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Gadamer (VM): positivista

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Se agora pesquisarmos, em prosseguimento à história da palavra, a história do conceito de "vivência", podemos concluir do que precedeu que o conceito de vivência de Dilthey   contém claramente dois momentos, o panteístico e mais ainda o positivista, a vivência e mais ainda seu resultado. Isso não é, certamente, nenhum acaso, mas uma conseqüência de sua posição intermediária entre a especulação e o empirismo, do qual ainda voltaremos a nos ocupar em pormenores. Como o que importa a ele é justificar o trabalho das ciências do espírito, do ponto de vista cognitivo-teórico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado. E pois um motivo cognitivo-teórico ou, melhor, o motivo da própria teoria do conhecimento que motiva sua formação do conceito e que corresponde ao processo lingüístico, em cujo encalço nos encontrávamos acima. Como o distanciamento da vivência e a fome de vivência, que atingem a partir do sofrimento causado pela complicada aparelhagem da civilização, alterada pela revolução industrial, fazem a palavra "vivência" alcançar o uso comum da linguagem, da mesma forma o novo distanciamento que a consciência histórica toma com relação à tradição, designa o conceito da vivência em sua função cognitivo-teórica. Isso caracteriza pois o desenvolvimento das ciências do espírito no século XIX, mostrando que não somente externamente reconhecem as ciências da natureza como modelo mas que partindo do mesmo fundamento que vive moderna na natureza, desenvolvem, com ela, o mesmo patos de experiência e pesquisa. Se a estranheza que a era da mecânica tinha de experimentar face à natureza como mundo natural, encontrou sua expressão epistemológica no conceito da autoconsciência e na regra da certeza na "perception clara e distinta", que foi transformada em método, as ciências do espírito do século XIX experimentaram uma estranheza semelhante face ao mundo histórico. As criações espirituais do passado, da arte e da história não pertencem mais ao conteúdo auto-evidente do presente, mas se tornaram objetos e situações dadas (Gegebenheiten) propostos como tarefa à pesquisa, a partir dos quais pode-se atualizar um passado. E assim como o conceito do dado, que guia também a cunhagem do conceito de vivência de Dilthey. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Havemos de ver que para o pensamento de Dilthey é de decisiva importância que não se denomine a "sensation" ou a percepção, como a última unidade do consciente, o que era natural para o kantianismo e mesmo para a teoria do conhecimento positivista do século XIX, até Ernst   Mach, já que Dilthey chama a isso de "vivência". Ele delimita, assim, o ideal   construtivo de uma estrutura do conhecimento a partir de átomos de percepção e contrapõe a ele uma versão mais aguda do conceito do dado. A unidade da vivência (e não elementos psíquicos, sob os quais ela pode ser analisada) compõe a unidade real do dado. Dessa maneira, apresenta-se na teoria do conhecimento das ciências do espírito um conceito da vida que limita o modelo mecânico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

E o que dizer do sentido e da interpretação de acontecimentos históricos? A consciência dos contemporâneos é de tal natureza [105] que aqueles que "vivenciam" a história não sabem como esta lhes acontece. Dilthey, pelo contrário, mantém-se até o fim fiel às conseqüências sistemáticas de seu conceito de vivência, como reza o modelo de biografia e autobiografia para a teoria formulada por Dilthey, acerca do contexto da história dos efeitos. Também a acirrada crítica feita por R.G. Collingwood à consciência metodológica positivista permanece presa à estreiteza subjetivista do problema, à medida que, lançando mão do instrumental dialético do hegelianismo de Croce com sua teoria do reenactment, fundamenta como caso modelar para a compreensão histórica a execução posterior de planos elaborados. Nesse ponto, Hegel   foi mais conseqüente. Sua pretensão de se conhecer a razão na história fundamentava-se num conceito do "espírito", cujo traço essencial é dar-se "no tempo" e a determinação do conteúdo dar-se apenas por sua história. Decerto, também para Hegel, havia os "indivíduos que participam da história do mundo", por ele caracterizados como "encarregados do negócio do espírito universal", e cujas decisões e paixões coincidiam com o que "se dava no tempo". Esses casos excepcionais, porém, não definem para ele o sentido da compreensão histórica, sendo definidos como exceções a partir da concepção do filósofo acerca do que é o historicamente necessário. A saída que pretende atribuir ao historiador uma congenialidade com seu objeto, já tentada por Schleiermacher  , certamente não traz resultado algum. Isso transformaria a história universal num espetáculo   estético. Seria, por um lado, exigir demais do historiador e, por outro, subestimar sua tarefa de confrontar o próprio horizonte com o do passado. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

