o que se compreende por ciência hoje, só a matemática pode satisfazer a esse conceito) não só a partir de seu projeto originário na ética e política aristotélicas. Ela possui sua própria legitimidade — esquecida pela consciência geral — também frente ao conceito moderno de ciência e sua versão técnica. É tarefa da hermenêutica refletir inclusive sobre as condições especiais do saber que aqui são decisivas. No conceito de ethos   (formado sob a força conformadora dos nomoi, isto é, das instituições sociais e da educação que se dá nessas instituições), Aristóteles resumiu as condições que facilitam o autêntico saber para a vita   practica. Isso teve também sua importância no presente, uma vez que os melhores aliados de uma hermenêutica da facticidade foram justamente esses aspectos críticos da filosofia aristotélica contra a teoria platônica das ideias. Mas, além disso, são testemunhos inequívocos de que as condições sociais de nosso saber podem interferir no ideal da ciência sem pressupostos. Assim, também o exame desse ideal da ausência de pressupostos pertence às tarefas de uma reflexão hermenêutica radical. Não se deve esquecer aqui o impulso liberador que expressa o mote de [434] uma ciência sem pressupostos (expressão que tem sua origem na situação de luta cultural, após 1870). Esse impulso anima   e sustenta também o movimento do Iluminismo e sua prolongação na ciência moderna. Mas a ingenuidade irresponsável que denota a aplicação desse termo no campo específico das ciências históricas e sociais fica patente não somente no utopismo das consequências das ciências sociais e das aplicações concretas derivadas da teoria da ciência do "círculo de Viena", como também e sobretudo nas graves aporias em que se enredou a teoria neopositivista da ciência com sua doutrina sobre as proposições protocolares. O historicismo ingênuo inspirado na escola de Viena encontrou assim uma resposta adequada na crítica de Karl Popper à teoria da ciência. De modo semelhante, os trabalhos de Horkheimer e Habermas sobre crítica da ideologia puseram a descoberto as implicações ideológicas subjacentes na teoria positivista do conhecimento e sobretudo em seu pathos   científico-social. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

A reflexão hermenêutica teve que elaborar assim uma teoria dos preconceitos que, sem menosprezar o sentido de crítica de todos os preconceitos que ameaçam o conhecimento, faz justiça ao sentido produtivo da compreensão prévia, que é premissa de toda compreensão. O condicionamento hermenêutico do compreender, tal como vem formulado na teoria da interpretação e sobretudo na doutrina do círculo hermenêutico, não se limita às ciências históricas, nas quais a situação do investigador forma parte das condições práticas do conhecimento. A hermenêutica encontra aqui seu caso exemplar, na medida em que na estrutura circular da compreensão se retrata também a mediação entre a história e o presente. Essa mediação precede todo distanciamento e estranhamento históricos. A pertença do intérprete a seu "texto", como a pertença do destino humano a sua história, é evidentemente uma relação hermenêutica fundamental que não se pode eliminar, com belas sentenças, como acientífica. Deve-se assumi-la conscientemente como a única atitude adequada à cientificidade do conhecimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Mas a interpretação não se limita aos textos e à compreensão histórica que neles se deve alcançar. Todas as estruturas de sentido concebidas como textos, desde a natureza (interpretatio naturae, [435] Bacon), passando pela arte (cuja carência de conceitos [Kant  ] converte-se em exemplo preferencial de interpretação [Dilthey]), até as motivações conscientes ou inconscientes da ação humana, são suscetíveis de interpretação. Essa pretende mostrar não o que é óbvio mas as verdadeiras e latentes concreções de sentido da ação humana, mesmo que o faça revelando o ser real de cada um como o ser de sua própria história (P. Ricoeur  ), mostrando assim que os condicionamentos sociais e históricos determinam imperceptivelmente nosso pensamento. A psicanálise e a crítica da ideologia, como inimigos a se enfrentar ou aliados em uma síntese cética ou utópica (Adorno, Marcuse), devem submeter-se ainda a uma reflexão hermenêutica. Isso porque o que eles assim descobrem e compreendem não é independente da situação do intérprete. Nenhum campo interpretativo se dá aleatoriamente e muito menos "objetivamente". A reflexão hermenêutica mostra ao objetivismo do historicismo e da teoria positivista das ciências que eles agem a partir de pressupostos ocultos determinantes. Sobretudo a sociologia do saber e a crítica marxista da ideologia demonstraram aqui sua fecundidade hermenêutica. O valor cognitivo dessas interpretações só pode ser garantido mediante uma consciência crítica e uma reflexão da história dos efeitos. O fato de não possuírem a objetividade da science não desmerece seu valor cognitivo. Mas é só uma reflexão hermenêutica crítica, atuante nelas consciente ou inconscientemente, que faz aflorar sua verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Além do mais, a reflexão hermenêutica que se levou a cabo em Verdade e método pode ser