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Gadamer (VM): dialética

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A conhecida polêmica de Hegel   contra “a coisa em si” kantiana pode tornar isto mais claro. A delimitação crítica da razão, por Kant  , tinha restringido a aplicação das categorias aos objetos da experiência possível, declarando incognoscível, por princípio, a coisa em si, que subjaz aos fenômenos. A argumentação DIALÉTICA de Hegel argúi contra isso que a razão, ao pôr este limite e distinguir o fenômeno da coisa em si, manifesta na realidade esta diferença como sua própria. Com isso, não chega a um limite de si mesma, porém, na medida em que estabelece este limite, continua permanecendo por inteiro dentro de si. Pois isso significa que já o superou. O que faz um limite ser tal implica sempre simultaneamente aquilo em relação ao qual se delimita o que foi delimitado pelo dito limite. A DIALÉTICA do limite se caracteriza por ser somente enquanto se supera. Da mesma maneira, o ser em si que caracteriza a coisa em si, em diferenciação à sua manifestação, somente é em si para nós. O que na DIALÉTICA do limite aparece em sua generalidade lógica, se especifica para a consciência na experiência de que o ser em si, diferenciado dela, é o outro de si mesma, e que somente é conhecido na sua verdade, quando é conhecido como si-mesmo, ou seja, quando sabe a si mesmo na perfeita autoconsciência absoluta. Mais tarde examinaremos a razão e os limites dessa argumentação. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

A refutação mítica de Platão   ao sofisma dialético, por mais evidente que pareça, não pode satisfazer, todavia, um pensamento moderno. Para Hegel já não há fundamentação mítica da filosofia. Para ele o mito pertence à pedagogia. Em última análise é a razão que se fundamenta a si mesma. E na medida em que Hegel elabora a DIALÉTICA da reflexão como a automediação total da razão, eleva-se também ele acima do formalismo argumentativo que, de acordo com Platão, chamamos sofístico. Por isso, sua DIALÉTICA contra a argumentação vazia do entendimento, que ele chama “a reflexão externa”, não é menos polêmica que a do Sócrates   platônico. Por esse motivo, a confrontação com ele é tão importante para o problema hermenêutico. Pois a filosofia do espírito de Hegel pretende oferecer uma mediação total da história e do presente. Nela não se trata de um formalismo da reflexão, mas do mesmo tema a que devemos nos ater também nós. Hegel pensou até o final a dimensão histórica, na qual tem suas raízes o problema da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Evidentemente que para Hegel o caminho da experiência da consciência tem que conduzir necessariamente a um saber-se a si mesmo que já não tem nada diferente nem estranho fora de si. Para ele a consumação da experiência é a “ciência”, a certeza de si mesmo no saber. O padrão a partir do qual pensa a experiência é, portanto, o do saber-se. Por isso a DIALÉTICA da experiência tem de culminar na superação de toda experiência, que se alcança no saber absoluto, isto é, na consumada identidade de consciência e objeto. A partir daí poderemos compreender por que não faz justiça à consciência hermenêutica a aplicação que Hegel faz à história, quando considera que esta é concebida na autoconsciência absoluta da filosofia. A essência da experiência é pensada aqui, desde o princípio, a partir de algo no qual a experiência já está superada. Pois a própria experiência jamais pode ser ciência. Está em uma oposição insuperável com o saber e com aquele ensinamento que flui de um saber geral teórico ou técnico. A verdade da experiência contém sempre a referência a novas experiências. Nesse sentido a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências. A consumação de sua experiência, o ser pleno   daquele a quem chamamos experimentado, não consiste em ser alguém que já conhece tudo, e que de tudo sabe mais que ninguém. Pelo contrário, o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que, precisamente por ter feito tantas experiências e aprendido graças a tanta experiência, está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e delas aprender. A DIALÉTICA da experiência tem sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Uma segunda maneira de experimentar e compreender o tu consiste em que este é reconhecido como pessoa, mas, apesar de incluir a pessoa na experiência do tu, a compreensão deste continua sendo um modo da referência a si mesmo. Esta auto-referência procede da aparência DIALÉTICA que a DIALÉTICA da relação-eu-tu leva consigo. A relação entre o eu e o tu não é imediata, mas reflexiva. A toda pretensão se lhe impõe uma contrapretensão. Assim surge a possibilidade de que cada parte da relação salte reflexivamente por sobre a outra. Ele pretende conhecer por si mesmo a pretensão do outro e inclusive de entendê-lo melhor que ele mesmo se entende. Com isso o tu perde a imediatez com que orienta suas pretensões a respeito de alguém. É compreendido, mas no sentido de que é antecipado e aprendido reflexivamente a partir da posição do outro. Na medida em que esta é uma relação recíproca, perfaz também a realidade da relação-eu-tu. A historicidade interna de todas as relações vitais entre os homens consiste em que, consequentemente, se está lutando pelo reconhecimento recíproco. Este pode adotar graus muito diversos de tensão, até chegar inclusive ao completo domínio de um eu por outro eu. Mas inclusive as formas mais extremas de domínio e servidão são uma autêntica relação DIALÉTICA da estrutura elaborada por Hegel. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