A realidade fundamental capaz de mediar essas distâncias é a linguagem. Nela o intérprete (ou tradutor!) traz novamente à fala o que compreendeu. Teólogos e poetólogos chegam a falar inclusive de acontecimentos de linguagem. Em certo sentido, a hermenêutica aproxima-se com isso, por seu próprio caminho, da filosofia analítica, provinda da crítica metafísica do neopositivismo. Desde que essa filosofia já não se atém a resolver de uma vez por todas o "feitiço da linguagem", mediante a análise dos modos de falar e trazendo todos os enunciados ao padrão da univocidade com a ajuda de linguagens simbólicas artificiais, ela tampouco pode evitar defrontar-se com o funcionar da linguagem nos jogos de linguagem, como mostraram as Investigações filosóficas de Wittgenstein  . K.O. Apel assinalou com razão que o conceito de "jogo de linguagem" só permite descrever, de modo descontínuo, a continuidade da tradição. À medida que a hermenêutica supera a ingenuidade positivista presente no conceito do dado (Gegebenes), através da reflexão sobre os condicionamentos da compreensão (compreensão prévia, prioridade da pergunta, história da motivação de cada enunciado), ela faz também uma crítica da reflexão metodológica positivista. Até que ponto ela segue o esquema da teoria transcendental   (K.O. Apel) ou antes a dialética histórica (J. Habermas) é um assunto controverso. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx   (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan   e P. Ricoeur  . O alcance da analogia   entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social "positivista" que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida   entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do "sentido". Apesar de Nietzsche  , buscar "sentido" na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

É próprio da universalidade do princípio hermenêutico precisar ser observado também pela lógica das ciências sociais. Assim, Habermas utilizou-se das análises da "consciência da história dos efeitos" e do modelo da "tradução", presentes em Verdade e método I, reconhecendo-lhe uma função positiva para a superação da rigidez positivista da lógica das ciências sociais e para sua fundamentação nos processos da linguagem, a qual historicamente continua irrefletida. Essa referência à hermenêutica portanto está expressamente a serviço dos pressupostos da metodologia das ciências sociais. Essa proposta distancia-se certamente da base tradicional da problemática hermenêutica formada pelas ciências do espírito estético-românticas, distância tomada por uma decisão prévia de grande alcance. É verdade que o estranhamento metodológico que constitui a essência da ciência moderna é usado também nas "humanities", e Verdade e método I jamais considerou como excludente a contraposição implícita em seu título. Mas o ponto de partida da análise foram as ciências do espírito, porque convergem com experiências onde não estão em questão método e ciência, mas experiências que se encontram fora da ciência, como a experiência da arte e a experiência da cultura cunhada pela sua tradição histórica. Em todas elas a experiência hermenêutica atua de modo igual, e como tal ela própria não se converte em objeto de estranhamento metodológico, mas precede-o na medida em que abre as perguntas à ciência, possibilitando assim o emprego de seus [239] métodos. Caso se reconheça a reflexão hermenêutica como indispensável (como ficou demonstrado em Verdade e método para o caso das ciências do espírito), as ciências sociais modernas, segundo Habermas, reivindicam, por intermédio de um "estranhamento controlado", elevar a compreensão "de um exercício pré-científico para o nível de um procedimento reflexivo", por assim dizer pelo "desenvolvimento metodológico da inteligência" (172-174). VERDADE E METODO II OUTROS 18.

Esse é o caminho que trilha a ciência, desde antigamente, a fim de alcançar, através de procedimentos ensináveis e controláveis, o que a inteligência individual às vezes também consegue, mesmo que de modo inseguro e não controlável. Se a conscientização das condições hermenêuticas presentes nas ciências da compreensão leva as ciências sociais — que não buscam "compreender" mas apreender cientificamente a estrutura real da sociedade pela inclusão das compreensibilidades que se alojam na estrutura da linguagem — a sistematizações metodológicas úteis ao seu trabalho, isso certamente é um ganho científico. Mas a reflexão hermenêutica não permitirá que aquelas lhe prescrevam uma obrigação de restringir-se a essa função científica imanente, e sobretudo não permitirá que lhe impeçam de aplicar novamente uma reflexão hermenêutica ao estranhamento metodológico da compreensão que move as ciências sociais, mesmo que isso provoque uma nova desvalorização positivista da hermenêutica. VERDADE E METODO II OUTROS 18.