tudo, menos um simples jogo de conceitos. Em todos os pontos, procede da práxis concreta das ciências, para as quais a reflexão sobre o método, isto é, o procedimento controlador e a falsificabilidade é evidente para todos. Nesse [450] sentido, essa reflexão hermenêutica buscou em todo lugar o aval da práxis da ciência. Se quisermos caracterizar o lugar de meu trabalho dentro da filosofia de nosso século, devemos partir diretamente do fato de que tentei oferecer uma contribuição mediadora entre a filosofia e as ciências, e sobretudo desenvolver de maneira produtiva as questões radicais de Martin Heidegger — às quais agradeço terem proporcionado pontos decisivos no tanto que pude compreendê-las — dentro do amplo campo da experiência científica. Foi isso que me levou necessariamente a ultrapassar o limitado horizonte de interesses da metodologia da teoria da ciência. Mas será que podemos objetar à reflexão filosófica que ela não leva em consideração a investigação científica como um fim em si e que, ainda, com seu questionamento filosófico tematiza as condições e limites da ciência no todo da vida humana? Numa época em que a ciência penetra sempre mais decisivamente na práxis social, esta mesma ciência só poderá exercer adequadamente sua função social quando não ocultar seus próprios limites e as condições de seu espaço de liberdade. É justamente isso que a filosofia deve esclarecer a uma geração que acredita na ciência até os extremos da idolatria. E é justamente nisso que a tensão de Verdade e método possui uma atualidade inalienável. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

De fato, a absolutização do ideal da "ciência" exerce um fascínio tão grande que induz sempre de novo a considerar que a reflexão hermenêutica carece de objeto. Parece que o investigador tem dificuldades de ver o estreitamento perspectivístico que o pensamento metodológico traz consigo. Ele já está sempre voltado à justeza metodológica de seu procedimento, isto é, está afastado da direção oposta, que supõe a reflexão. Mesmo que, defendendo sua consciência metodológica, ele se comporte de fato reflexivamente, já não permite que essa sua reflexão volte a ganhar uma tematização consciente. Uma filosofia das ciências que compreende a si mesma como teoria da metodologia científica e que não admite nenhum questionamento que ela não possa caracterizar como sensato pelo processo de trial and error, não se dá conta de que com essa caracterização já se encontra fora do mesmo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Assim, a constatação de que o diálogo filosófico com a filosofia das ciências não pode realizar-se plenamente parece fundamentada na natureza das coisas. Um bom exemplo para isso é o debate entre Adorno e Popper, assim como o de Habermas com Albertz. Além [453] disso, o empirismo da teoria da ciência, ao instituir a "racionalidade crítica" como paradigma absoluto da verdade, deve considerar a reflexão hermenêutica como um obscurantismo teológico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Diante dessa situação precisamos rediscutir dois pontos: O que significa reflexão hermenêutica para a metodologia das ciências e qual a relação que guarda a tarefa crítica do pensamento frente à determinação da compreensão provinda da tradição. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O acirramento da tensão entre verdade e método guiava-se em meus trabalhos por um sentido polêmico. Como reconhece o próprio Descartes, isso acaba fazendo parte de um processo especial de endireitar uma coisa que estava torta, a qual deve ser dobrada na direção contrária. E a coisa estava realmente torta, não tanto a metodologia das ciências, mas sua autoconsciência reflexiva. Parece-me que a historiografia e a hermenêutica pós-hegelianas que tematizei demonstram isso suficientemente. Quando, segundo as pressuposições de E. Betti, se teme que a minha reflexão hermenêutica pudesse representar um desvio da objetividade científica, isso não passa de um mal-entendido ingênuo. Nessa questão tanto [454] Apel, quanto Habermas e os representantes da "racionalidade crítica" parecem acometidos da mesma cegueira. Todos eles desconhecem a intenção reflexiva de minhas análises e consequentemente o sentido da aplicação, que tentei apresentar como um momento estrutural de todo compreender. Eles estão tão obcecados e presos pelo metodologismo da teoria da ciência que só conseguem ver regras e sua aplicação. Não percebem que a reflexão sobre a práxis não é técnica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Ora, a objeção mais grave que se fez contra o meu esboço de uma filosofia hermenêutica foi a de que eu extraio o significado fundamental do entendimento presumivelmente a partir da vinculação que a linguagem tem com toda compreensão e todo acordo, legitimando assim um preconceito social em favor das relações vigentes. Pois bem, creio que está realmente correto e continua sendo uma ideia real o fato de que só se pode alcançar o acordo sobre a base de um entendimento originário e que a tarefa da compreensão e da interpretação não pode ser descrita como se a hermenêutica tivesse de superar a rasa incompreensibilidade de um texto herdado da tradição, ou que sua tarefa primeira