A experiência do tu, que assim se adquire, é objetivamente mais adequada que o conhecimento das pessoas, que só procura calcular sobre eles. É uma pura ilusão ver no outro um instrumento completamente dominável e manejável. Inclusive no servo há uma vontade de poder que se volta contra o senhor, como acertadamente o expressou Nietzsche  . Todavia, esta DIALÉTICA da reciprocidade que domina toda a relação-eu-tu permanece necessariamente oculta para a consciência do indivíduo. O servo que tiraniza o senhor com a sua própria servidão não crê, de modo algum, que nisto se busca a si mesmo. E mais, a própria autoconsciência consiste justamente em subtrair-se à DIALÉTICA desta reciprocidade, retirar-se reflexivamente desta relação com o outro e tornar-se assim inacessível para ele. Quando se compreende o outro e se pretende conhecê-lo, se lhe subtrai, na realidade, toda a legitimação de suas próprias pretensões. Em particular isto é válido para a DIALÉTICA da assistência social, na medida em que penetra todas as relações inter-humanas como uma forma reflexiva de impulso para o domínio. A pretensão de compreender o outro, antecipando-se-lhe, cumpre a função de manter, na realidade, a distância a pretensão do outro. Isto é bem conhecido, por exemplo, na relação educadora, uma forma autoritária da assistência social. A DIALÉTICA da relação-eu-tu se torna mais aguda nessas formas reflexivas. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Esta é a razão pela qual a DIALÉTICA realiza nos moldes de perguntas e respostas, ou melhor, que todo saber passa pela pergunta. Perguntar quer dizer colocar no aberto. A abertura do perguntado consiste em que não está fixada a resposta. O perguntado tem de pairar no ar frente a qualquer sentença constatadora e decisória. O sentido do perguntar consiste em colocar em aberto o perguntado em sua questionabilidade. Ele tem de ser colocado em suspenso de maneira que se equilibrem o pró e o contra. O sentido de qualquer pergunta só se realiza na passagem por essa suspensão, na qual se converte em uma pergunta aberta. Toda verdadeira pergunta requer essa abertura, e quando falta, ela é, no fundo, uma pergunta aparente que não tem o sentido autêntico da pergunta. Algo disso nós conhecemos, por exemplo, na pergunta pedagógica, cuja especial dificuldade e paradoxo consiste em que são uma pergunta sem que haja alguém que realmente pergunte. O mesmo acontece na pergunta retórica, na qual não somente não há quem pergunte, mas que nem sequer há algo realmente perguntado. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Conhecemos isto sobretudo da DIALÉTICA medieval, que não somente levantava os prós e os contras, e a seguir, dava a própria decisão mas que acabava colocando o conjunto dos argumentos no seu lugar. Esta forma da DIALÉTICA medieval não é uma simples consequência do sistema docente da disputatio, mas, ao inverso, repousa sobre a conexão interna de ciência e DIALÉTICA, isto é, de resposta e pergunta. Há uma famosa passagem da Metafísica aristotélica, que suscitou muitas discussões e que se explica a partir desse nexo. Aristóteles   diz, lá, que a DIALÉTICA é a capacidade de investigar o contrário, inclusive independentemente do quê, e (de investigar) se para coisas contrárias pode existir uma e a mesma ciência. Nesse ponto parece que uma característica geral da DIALÉTICA (que corresponde perfeitamente ao que encontramos no Parmênides   de Platão), está ligada com um problema “lógico” muito especial, que conhecemos através da Tópica. Parece ser realmente uma pergunta muito especial, saber se é possível uma mesma ciência para coisas opostas. Procurou-se, por isso, descartar esta questão como glosa. Na verdade, o nexo entre as duas perguntas torna-se claro, logo que constatarmos a primazia da pergunta sobre a resposta, que subjaz ao conceito do saber. Saber quer dizer sempre: entrar ao mesmo tempo no contrário. Nisso consiste sua superioridade frente ao deixar-se levar pela opinião  , que sabe pensar possibilidades como possibilidades. O saber é fundamentalmente dialético. Somente pode possuir algum saber aquele que tem perguntas, mas as perguntas compreendem sempre a oposição do sim e do não, do assim e do diverso. Somente porque o saber é dialético nesse sentido abrangente, pode haver uma “DIALÉTICA” que tome explicitamente como objeto a oposição do sim e do não. A pergunta aparentemente demasiado especial, pela possibilidade de uma mesma ciência para os opostos contém, portanto, objetivamente a base da possibilidade da DIALÉTICA em geral. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Também a teoria aristotélica da demonstração e da conclusão — consoante a questão em causa, a degradação da DIALÉTICA a um momento subordinada do conhecimento — permite reconhecer esta mesma primazia da pergunta, como mostraram brilhantemente e de modo especial, as constatações de Ernst   Kapp sobre a gênese da silogística aristotélica. Na primazia da pergunta para a essência do saber, mostra-se da maneira mais originária aquele limite da ideia do método para o saber, que foi o ponto de partida de todas as nossas reflexões. Não há método que ensine a perguntar, a ver o que é o questionável. O exemplo de Sócrates ensina que nisso tudo depende de que se saiba que não se sabe. A DIALÉTICA socrática, que conduz a esse saber através de sua arte de desconcertar, cria, com isso, os pressupostos para o perguntar. Todo perguntar e todo querer saber pressupõem um saber que não se sabe, mas de maneira tal que é um não saber determinado o que conduz a uma pergunta determinada. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Essas observações pareceriam contraditas pelo fato de que na DIALÉTICA socrático-platônica a arte do perguntar se eleva a um domínio consciente. Não obstante, também esta arte é uma coisa peculiar. Já havíamos visto que ela está reservada àquele que quer saber, isto é, àquele que já tem perguntas. A arte de perguntar não é a arte de esquivar-se da coerção das opiniões; ela pressupõe essa liberdade. Nem sequer é uma arte no sentido em que os gregos falavam de techne  , não é um saber que se possa ensinar e através do qual podemos nos apoderar do conhecimento da verdade. O chamado excurso epistemológico da sétima carta está orientado, antes, precisamente no sentido de destacar esta arte peculiar da DIALÉTICA em seu caráter único, face a tudo o que se pode ensinar e aprender. A arte da DIALÉTICA não é a arte de ganhar de todo mundo na argumentação. Pelo contrário, é perfeitamente possível que aquele que é perito na arte DIALÉTICA, isto é, na arte de perguntar e buscar a verdade, apareça aos olhos de seus ouvintes como o menos indicado a argumentar. A DIALÉTICA, como arte do perguntar, só pode se manter, se aquele que sabe perguntar é capaz de manter em pé suas perguntas, isto é, a orientação para o aberto. A arte de perguntar é a arte de continuar perguntando; isso significa, porém, que é a arte de pensar. Chama-se DIALÉTICA porque é a arte de conduzir uma autêntica conversação. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Para desenvolver uma conversação é necessário, em primeiro lugar, que os interlocutores não passem ao largo um do outro na conversação. É por isso que possui, necessariamente, a estrutura de pergunta e resposta. A primeira condição da arte da conversação é nos assegurarmos de que o interlocutor nos acompanhe no mesmo passo. Isso nos é bem conhecido pelas constantes respostas afirmativas dos interlocutores do diálogo platônico. O lado positivo dessa monotonia é a correctura sequencial interna com a qual no diálogo prossegue o desenvolvimento do tema. Levar uma conversação quer dizer pôr-se abaixo da direção do tema, acerca do qual se orientam os interlocutores. Requer não abafar o outro com argumentos, mas, pelo contrário, sopesar realmente o peso objetivo da opinião contrária. Por isso, é uma arte do ir experimentando. No entanto, a arte de ir experimentando é a arte de perguntar; pois já vimos que perguntar quer dizer colocar aberto e postar no aberto. Contra a firmeza das opiniões, o perguntar põe em suspenso o assunto com suas possibilidades. Aquele que possui a “arte” de perguntar sabe defender-se do modo de perguntar repressor que a opinião dominante mantém. Aquele que possui esta arte irá, ele próprio, buscar tudo o que possa ser a favor de uma opinião. A DIALÉTICA consiste não na tentativa de buscar o ponto fraco do que foi dito, mas, antes, em encontrar sua verdadeira força. Por consequência não entende, com isso, aquela arte de falar e argumentar que é capaz de tornar forte uma coisa fraca, mas a arte de pensar que é capaz de reforçar o que foi dito, a partir da própria coisa. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