No entanto, quando Habermas se guia pela análise da [240] compreensão prévia e dos condicionamentos essenciais dos preconceitos próprios a toda compreensão e ação humanas, a reivindicação que ele faz à hermenêutica é de caráter fundamentalmente diferente. E verdade que a consciência da história dos efeitos, que busca refletir sobre os próprios preconceitos e controlar sua própria compreensão prévia, desbanca o objetivismo ingênuo que falseia tanto a teoria positivista da ciência quanto a fundamentação fenomenológica e de análise da linguagem próprias das ciências sociais. Mas em que contribui essa reflexão? Aí está o problema da história universal, isto é, a idéia de uma meta da história que a ação social se representa como meta. Quando se contenta com considerações gerais que jamais ultrapassam os limites do próprio ponto de vista, a reflexão hermenêutica acaba se tornando estéril e infrutífera. É verdade que com essa consideração nega-se a pretensão de uma filosofía da historia baseada em conteúdos. Mas, apesar disso, a consciência histórica projetará sempre uma história universal pré-compreendida a partir de sua própria orientação ao futuro. De que serve conhecer seu caráter provisório e sua superabilidade essencial? VERDADE E METODO II OUTROS 18.

Nas áreas iniciais de meus estudos hermenêuticos, as ciências da arte e as ciências da história da filologia, é fácil demonstrar como a reflexão hermenêutica torna-se efetiva. Basta lembrar o abalo que a reflexão hermenêutica sobre o conceito de arte — ou sobre o conceito das épocas singulares ou de estilo — impingiu à autonomia que gozava a história dos estilos na consideração das ciências da arte; como a iconografia passou de uma posição marginal para uma posição de destaque, como a reflexão hermenêutica sobre os conceitos de vivência e expressão teve conseqüências na ciência da literatura — mesmo que apenas no sentido de dar um impulso mais consciente às tendências de investigação presentes de há muito (A ação recíproca também é ação). É óbvio e [248] natural que o abalo de preconceitos bem estabelecidos prometa progresso científico. Possibilita novas perguntas, e nós experimentamos constantemente o que pode alcançar a investigação histórica através da consciência da história dos conceitos. Nessas áreas, creio ter demonstrado como se intermedeia o estranhamento histórico pela figura da "fusão de horizontes". Devo ao lúcido trabalho de Habermas ter-me feito ver a contribuição hermenêutica no campo das ciências sociais, sobretudo pela confrontação da compreensão prévia da teoria positivista da ciência, mas também a de uma fenomenologia apriorística e de uma lingüística geral, com a dimensão hermenêutica. VERDADE E METODO II OUTROS 18.

Temos assim, de um lado, a semiótica e a lingüística, que criaram novos conhecimentos sobre o modo funcional e a estrutura dos sistemas de linguagem e dos sistemas de signos. E, de outro, a teoria do conhecimento, segundo a qual a linguagem fornece a todos o acesso ao mundo. Ambas as correntes atuam conjuntamente para fazer-nos ver desde uma nova ótica os pontos de partida de uma justificação filosófica de acesso científico ao mundo. Seu pressuposto era de que o sujeito domina a realidade empírica com uma autocerteza metodológica, graças aos recursos da construção racional matemática, expressando-a em forma de enunciados de juízo. Desse modo, realizou sua autêntica tarefa cognitiva, realização que culmina no simbolismo matemático, que serve para conferir uma validez geral à formulação da ciência natural. O mundo intermediário da linguagem fica idealmente em suspenso. Quando a linguagem se torna consciente como tal, então apresenta-se como a mediação primeira para o acesso ao mundo. Assim, se esclarece o caráter insuperável do esquema de mundo formulado na linguagem. O mito da autocerteza, que em sua forma apodíctica passou a ser a origem e a justificação de toda validez, e o ideal de fundamentação última, disputado pelo apriorismo e o empirismo, perdem sua credibilidade ante a prioridade e ineludibilidade do sistema da linguagem que articula toda consciência e todo saber. Nietzsche nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência. Freud   nos fez conhecer as admiráveis descobertas científicas que levaram a sério esta dúvida. E, da [339] crítica radical de Heidegger ao conceito de consciência, aprendemos a ver os pressupostos conceituais que procedem da filosofia grega do logos   e que na guinada moderna elevaram o conceito de sujeito ao primeiro plano. Tudo isso confere a primazia à "estrutura da linguagem" própria de nossa experiência de mundo. Frente às ilusões da autoconsciência e frente à ingenuidade de um conceito positivista dos fatos, o mundo intermediário da linguagem aparece como a verdadeira dimensão do real, do dado. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Aquele que, como leigo, quiser tomar posição frente ao desenvolvimento do problema hermenêutico no âmbito da discussão jurídica não poderá aprofundar-se unicamente no trabalho jurídico. Na visão de conjunto, ele irá observar que a jurisprudência se afasta amplamente do chamado positivismo legal. Irá considerar também que uma das questões centrais será saber até que ponto a concretização do direito representa um problema jurídico independente. Kurt Engisch (1953) desenvolveu uma panorâmica desse problema. O fato de esse problema ser colocado em primeiro plano, contrapondo-se ao extremismo do direito positivista, é compreensível também do ponto de vista histórico, por exemplo, na Privatrechtsgeschichte der Neuzeit   de Franz Wieacker ou no Methodenlehre der Rechtswissenschaft de Karl Larenz. Nos três âmbitos em que a hermenêutica de há muito desempenha algum papel, na ciência histórico-filológica, na teologia e na jurisprudência, pode-se constatar que a crítica ao objetivismo histórico e conseqüentemente ao "positivismo" deu uma nova significação ao aspecto hermenêutico. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