fosse superar o engano produzido pelo mal-entendido. Isso não me parece correto nem no sentido da hermenêutica ocasional dos tempos primitivos, que não refletia sobre suas outras pressuposições, nem tampouco no sentido de Schleiermacher e da ruptura romântica com a tradição, para a qual o primeiro elemento de todo compreender é o mal-entendido. Todo acordo na linguagem não apenas pressupõe um entendimento sobre os significados da palavra e sobre as regras da língua falada. Em tudo que se pode discutir com sentido há, ao contrário, muitos elementos que permanecem incontestados, também com referência a "coisas". A minha insistência nesse ponto pareceria testemunhar uma tendência conservadora, desautorizando assim a tarefa crítico-emancipatória da reflexão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O reconhecimento dessa constelação pressupõe certamente a ideia de que o conceito da reflexão emancipatória é muito vago e indeterminado. Trata-se de um simples problema objetivo, ou seja, da interpretação adequada de nossa experiência. Que papel desempenha a razão no contexto de nossa práxis humana? Em todo caso, sua forma comum de realizar-se é a da reflexão. E isso significa que sua natureza não é a mera aplicação de meios racionais para [468] conseguir objetivos e fins preestabelecidos. Não se restringe ao âmbito da racionalidade guiada pelos objetivos. Nesse ponto, a hermenêutica une-se com a crítica da ideologia contra a "teoria da ciência", na medida em que essa conserva sua lógica imanente e a aplicação dos resultados de pesquisa como o próprio princípio da práxis social. A reflexão hermenêutica eleva à consciência também os objetivos. Mas isso não no sentido de um conhecimento e fixação prévios de objetivos estabelecidos e supremos, aos quais, então, bastaria acrescentar a reflexão sobre a idoneidade dos meios para se alcançar os objetivos. Isto é antes a tentação que surge no proceder da razão técnica em seu próprio âmbito: pensá-la somente como a escolha correta dos meios, considerando as questões do objetivo como já previamente decididas. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Nesse ponto, o conceito de sentido defendido pela filosofia idealista da identidade foi funesto. Ele reduziu a competência da reflexão hermenêutica à chamada "tradição cultural", seguindo a linha de Vico que só considerava compreensível para os homens o que era feito por estes. A reflexão hermenêutica, que representa o ponto central de toda minha investigação, tenta mostrar justamente que esse conceito da compreensão de sentido é errôneo, e nessa perspectiva tive de restringir também a famosa determinação de Vico. Parece-me que tanto Apel quanto Habermas fincam pé nesse sentido idealístico do compreender o sentido, que nada tem a [471] ver com o ductus de minha análise. Não foi por acaso que orientei a minha investigação pela experiência da arte, cujo "sentido" não pode ser esgotado pela compreensão conceitual. O fato de eu ter desenvolvido o questionamento de uma hermenêutica filosófica universal, tomando como ponto de partida a crítica à consciência estética e refletindo sobre a arte — e não partindo imediatamente do âmbito das chamadas ciências do espírito — não significa, de modo algum, um arrefecimento diante da exigência de método na ciência. Significa antes uma primeira medição do alcance que possui a questão hermenêutica e que não busca primeiramente designar certas ciências como hermenêuticas, mas trazer à luz uma dimensão que precede a todo uso do método na ciência. E por isso que a experiência da arte tornou-se importante em muitos aspectos. O que significa essa superioridade temporal que a arte reivindica como conteúdo de nossa consciência estética formativa? Surge então uma dúvida: Será que essa consciência estética que a "arte" tem em mente — como ocorre com o próprio conceito de "arte", elevado ao caráter pseudo  -religioso — não representa uma diminuição de nossa experiência da obra de arte, tal como a consciência histórica e o historicismo são uma diminuição da experiência histórica? E igualmente intempestiva? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

No entanto, no caso de textos eminentes, entra em jogo também outro fator que exige reflexão hermenêutica. O "desaparecimento" da relação imediata com a realidade — para a qual o pensamento nominalista inglês, estruturado pela reflexão e pela linguagem, cunhou a significativa expressão "ficção" — não representa na verdade um fenômeno de carência, nem uma diminuição da imediaticidade da ação da linguagem. Representa, ao contrário, a sua "eminente" realização. Em toda literatura, esse fenômeno vale [476] também para o "destinatário" nela implícito, que não se refere ao receptor de uma comunicação, mas ao caráter de receptividade tanto de hoje como de amanhã. Embora tenham sido compostas para uma cena fixa e festiva e falem à sua própria atualidade social, as próprias tragédias clássicas não representavam certos acessórios teatrais destinados a uma única aplicação ou a permanecer guardados em um depósito para aplicações posteriores. O fato de poderem ser aplicadas novamente e logo serem lidas também como textos não se deve, certamente, a interesses históricos. Devia-se, antes, ao