A esta arte de reforçar é que os diálogos platônicos devem sua surpreendente atualidade. Pois nela, o que foi dito transforma-se sempre nas possibilidades extremas de seu direito e de sua verdade, e sobrepuja toda contra-argumentação que pretenda pôr limites à vigência de seu sentido. Evidentemente, que aí não se trata de um mero deixar as coisas como estão. Pois aquele que quer conhecer não pode deixar o assunto na versão de simples opiniões, isto é, não lhe é permitido distanciar-se das opiniões que estão em questão. Aquele que fala é sempre, ele mesmo, aquele que se põe a falar até que apareça por fim a verdade daquilo de que se fala. A produtividade maiêutica do diálogo socrático, sua arte de parturiente da palavra orienta-se, obviamente, às pessoas humanas que constituem os companheiros do diálogo, porém limita-se a manter-se nas opiniões que estes exteriorizam e cuja consequência imanente e objetiva desenvolve-se no diálogo. O que vem à tona, na sua verdade, é o logos  , que não é nem meu nem teu, e que por isso sobrepuja tão amplamente a opinião subjetiva dos companheiros de diálogo, que inclusive aquele que o conduz permanece sempre como aquele que não sabe. A DIALÉTICA, como arte de conduzir uma conversação, é ao mesmo tempo a arte de olhar juntos na unidade de uma perspectiva (auvopav eia ev   a Soa) isto é, a arte da formação de conceitos como elaboração da intenção comum. O que caracteriza a conversação, face à forma endurecida das proposições que urgem sua fixação escrita, é precisamente que, aqui, em perguntas e respostas, no dar e tomar, no passar ao largo de outro na conversa e no pôr-se de acordo, a língua realiza aquela comunicação de sentido cuja elaboração artística face à tradição literária, é a tarefa da hermenêutica. Por isso, quando a tarefa hermenêutica é concebida como um entrar em diálogo com o texto, isso é algo mais que uma metáfora, é uma verdadeira recordação do originário. O fato de que a interpretação que produz isso se realiza linguisticamente, não quer dizer que se veja deslocada a um médium estranho, mas, ao contrário, que se restabelece uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma literária é assim recuperado, a partir do alheamento em que se encontrava, ao presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

O caráter original da conversação, como mútua referência de pergunta e resposta, mostra-se inclusive num caso tão extremo como o que representa a DIALÉTICA hegeliana em sua condução de método filosófico. O desenvolvimento da totalidade da determinação do pensar como era o interesse   da lógica hegeliana é também a tentativa de abranger, no grande monólogo do “método” moderno, a continuidade de sentido que se realiza particularmente, a cada vez, na conversação dos que falam. Quando Hegel impõe a tarefa de tornar fluidas e de dar alma às determinações abstratas do pensar, isso significa refundir a lógica na forma de realização da linguagem, o conceito da força de sentido da palavra que pergunta e responde; mesmo no seu fracasso, isso foi uma grandiosa recordação do que era e é a DIALÉTICA. A DIALÉTICA hegeliana é um monólogo do pensar que procura produzir, adiantadamente, o que pouco a pouco vai amadurecendo em cada conversação autêntica. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

A DIALÉTICA de pergunta e resposta que descobrimos na estrutura da experiência hermenêutica nos permitirá agora determinar mais detidamente a classe de consciência que é a consciência da história efeitual. Pois a DIALÉTICA de pergunta e resposta que pusemos a descoberto permite que a relação da compreensão se manifeste como uma relação recíproca, semelhante à de uma conversação. É verdade que um texto não nos fala como o faria um tu. Somos nós, os que o compreendemos, os que temos de trazê-lo à fala, a partir de nós. No entanto, já vimos que este trazer-à-fala, próprio da compreensão, não é uma intervenção arbitrária, nascida de origem própria, mas está referida, enquanto pergunta, à resposta latente no texto. A latência de uma resposta pressupõe, por sua vez, que aquele que pergunta é alcançado e interpelado pela própria tradição. Esta é a verdade da consciência da história efeitual. A consciência com experiência histórica, na medida em que nega o fantasma de um esclarecimento total, justo por isso, está aberta para a experiência da história. Descrevemos sua maneira de realizar-se como a fusão de horizontes do compreender que faz a intermediação entre o texto e seu intérprete. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Em si, todo escrito levanta a pretensão de ser alentado por si mesmo no linguístico, e esta pretensão de autonomia de sentido vai tão longe que inclusive uma leitura autêntica, por exemplo, a de um poema pelo seu autor se torna questionável, no momento em que a intenção dos ouvintes se afasta do ponto a que nós, como aqueles que compreendem, realmente estamos orientados. Posto que o que importa é a comunicação do verdadeiro sentido de um texto, sua interpretação se encontra submetida a uma norma que se pauta no assunto em questão. E esta a exigencia que coloca a DIALÉTICA platônica, quando procura fazer valer o logos como tal, e deixa, às vezes, para trás o seu companheiro real de diálogo no curso desse empenho. E mais, a debilidade específica da escrita, sua maior necessidade de auxílio, em comparação com o falar vivo, tem como reverso o fato de que faz sobressair a tarefa hermenêutica da compreensão com dobrada clareza. Tal como na conversação, também aqui a compreensão tem que tentar fortalecer o sentido do que foi dito. O que se diz no texto tem de ser despojado de toda a contingência que — lhe é inerente, e entendido na plena idealidade em que unicamente tem seu valor. Por isso a fixação por escrito permite que o leitor compreensivo possa erigir-se em advogado de sua pretensão de verdade, precisamente porque separa por completo o sentido do enunciado aquele que enuncia. É assim como o leitor experimenta, em sua validez, o que lhe fala e o que ele compreende. Por sua vez, aquilo que ele compreendeu será sempre mais que uma opinião estranha: já será sempre uma possível verdade. Isto é o que emerge em virtude da liberação do dito com respeito a quem o disse e em virtude do status de duração que lhe confere a escrita. E o fato de que pessoas pouco acostumadas à leitura nunca cheguem inteiramente à suspeita de que algo escrito possa ser falso, tem, como já vimos , uma razão hermenêutica profunda, pois para eles todo escrito é uma espécie de documento que se avaliza a si mesmo. VERDADE E MÉTODO PARTE III 1