"Dilthey viu-se confrontado com uma questão que [396] Windelband e os outros não perceberam, uma vez que não aprofundaram suficientemente o problema: A questão de como é possível um conhecimento do particular, paralelamente e em diferenciação para com a experiência imediata. Ele responde a esta questão com a constatação de que um tal conhecimento não é possível e recai na convicção positivista, segundo a qual o universal (o verdadeiro objeto do conhecimento) somente seria passível de conhecimento com a ajuda das ciências da natureza ou de alguma outra ciência fundamentada em princípios naturalistas. Assim, tanto ele quanto toda sua geração não conseguem se evadir da influência do pensamento positivista" (184). VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

O ponto central da teoria sistemática do conhecimento histórico é, sem dúvida, a doutrina da reprodução da experiência do passado (Re-enactment). Com ela, situa-se no front daqueles que lutam contra "o que se pode chamar de interpretação positivista, ou melhor, mal-interpretação positivista do conceito de história" (239). A verdadeira tarefa dos historiadores seria "penetrar no pensamento dos que sustentam a história, cujas ações eles investigam". É difícil traduzir para o alemão e determinar corretamente o que Collingwood tem em mente aqui com o termo "pensar". O conceito de "ato" tem, em alemão, referências bem distintas das que o autor inglês tem em mente. A reprodução do pensamento das pessoas que atuam (ou também dos pensadores) não significa, em Collingwood, propriamente os reais atos psíquicos dos mesmos, mas seus pensamentos, isto é, o que, enquanto o mesmo, pode ser novamente pensado, em se voltando a pensar. O conceito do pensar deve abarcar também o que se chama de espírito comum (o que o tradutor chama, numa infeliz formulação, de "Gemeinschaftsgeist" "espírito de comunidade") de uma corporação ou de uma época (230). Mas é curioso como a vivacidade desse "pensar", quando por exemplo Collingwood considera a biografia como anti-histórica por não estar fundamentada no "pensar", mas num acontecimento da natureza. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Mas na verdade não apenas o legado do humanismo estético mas também o legado da antiga scientia practica vem reforçar a problemática da hermenêutica. Essa scientia se destacava como um modo de saber próprio (alio eidos   gnoseos) frente ao conceito de ciência da antiga episteme   (segundo o que se compreende por ciência hoje, só a matemática pode satisfazer a esse conceito) não só a partir de seu projeto originário na ética e política aristotélicas. Ela possui sua própria legitimidade — esquecida pela consciência geral — também frente ao conceito moderno de ciência e sua versão técnica. É tarefa da hermenêutica refletir inclusive sobre as condições especiais do saber que aqui são decisivas. No conceito de ethos   (formado sob a força conformadora dos nomoi, isto é, das instituições sociais e da educação que se dá nessas instituições), Aristóteles   resumiu as condições que facilitam o autêntico saber para a vita   practica. Isso teve também sua importância no presente, uma vez que os melhores aliados de uma hermenêutica da facticidade foram justamente esses aspectos críticos da filosofia aristotélica contra a teoria platônica das idéias. Mas, além disso, são testemunhos inequívocos de que as condições sociais de nosso saber podem interferir no ideal da ciência sem pressupostos. Assim, também o exame desse ideal da ausência de pressupostos pertence às tarefas de uma reflexão hermenêutica radical. Não se deve esquecer aqui o impulso liberador que expressa o mote de [434] uma ciência sem pressupostos (expressão que tem sua origem na situação de luta cultural, após 1870). Esse impulso anima   e sustenta também o movimento do Iluminismo e sua prolongação na ciência moderna. Mas a ingenuidade irresponsável que denota a aplicação desse termo no campo específico das ciências históricas e sociais fica patente não somente no utopismo das conseqüências das ciências sociais e das aplicações concretas derivadas da teoria da ciência do "círculo de Viena", como também e sobretudo nas graves aporias em que se enredou a teoria neopositivista da ciência com sua doutrina sobre as proposições protocolares. O historicismo ingênuo inspirado na escola de Viena encontrou assim uma resposta adequada na crítica de Karl Popper à teoria da ciência. De modo semelhante, os trabalhos de Horkheimer e Habermas sobre crítica da ideologia puseram a descoberto as implicações ideológicas subjacentes na teoria positivista do conhecimento e sobretudo em seu pathos   científico-social. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.