fato de serem obras que continuavam a falar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O aspecto hermenêutico porém parece-me indispensável também para a discussão estética de nossos dias. Precisamente depois que a "antiarte" tornou-se lema social, depois que o pop art, o Happening e algumas condutas tradicionais buscaram formas de arte contrárias às representações tradicionais da obra e sua unidade, esforçando-se por zombar de toda univocidade e compreensibilidade, a reflexão hermenêutica tem a tarefa de questionar o que está havendo com tais pretensões. A resposta a isso deverá indicar que o conceito hermenêutico de obra conservará sua plenitude, na medida em que nessa produção estejam incluídos identificabilidade, repetição e que essa repetição valha a pena. Na medida em que uma tal produção, enquanto é o que pretende ser, obedece à [477] relação hermenêutica fundamental de compreender algo como algo, a forma de concepção jamais será algo radicalmente novo para ela. Essa "arte" não se distingue em nada, na verdade, de certas formas de arte de caráter transitório, conhecidas desde antigamente, como, por exemplo, a arte da dança. Seu status e pretensão de qualidade são tais que, mesmo a improvisação, que jamais se repete, quer ser "boa", o que significa, idealiter repetível e confirmando-se como arte na repetição. Aqui há uma fronteira bem precisa que distingue essa arte do mero truque ou do número do prestidigitador. Também nesse caso há algo a ser compreendido. Pode ser concebido, pode ser imitado, requer inclusive domínio de sua arte e requer ser bom. Mas, usando as palavras de Hegel, a sua repetição será "vã como um número de prestidigitação do qual já se saiba o truque". As fronteiras existentes entre a obra de arte e o "número" podem até parecer difusas e fluentes e os contemporâneos podem até não saber se a atração de uma produção é efeito da surpresa ou um enriquecimento artístico. Não poucas vezes, os meios artísticos dão-se também como instrumentos em contextos de simples ações, como, por exemplo, em cartazes ou em outras formas de propaganda social ou política. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Por trás disso abre-se uma dimensão ainda mais ampla, que consiste no caráter fundamental da linguagem ou na referência fundamental à linguagem. O conhecimento do mundo e a orientação nele implicam sempre o momento da compreensão… e desse modo se pode evidenciar a universalidade da hermenêutica. Ao caráter fundamentalmente de linguagem que apresenta a compreensão não significa obviamente que a experiência do mundo se efetue exclusivamente como linguagem e na linguagem. São mais do que conhecidos todos esses processos de interiorização, emudecimento e silêncios que são anteriores ou estão além da linguagem, em que se expressa o encontro direto com o mundo. Quem poderá [497] negar que existem condições reais da vida humana, que há fome e amor, trabalho e domínio, que não podem ser caracterizados como discurso nem como linguagem, mas que dimensionam por sua vez o espaço dentro do qual pode produzir-se a conversa e a escuta mútua? Isso é tão evidente que são justamente essas formas prévias de pensamento e de linguagem humana que exigem a reflexão hermenêutica. Frente a uma hermenêutica que se orienta no diálogo socrático não se deve objetar somente que a doxa não é um saber, que o acordo aparente no qual vivemos e desde o qual falamos não é um verdadeiro acordo. Mas o próprio descobrimento do aparente, como faz o diálogo socrático, se realiza no elemento próprio da linguagem. O diálogo assegura do consenso possível, inclusive no fracasso do entendimento, no mal-entendido e no célebre reconhecimento do não-saber. O caráter comum que qualificamos como humano repousa na constituição de nosso mundo da vida construída na linguagem. E qualquer tentativa de denunciar as degradações do entendimento entre os seres humanos mediante a reflexão crítica e a argumentação confirma essa nota comum. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A meu ver, o programa aristotélico de uma ciência prática é o único modelo de teoria da ciência a partir donde se pode conceber as ciências "da compreensão". A reflexão hermenêutica sobre as condições da compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada dentro da linguagem, que [500] nunca começa do zero e não pode ser esgotada. Aristóteles mostra que a razão prática e o conhecimento prático não podem ser ensinados como a ciência. Eles só são possíveis na praxis, o que significa, na vinculação interna ao ethos. Convém não esquecer esse ponto. O modelo da filosofia prática deve ocupar o lugar dessa theoria  , cuja legitimação ontológica só poderia ser encontrada em um intellectus   infinitus, do qual nossa experiência existencial nada sabe sem apoio numa revelação. Esse modelo também deve ser contraposto a todos aqueles que subordinam a racionalidade humana à ideia metodológica da ciência "anônima". Frente ao aperfeiçoamento da autocompreensão lógica da ciência, essa parece-me ser a verdadeira tarefa da filosofia, inclusive e justamente frente à significação prática da ciência para nossa vida e sobrevivência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.