Mas também o limite da teoria da semelhança é claro: não se pode criticar a linguagem por referência às coisas, no sentido de que as palavras não as reproduziram corretamente. A linguagem não está aí como um simples instrumento de que lançamos mão, ou que construímos para nós, com o fim de comunicar e fazer distinções com ele. Ambas as interpretações das palavras partem de sua existência e de sua manualidade e deixam estar as coisas como o que é conhecido de antemão. Justamente por isso, elas já de antemão começam demasiado tarde. Teríamos de nos perguntar se Platão, ao mostrar a insustentabilidade interna dessas duas posições extremas, procura na realidade questionar um pressuposto que lhes seja comum. Na minha opinião, a intenção de Platão é muito clara, e creio que nunca se poderá acentuar isto suficientemente, face à interminável usurpação de Crátilo a favor dos problemas sistemáticos da filosofia da linguagem: com essa discussão das teorias linguísticas contemporâneas, Platão pretende mostrar que na linguagem, na pretensão da correctura linguística (orthotes   ton onomaton), não se pode alcançar nenhuma verdade pautada na coisa (aletheia   ton onton), e o ente tem de ser conhecido sem as palavras (aneu ton onomaton), puramente a partir dele mesmo (auto ex eauton) (Crátilo, 438a-439b). Com isso se desloca radicalmente o problema para um novo nível. A DIALÉTICA, a que aponta esse contexto, pretende evidentemente confiar o pensamento a si mesmo e a seus verdadeiros objetos (Gegenstände), abrindoas “ideias”, de maneira tal que, com isso, se supere o poder das palavras (dynamis   ton onomaton) e sua tecnificação demoníaca na arte da argumentação sofística. A superação do âmbito das palavras (onomata), pela DIALÉTICA não quer dizer, obviamente, que exista realmente um conhecimento isento de palavras, mas, unicamente, que o que abre o acesso à verdade não é a palavra, mas pelo contrário: que a “adequação” da palavra só se poderia julgar a partir do conhecimento das coisas. VERDADE E MÉTODO PARTE III 2

Não obstante, há uma segunda coisa que pode nos ensinar esse pensamento escolástico. A diferença entre a unidade da palavra divina e a multiplicidade das palavras humanas não esgota a questão. Ao contrário, unidade e multiplicidade mantêm entre si uma relação fundamentalmente DIALÉTICA. A DIALÉTICA dessa relação domina por inteiro a essência da palavra. Tampouco convém manter esse conceito da multiplicidade completamente afastado da palavra divina. É verdade que a palavra divina é realmente uma só palavra, que veio ao mundo na forma do redentor, mas, na medida em que continua sendo um acontecer — o que é verdade, apesar de todo o rechaçar da subordinação, como já vimos — , continua existindo uma relação essencial entre a unidade da palavra divina e sua manifestação na Igreja. A proclamação da salvação, o conteúdo da mensagem cristã, é, por sua vez, um acontecer de natureza própria no sacramento e na prédica, e tão-somente expressa aquilo que ocorreu no ato redentor de Cristo. Nessa medida, continua sendo uma única palavra, a que sempre de novo se proclama na prédica. É evidente que no seu caráter de mensagem, existe já uma alusão à multiplicidade de sua proclamação. O sentido da palavra não pode separar-se do acontecer dessa proclamação. O caráter de acontecer faz parte, antes, do próprio sentido. É como numa maldição, que evidentemente não se pode separar do fato de que é dita por alguém e contra alguém. O que se pode compreender nela não é, em caso algum, um sentido lógico do enunciado, passível de ser abstraído, mas a maldição que nela tem lugar. O mesmo ocorre com a unidade e a multiplicidade da palavra que a Igreja anuncia. A morte na cruz e a ressurreição de Cristo são o conteúdo da mensagem da salvação que é pregada em todo sermão. O Cristo ressuscitado e o Cristo da prédica são um e o mesmo. A moderna teologia protestante desenvolveu com particular intensidade o caráter escatológico da fé que repousa nessa relação DIALÉTICA. VERDADE E MÉTODO PARTE III 2

Isso se testemunha também, se nos recordarmos da análise do epagogé. Já vimos que Aristóteles, aqui, deixa aberto, de maneira muito engenhosa, o problema de como chegam a se formar na realidade os conceitos gerais. Agora reconhecemos que, com isso, ele faz justiça ao fato de que a formação natural dos conceitos da linguagem já está sempre em ação. Por isso a conceituação linguística possui também, segundo Aristóteles, uma liberdade inteiramente não dogmática; o que na experiência se destaca como comum entre o que nos vem ao encontro e o que se erige em generalidade, tem o caráter de um mero desempenho precedente que está, obviamente, no começo da ciência, mas que não é ainda ciência. Isso é o que Aristóteles traz ao primeiro plano. Na medida em que a ciência preconiza como ideal   o poder coativo da demonstração, está obrigada a ir mais além desse procedimento. Por isso Aristóteles critica, a partir de seu ideal da demonstração, tanto a doutrina comum de Speusipo como a DIALÉTICA diairética de Platão. VERDADE E MÉTODO PARTE III 2

É evidente que essa rememoração não nos faz falta, quando se observa a história da filosofia. Já vimos como no pensamento medieval a relevância teológica do problema linguístico aponta, uma ou outra vez, para a unidade de pensar e falar e traz assim ao primeiro plano um momento que a filosofia grega clássica todavia não tinha pensado assim. O fato de que a palavra seja um processo, em que chega à sua plena expressão a unidade do intencionado — como é pensado na especulação sobre o verbo — é, face à DIALÉTICA platônica do uno e do múltiplo, algo verdadeiramente novo. Para Platão o logos se movia, ele mesmo, no interior dessa DIALÉTICA, e não era nada além do que o padecer a DIALÉTICA das ideias. Nisso não há um verdadeiro “problema da interpretação”, na medida em que os meios da mesma, a palavra e o discurso, estão sendo constantemente superados pelo espírito que pensa. Diferentemente disso, encontramos que na especulação trinitaria o processo das pessoas divinas encerra em si o questionamento neoplatônico sobre o desenvolvimento, isto é, o surgir a partir do uno, com o que se faz justiça, pela primeira vez, ao caráter processual da palavra. Não obstante, o problema da linguagem somente poderia irromper com toda a sua força, quando a mediação escolástica de pensamento cristão e filosofia aristotélica se completasse com um novo momento, que daria uma mudança de rumo positiva à distinção entre o pensamento divino e humano, mudança que alcançaria na idade moderna a maior significação. É o comum do criacional. E, na minha opinião, é esse o conceito que caracteriza mais adequadamente a posição de Nicolau de Cusa, que nos últimos tempos está sendo estudada tão intensamente. VERDADE E MÉTODO PARTE III 2