Mas a interpretação não se limita aos textos e à compreensão histórica que neles se deve alcançar. Todas as estruturas de sentido concebidas como textos, desde a natureza (interpretatio naturae, [435] Bacon), passando pela arte (cuja carência de conceitos [Kant  ] converte-se em exemplo preferencial de interpretação [Dilthey]), até as motivações conscientes ou inconscientes da ação humana, são suscetíveis de interpretação. Essa pretende mostrar não o que é óbvio mas as verdadeiras e latentes concreções de sentido da ação humana, mesmo que o faça revelando o ser real de cada um como o ser de sua própria história (P. Ricoeur), mostrando assim que os condicionamentos sociais e históricos determinam imperceptivelmente nosso pensamento. A psicanálise e a crítica da ideologia, como inimigos a se enfrentar ou aliados em uma síntese cética ou utópica (Adorno, Marcuse), devem submeter-se ainda a uma reflexão hermenêutica. Isso porque o que eles assim descobrem e compreendem não é independente da situação do intérprete. Nenhum campo interpretativo se dá aleatoriamente e muito menos "objetivamente". A reflexão hermenêutica mostra ao objetivismo do historicismo e da teoria positivista das ciências que eles agem a partir de pressupostos ocultos determinantes. Sobretudo a sociologia do saber e a crítica marxista da ideologia demonstraram aqui sua fecundidade hermenêutica. O valor cognitivo dessas interpretações só pode ser garantido mediante uma consciência crítica e uma reflexão da história dos efeitos. O fato de não possuírem a objetividade da science não desmerece seu valor cognitivo. Mas é só uma reflexão hermenêutica crítica, atuante nelas consciente ou inconscientemente, que faz aflorar sua verdade. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.

A hermenêutica filosófica permite ver que o sujeito conhecente está indissoluvelmente unido ao que se lhe abre e se mostra como dotado de sentido. Além de fazer a crítica ao objetivismo da história e ao ideal do conhecimento positivista do fisicalismo, que a unity of science pretende fundamentar com o método unitário da física, a hermenêutica critica também a tradição da metafísica. Uma das teses básicas da metafísica, a saber, o ser e o verdadeiro, em princípio, são o mesmo, torna-se insustentável. Ser e verdadeiro são o mesmo para o intelecto infinito da divindade, cuja omnipresença a metafísica concebe como a atualidade de tudo o que é. Esse sujeito absoluto não é nem sequer um ideal aproximativo para o modo de ser finito e histórico do ser humano e de suas possibilidades de conhecimento. Isso porque não identificar-se com o presente é uma das características ontológicas do sujeito conhecente. Ele tampouco se identifica com o futuro e com o passado que o determina. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.

Quando em 1959 concluí o presente livro, estava em dúvida se este não tinha vindo "tarde demais", ou seja, se o balanço do pensamento sobre a história da tradição empreendido nele já não se havia tornado quase supérfluo. Multiplicavam-se os sinais de uma nova onda de inimizades tecnológicas à história. Correspondia também a essa onda a crescente recepção da teoria da ciência e da filosofia analítica anglo-saxônicas assim como o novo impulso que tomaram as ciências sociais. E entre elas sobretudo a psicologia social e a lingüística social não prometiam nenhum futuro para a tradição humanista das ciências românticas do espírito. Mas era essa a tradição da qual eu havia partido. Ela representava o solo experimental de meu trabalho teórico, mesmo que não representasse seu limite nem seu objetivo. Mas mesmo no âmbito das ciências histórico-clássicas do espírito já não se podia deixar de reconhecer uma mudança de estilo na direção dos novos meios metodológicos da estatística, da formalização, uma urgência no sentido de um planejamento científico e uma organização técnica de pesquisa. Estava-se abrindo caminho para uma nova autocompreensão "positivista", estimulada pela adoção de métodos e questionamentos americanos e ingleses. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.