Somente agora chegamos, por fim, ao verdadeiro solo e fundamento do grande enigma dialético do uno e do múltiplo, que deu o que fazer a Platão, como antagonista do logos, e que experimentou uma tão misteriosa confirmação na especulação trinitaria da Idade Média. Era somente um primeiro passo, quando Platão se deu conta de que a palavra da linguagem é ao mesmo tempo una e múltipla. É sempre uma palavra que nós dizemos uns aos outros e que nos é dita (teologicamente: “a palavra de Deus”), mas a unidade dessa palavra desdobra-se a cada vez, como vimos, no falar articulado. Essa estrutura do logos e do verbo, tal como a reconhece a DIALÉTICA platônica e agostiniana, não é senão o reflexo de seus conteúdos lógicos. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Nessa direção já aponta o papel que desempenha o conceito da DIALÉTICA na filosofia do século XIX. É um testemunho da continuidade do nexo de problemas desde sua origem grega. Para nós que estamos emaranhados nas aporias do subjetivismo, os gregos nos levam uma certa vantagem no que se refere a conceber os poderes supra-subjetivos que dominam a história. Eles não procurarão fundamentar a objetividade do conhecimento a partir da subjetividade e para ela. Ao contrário, seu pensamento considerou-se sempre, desde o princípio, como um momento do próprio ser. Nele viu Parmênides o guia mais importante para o caminho rumo à verdade do ser. A DIALÉTICA, esse antagonista do logos, não era para os gregos, como já dissemos, um movimento que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa que aquele percebe. Que isso soe a Hegel não implica uma falsa modernização, mas atesta um nexo histórico. Na situação do novo pensamento, tal como o caracterizamos, Hegel assume conscientemente o modelo da DIALÉTICA grega . Por isso, aquele que queira ir à escola dos gregos, já terá sempre passado pela escola de Hegel. Tanto sua DIALÉTICA das determinações do pensamento, como a das formas do saber, refazem, numa realização expressa, a mediação total de pensamento e ser, que sempre foi o elemento natural do pensamento grego. Se nossa teoria hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer e compreender, terá de retroceder não somente até Hegel, mas também até Parmênides. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Se quisermos determinar corretamente o conceito de pertença, de que se trata aqui, será conveniente que observemos a DIALÉTICA peculiar, contida no ouvir. Não se trata somente de que aquele que ouve é de algum modo interpelado. Antes, nisso está o fato de que quem é interpelado tem de ouvir, queira ou não. Não pode apartar seus ouvidos, tal como se aparte a vista de outra coisa, olhando numa determinada direção. Essa diferença entre ver e ouvir é para nós importante, porque ao fenômeno hermenêutico subjaz uma verdadeira primazia do ouvir, como Aristóteles já reconhece. Não há nada que não seja acessível ao ouvido através da linguagem. Enquanto nenhum dos demais sentidos participa diretamente na universalidade da experiência linguística do mundo, já que cada um deles abarca tão-somente o seu campo específico, o ouvir é um caminho rumo ao todo, porque está capacitado para escutar o logos. À luz da nossa colocação hermenêutica, esse velho conhecimento da primazia do ouvir sobre o ver alcança um peso novo. A linguagem, na qual o ouvir participa, não é somente universal no sentido de que nela tudo pode vir à fala. O sentido da experiência hermenêutica reside, antes, no fato de que, face a todas as formas de experiência no mundo, a linguagem põe a descoberto uma dimensão completamente nova, uma dimensão de profundidade, a partir da qual a tradição alcança os que vivem no presente. Tal é a verdadeira essência do ouvir, já desde tempos remotos, e inclusive antes da escrita: O ouvinte está capacitado a ouvir a lenda, o mito, a verdade dos antepassados. A transmissão literária da tradição, como a conhecemos, não significa, face a isso, nada de novo, apenas altera a forma e dificulta a tarefa do verdadeiro ouvir. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Para descrever o verdadeiro método, que é o fazer da própria coisa, Hegel se reporta, por sua vez, a Platão, que gosta de apresentar o seu Sócrates em conversação com os jovens, porque estes estão dispostos a seguir as perguntas consequentes de Sócrates, sem fazer caso das opiniões reinantes. Ele ilustra seu próprio método do desenvolvimento dialético com esses “jovens flexíveis”, que se abstêm de se imiscuir no curso da coisa e não alardeiam sobre as ideias que lhes ocorrem. DIALÉTICA não é aqui mais que a arte de conduzir uma conversação e, sobretudo, de descobrir a inadequação das opiniões que dominam uma pessoa, formulando consequentemente perguntas e mais perguntas. A DIALÉTICA é aqui, portanto, negativa, ela desconcerta as opiniões. Mas este desconcerto é ao mesmo tempo um esclarecimento, pois libera o olhar e lhe permite orientar-se adequadamente para a coisa. Tal como na conhecida cena do Ménon, o escravo é conduzido desde o seu desconcerto até a verdadeira solução do problema matemático que lhe colocam — uma vez que lhe falharam, uma após a outra, todas as opiniões prévias e insustentáveis — , toda negatividade DIALÉTICA contém uma espécie de desenho objetivo prévio do que é verdade. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

E não somente na conversação pedagógica, mas em todo pensamento, a única coisa que deixa emergir o que há na coisa é a perseguição de sua consequência objetiva. A própria coisa consegue fazer-se valer, na medida em que nos entregamos por completo à força do pensar e não deixamos valer as ideias e opiniões que pareciam lógicas e naturais. Platão une a DIALÉTICA eleática, que conhecemos sobretudo por Zenão  , com a arte socrática da conversação, e a eleva em seu Parmênides, a uma nova etapa da reflexão. O fato de que, na consequência do pensamento, a coisa se inverta sob nossa mão e se converta em seu contrário, que o pensamento ganhe força “ainda que sem conhecer o ‘quê’, mas extraindo tentativamente conclusões, a partir de supostos contrários”, tal é a experiência do pensamento, a que apela o conceito hegeliano do método como autodesenvolvimento do pensamento puro na direção do todo sistemático da verdade. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Ora bem, a experiência hermenêutica que procuramos pensar a partir do centro da linguagem não é seguramente experiência do pensar, no mesmo sentido que essa DIALÉTICA do conceito, que pretende liberar-se por completo do poder da linguagem. E, no entanto, também na experiência hermenêutica, encontra-se algo como uma DIALÉTICA, um fazer da própria coisa, um fazer que, à diferença da metodologia da ciência moderna, é um padecer, um compreender, que é um acontecer. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Não obstante, será preciso explicar mais precisamente o fato de que aqui se dê uma DIALÉTICA pensada a partir do centro da linguagem, e em que se distingue da DIALÉTICA metafísica de Platão e Hegel. Engatando num uso terminológico atestado por Hegel, podemos chamar ao que é comum à DIALÉTICA metafísica e à hermenêutica de especulativo. Especulativo significa, aqui, a relação do espelho. Espelhar-se é uma permuta contínua. Algo se reflete em outra coisa, o castelo no lago, por exemplo, e isso quer dizer que o lago devolve a imagem do castelo. A imagem refletida está unida essencialmente ao próprio aspecto visível, através da mediação que é o observador. Não tem um ser para si, é como uma “aparição” que não é ela mesma e que, todavia, permite que apareça espelhado o próprio aspecto visível. É como uma duplicação que, no entanto, não é mais que a existência de um só. O verdadeiro mistério do espelho é justamente o caráter inatingível da imagem, o caráter etéreo da pura reprodução. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Pois bem, o que importa, segundo Hegel, é dar uma representação expressa à inibição interna, que o pensamento experimenta, quando seu hábito de ir passando de uma representação a outra se vê interrompido pelo conceito. Isso é algo que também um pensamento não-especulativo pode exigir. Este tem seu “direito, que é válido, mas que não é atendido no modo da frase especulativa”. O que pode ele exigir é que se expresse a autodestruição DIALÉTICA da frase. “Nas demais formas do conhecimento é a demonstração a que perfaz esse aspecto da interioridade expressada. Não obstante, desde o momento em que a DIALÉTICA se separa da demonstração, o próprio conceito da demonstração filosófica vem abaixo”. Seja qual for a intenção que Hegel coloque nesses moldes, é claro que procura reconstruir o sentido da demonstração filosófica. Isso é o que ocorre na exposição do movimento dialético da frase. Este é o realmente especulativo, e só a expressão do mesmo é representação especulativa. Esta é, segundo Hegel, a exigência da filosofia. Evidentemente que o que aqui se chama de expressão e de representação não é, na realidade, um fazer demonstrativo, mas é a própria coisa que se demonstra, na medida em que se expressa e se representa. Desse modo, também a DIALÉTICA experimentará realmente que o pensamento incorre na mudança em seu contrário, como uma inversão incompreensível. É justamente o manter um pensamento consequente que leva a esse surpreendente movimento de conversão no contrário. Aquele que busca o direito, por exemplo, experimente como a estrita retenção da ideia do direito se torna “abstrata” e se mostra como a mais grave injustiça (summum ius summa iniuria). VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Nesse ponto Hegel estabelece uma certa diferença entre o especulativo e o dialético. A DIALÉTICA é a expressão do especulativo, a representação do que realmente contém a especulação, e é, por consequência, o “realmente” especulativo. Mas, na medida em que, como já vimos, a representação não é uma mera ação adicional, mas o expor-se da própria coisa, a própria demonstração filosófica faz parte da coisa. É verdade que a demonstração, como vimos, procede de uma exigência da forma habitual de imaginar. É portanto representação para a reflexão externa do entendimento. Entretanto, nem por isso essa representação é verdadeiramente externa. O que ocorre é que se tem a si mesma por tal, enquanto o pensamento não souber, ao final, que ele se mostrará a si mesmo como reflexão da coisa sobre si mesma. Concorda com isso o fato de que Hegel destaque a diferença entre especulativo e dialético, somente no prólogo à Fenomenologia do Espírito. Como essa diferença se suspende a si mesma pela própria lógica das coisas, no estudo posterior do saber absoluto, Hegel já não a mantém. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

E esse é o ponto no qual a proximidade de nossa própria colocação com respeito à DIALÉTICA especulativa de Platão e de Hegel tropeça numa barreira fundamental. A superação da diferença entre especulativo e dialético que encontramos na ciência especulativa do conceito em Hegel mostra até que ponto este se entende a si mesmo como aquele que verdadeiramente consuma a filosofia grega do logos. O que ele chama de DIALÉTICA, como o que Platão chamava de DIALÉTICA, repousa objetivamente na submissão da linguagem a seu “enunciado”. O conceito do enunciado, o aguçamento dialético até a contradição, acha-se, todavia, na mais radical oposição à essência da experiência hermenêutica e à linguisticidade da experiência humana do mundo. É verdade que também a DIALÉTICA de Hegel se guia de fato pelo espírito especulativo da linguagem. Mas se atendemos à maneira como Hegel se entende a si mesmo, ele só pretende extrair da linguagem o jogo reflexivo de sua determinação do pensamento, e elevá-lo pelo caminho da mediação DIALÉTICA, dentro da totalidade do saber sabido, até a autoconsciência do conceito. Com isso a linguagem fica na dimensão do enunciado e não alcança a dimensão da expressão linguística do mundo. Assim, deve-se mostrar com alguns traços, como se apresenta a essência DIALÉTICA da linguagem para os problemas hermenêuticos. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer linguístico, que corresponde à representação DIALÉTICA de Hegel, também ela participa numa DIALÉTICA, que desenvolvemos acima, como DIALÉTICA de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação DIALÉTICA das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura DIALÉTICA de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a DIALÉTICA filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher  , que fundamenta sua DIALÉTICA na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Mas ao mesmo tempo a correspondência entre DIALÉTICA hermenêutica e filosófica, que parece derivar-se da construção DIALÉTICA da individualidade em Schleiermacher e da construção DIALÉTICA da totalidade em Hegel, não é uma correspondência verdadeira. Pois nessa equiparação desconhece-se a essência da experiência hermenêutica e a finitude radical que lhe subjaz. É claro que toda interpretação tem que começar por algum ponto. Não obstante, seu ponto de partida não é arbitrário. Na realidade não se trata de um começo real. Já vimos como a experiência hermenêutica implica sempre o fato de que, o texto que se trata de compreender, falar a uma situação que está determinada por opiniões prévias. Isso não é uma desfocagem lamentável que obstaculize a pureza   da compreensão, mas, a condição de sua possibilidade, que caracterizamos como a situação hermenêutica. Somente porque, entre aquele que compreende e seu texto, não existe uma concordância lógica e natural, é que se pode vir a participar, no texto, de uma experiência hermenêutica. Somente porque o texto tem de ser transladado, de sua distância para o que nos é próprio, é que ele tem algo a dizer para aquele que deseja entender. Somente porque o texto o exige, chega-se, portanto, à interpretação e apenas do modo como ele o requer. O começo aparentemente thético da interpretação é, na realidade, resposta, e como em toda resposta, também o sentido da interpretação se determina a partir da pergunta que se colocou. À DIALÉTICA da interpretação sempre precedeu a DIALÉTICA de pergunta e resposta. É esta que determina a compreensão como um acontecer. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

O que ocorre, porém, com a obra de arte e especialmente com a obra de arte no âmbito da linguagem? Será possível falar ali de uma estrutura de diálogo da compreensão e do entendimento? Pois não há autor que possa fazer as vezes de um interlocutor que responde, e não há nenhuma coisa em discussão, que seja deste ou daquele modo. A obra textual sustenta-se por si mesma. Aqui, a DIALÉTICA de pergunta e resposta, se é que ela ocorre, parece dar-se numa única direção, isto é, a partir daquele que procura compreender a obra de arte, que a interroga, se questiona e procura escutar a resposta da obra. Sendo um, esse sujeito poderá, como ser pensante, exercer ao mesmo tempo o papel de quem pergunta e de quem responde, como acontece no diálogo real entre duas pessoas. Esse diálogo consigo mesmo do leitor que busca compreender não parece contudo um diálogo com o texto, que é fixo e, como tal, acabado. Ou não? Existirá, na verdade, um texto acabado e pronto? VERDADE E METODO II Introdução 1

Aqui a DIALÉTICA de pergunta e resposta não se sustenta. A obra de arte caracteriza-se sobretudo pelo fato de jamais podermos compreendê-la completamente. Isso quer dizer que se nos aproximarmos dela e a interrogarmos jamais receberemos uma resposta definitiva a partir da qual possamos afirmar “agora eu sei”. Dela não se extrai uma informação precisa — e pronto! Não se podem haurir de uma obra de arte as informações que ela esconde em si, de modo a esvaziá-la como ocorre com comunicados que recebemos. A recepção de uma obra poética, seja pelo ouvido real ou somente por aquele ouvido interior que escuta na leitura, apresenta-se como um movimento circular, no qual as respostas repercutem em novas perguntas e provocam novas respostas. Isso motiva a demora junto à obra de arte — seja ela de que espécie for. A atitude de demorar-se é certamente a caracterização específica na experiência da arte. Uma obra de arte jamais se esgota. Ela nunca está vazia. Definimos, pelo contrário, a não-arte, a imitação   ou a arte interesseira e similares, precisamente pelo fato de julgá-las “vazias”. Nenhuma obra de arte nos fala sempre do mesmo modo. E a consequência é que nós também precisamos responder cada vez de modo diferente. Diferentes sensibilidades, diferentes percepções, diferentes aberturas fazem com que a configuração única, própria, una e mesma — a unidade da expressão artística — se manifeste numa multiplicidade inesgotável de respostas. Considero um erro querer contrapor essa multivariedade infindável à identidade irredutível da obra. Frente à estética da recepção de Jauss e ao desconstrutivismo de Derrida   (que nesse ponto se aproximam), parece-me ser o caso de afirmar que insistir na identidade de sentido de um texto não significa recair no superado platonismo de uma estética classista e nem aprisionar-se na metafísica. VERDADE E METODO II Introdução 1

Não nos importa falar de um sentido puramente linguístico da interpretação gramatical, como se ela pudesse existir sem a interpretação psicológica. O problema hermenêutico mostra-se justamente na interpenetração da interpretação gramatical pela interpretação psicológica individualizante, na qual entram em jogo os condicionantes complexos do intérprete. Reconheço que, para isso, deveria ter observado de modo mais contundente a DIALÉTICA e estética de Schleiermacher, que Frank invoca com razão. Teria feito mais justiça à riqueza da compreensão individualizante em Schleiermacher. No entanto, logo após o aparecimento de Verdade e método, consegui recuperar alguma coisa disto. Meu interesse não era apreciar Schleiermacher em todas as suas dimensões, mas caracterizá-lo como o propulsor de uma história efeitual, que se inicia justamente com Steinthal e que ao alcançar o cimo teórico-científico com Dilthey   passa a dominar de maneira indiscutível. A meu ver, isso restringiu o problema hermenêutico, e esta história efeitual não é uma ficção. VERDADE E METODO II Introdução 1

Todo enunciado tem uma motivação. Todo enunciado tem pressupostos que ele não enuncia. Somente quem pensa também esses pressupostos pode dimensionar realmente a verdade de um enunciado. Ora, afirmo que a última forma lógica dessa motivação de todo enunciado é a pergunta. Não é o juízo mas a pergunta que tem o primado na lógica, como já o testemunham historicamente o diálogo platônico e a origem DIALÉTICA da lógica grega. O primado da pergunta frente ao enunciado significa, porém, que o enunciado é essencialmente resposta. Não há nenhum enunciado que não seja uma espécie de resposta. Assim, não pode haver compreensão de um enunciado, se essa não se pautar unicamente na compreensão da pergunta a que o enunciado responde. Falando assim, isso parece óbvio e todo mundo o sabe a partir de sua própria experiência de vida. Quando alguém faz uma afirmação que não compreendemos, procuramos saber como ele chegou a isto. Qual é a pergunta que ele se fez para poder formular este enunciado como resposta? E se for um enunciado que deva ser verdadeiro, então nós mesmos temos que tentar formular a pergunta em relação à qual o enunciado quer ser uma resposta. Por certo, nem sempre é fácil encontrar a pergunta a que o enunciado responde. E não é fácil sobretudo porque a pergunta está longe de ser um primeiro elemento simples para o qual podemos transferir-nos aleatoriamente. Isto porque toda pergunta é ela mesma uma resposta. Esta é a DIALÉTICA em que nos enredamos aqui. Toda pergunta tem uma motivação. Também o seu sentido jamais pode ser plenamente encontrado nela própria. Aqui encontra-se realmente a raiz dos problemas, acima mencionados, do alexandrinismo que ameaçam nossa cultura científica, quando essa dificulta a originalidade do perguntar. O decisivo, aquilo que na ciência constitui a natureza do investigador é isto: ver as perguntas. Ver perguntas significa, porém, poder-romper com uma camada, como que fechada e impenetrável, de preconceitos herdados, que dominam todo nosso pensamento e conhecimento. O que perfaz a essência do investigador é a capacidade de ruptura que possibilita ver, assim, novas perguntas e encontrar novas respostas. Todo enunciado tem seu horizonte de sentido no fato de ter surgido de uma situação de pergunta. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4

Antes, os meios são definidos pelos objetivos ou deles abstraídos, e o comportamento, das regras. O próprio Hegel já havia analisado, em sua Fenomenologia do espírito, a DIALÉTICA de lei e o caso particular, onde se dirime a determinação concreta. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8

A realidade fundamental capaz de mediar essas distâncias é a linguagem. Nela o intérprete (ou tradutor!) traz novamente à fala o que compreendeu. Teólogos e poetólogos chegam a falar inclusive de acontecimentos de linguagem. Em certo sentido, a hermenêutica aproxima-se com isso, por seu próprio caminho, da filosofia analítica, provinda da crítica metafísica do neopositivismo. Desde que essa filosofia já não se atém a resolver de uma vez por todas o “feitiço da linguagem”, mediante a análise dos modos de falar e trazendo todos os enunciados ao padrão da univocidade com a ajuda de linguagens simbólicas artificiais, ela tampouco pode evitar defrontar-se com o funcionar da linguagem nos jogos de linguagem, como mostraram as Investigações filosóficas de Wittgenstein  . K.O. Apel assinalou com razão que o conceito de “jogo de linguagem” só permite descrever, de modo descontínuo, a continuidade da tradição. À medida que a hermenêutica supera a ingenuidade positivista presente no conceito do dado (Gegebenes), através da reflexão sobre os condicionamentos da compreensão (compreensão prévia, prioridade da pergunta, história da motivação de cada enunciado), ela faz também uma crítica da reflexão metodológica positivista. Até que ponto ela segue o esquema da teoria transcendental   (K.O. Apel) ou antes a DIALÉTICA histórica (J. Habermas) é um assunto controverso. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8

Vamos aplicar essas reflexões à situação do mundo moderno e à tarefa que vislumbramos. Trata-se de algo bem diferente do domínio científico com suas tarefas de um ordenamento político planetário que nos esperam. Sublinhemos expressamente que a ciência tem um amplo futuro também nesse sentido; mesmo não sendo certo que a civilização ocidental se prolongue indefinidamente e acabe expulsando ou sufocando todas as outras formas de ordenação humana. Mas é justamente aí que está o problema. A produção de um homem marcado pela civilização unitária da técnica, que aprende a utilizar-se igualmente de uma linguagem unitária de civilização — e o inglês está bem adiantado em assumir essa função — poderia certamente facilitar o ideal de um governo científico mundial. Mas a verdadeira pergunta é se esse ideal pode ser realmente desejável. Quem sabe já possamos perceber em alguns fatos de linguagem as consequências do processo de equilíbrio civilizatório em nosso planeta. O sistema de signos, que exige e possibilita a utilização de um aparelho técnico, desenvolve uma DIALÉTICA característica. Deixa de ser um mero meio para a obtenção de objetivos técnicos. Exclui os objetivos que não podem ser indicados e comunicados com seus meios. O perfeito funcionamento da linguagem do tráfico internacional, por exemplo, baseia-se na limitação do que se comunica. O aperfeiçoamento lógico-epistemológico de uma linguagem comum da ciência, como o que preside os esforços da unity ofscience, apresentaria exatamente a mesma fisionomia. Sua perfeição talvez pudesse eliminar todas as imprecisões e ambiguidades que atrapalham o entendimento inter-humano. Por isso, não precisaríamos aspirar por uma linguagem mundial do futuro. Bastaria que as linguagens vivas dos povos fossem articuladas num sistema de equações transformadoras, de modo que uma máquina de tradução ideal garantisse a unicidade do entendimento. Tudo isso seria possível e quem sabe até não esteja longe de acontecer. Mas também aqui seria inevitável que esse meio universal se degenerasse num fim universal. Desse modo, não se teria alcançado propriamente um meio para comunicar e dizer tudo que possa ser pensado, mas um meio para garantir que só haveremos de pensar o que se capta e comunica pela programação. No fundo já estamos imersos nesse processo. O estranho fenômeno da “versão oficial”, que com a difusão dos meios modernos de comunicação de massa começa a experimentar uma nova envergadura, já mostra com clareza a DIALÉTICA de meio e fim aqui presente. Isso pode ser visto com frequência na exposição de uma linha de combate. O que numa parte do mundo se chama democracia e liberdade aparece como uma versão oficial, denunciada pela outra parte do mundo como mera manipulação da formação de opinião e domesticação das massas. Mas essa é apenas uma expressão da imperfeição desse sistema. Abarcando tudo, a ideia de versão oficial erigiu a si própria como objetivo, passando adiante inadvertidamente. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12

Também no âmbito do pensamento filosófico, o fenômeno do diálogo e sobretudo aquela forma específica do diálogo entre duas pessoas desempenharam uma importante função, e talvez na mesma confrontação que acabamos de descobrir como um fenômeno cultural comum. Foi sobretudo a época romântica e seu renascimento no século XX que conferiu ao fenômeno do diálogo uma função crítica frente à funesta monologização do pensamento filosófico. Mestres do diálogo como Friedrich Schleiermacher, esse gênio da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propícia a diálogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma DIALÉTICA que atribuía ao modelo platônico de diálogo e de conversação uma primazia especial na busca da verdade. É fácil ver em que consiste essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam experiências, trata-se sempre do encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Não é a mesma visão a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e a elaboração de suas teorias. O próprio Platão não comunicou sua filosofia simplesmente em diálogos escritos em reconhecimento ao mestre do diálogo, Sócrates. Viu ali um princípio da verdade, segundo o qual a palavra só encontra confirmação pela recepção e aprovação do outro e que o pensamento que não viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconsequente e sem força vinculante. Cabe afirmar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatório. O modo como alguém experimenta o mundo, pela visão, pelo ouvido e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal intransponível. “Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?” (Rilke  ). Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo. A extraordinária concepção metafísica de Leibniz  , admirada também por Goethe  , foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pelos indivíduos, singulares, forma na sua totalidade um único universo. Isso se deixa configurar num universo do diálogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16

A teoria da retórica foi o resultado de uma controvérsia preparada de há muito, desencadeada pela irrupção delirante e assustadora de uma arte do discurso e por uma ideia de educação que conhecemos pelo nome de sofística. Como um saber prático incrivelmente novo, que ensinava a colocar tudo de cabeça para baixo, essa arte passou da Sicília para uma Atenas firmemente estabelecida mas com uma juventude fácil de ser seduzida. Então, tinha-se que impor uma nova disciplina a esse grande déspota (como chama Górgias à arte do discurso). Desde Protágoras   até Isócrates, a preocupação dos mestres não era apenas ensinar a discursar, mas também a formar uma consciência de cidadania justa, que prometia trazer êxito político. Mas foi só Platão que lançou as bases pelas quais a nova e revolucionária arte do discurso encontraria seus limites e seu legítimo posto, como nos descreveu exaustivamente Aristófanes. É o que nos testemunha também a DIALÉTICA filosófica da academia platônica e a fundamentação aristotélica da lógica e da retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 18

Assim, a revitalização humanista da retórica, que apelava mais a Cícero e Quintiliano do que a Aristóteles, desviou-se rapidamente das origens e entrou em novos campos de forças que transformam sua figura e sua influência. De certo, a figura teórica da retórica pode ser concebida como uma lógica da verossimilhança, formando uma unidade indissolúvel com a DIALÉTICA. Com isso, ele acabou provocando a liberação da escola do formalismo lógico e de uma dogmática teológica apoiada nas autoridades. Mas a lógica da verossimilhança está demasiadamente subordinada à lógica para poder, com o tempo, arrebatar a primazia à lógica da necessidade exposta por Aristóteles em sua Analítica. VERDADE E METODO II OUTROS 20

Analisando primeiramente Melanchton, vemos que o princípio bíblico da teologia luterana constitui um pressuposto óbvio no contexto de seu curso de retórica, determinando igualmente seu conteúdo. Isso não detém, porém, o ductus da argumentação, que se mantém totalmente dentro do espírito pedagógico peripatético. Melanchton procura justificar o sentido e o valor da retórica num nível geral na nova virada rumo à leitura, como descrevemos acima. “Isso porque nada é capaz de compreender espiritualmente longas exposições e debates complexos, se não for auxiliado por uma espécie de arte que lhe facilite o ordenamento, a articulação das partes e a intenção dos oradores, e lhe ensine um método para interpretar e aclarar as coisas que são obscuras”. E claro que tem presente também as controvérsias teológicas, mas ao relacionar estreitamente a retórica com a DIALÉTICA, Melanchton segue a Aristóteles e à tradição medieval e humanista, o que significa, sem atribuir-lhe nenhum âmbito especial, mas sublinhando sua aplicabilidade e utilidade geral. VERDADE E METODO II OUTROS 20

Essa retórica compartilha com a DIALÉTICA a universalidade de seu postulado, porque não se limita a um âmbito determinado, como o saber especializado de uma techne. Isso explica o fato de ela competir com a filosofia e ter podido rivalizar com esta como uma propedêutica universal. O Fedro busca mostrar que essa retórica ampliada, se é que deve superar a estreiteza de uma mera técnica regrada, que segundo Platão só contém ta pro tes technes anankaia mathemata   (Faidros, 269b), deve dissolver-se no final em filosofia, na globalidade do saber dialético. Essa demonstração interessa-nos aqui, pois o que disse o Fedro em favor da retórica, elevando-a de uma mera técnica para um verdadeiro saber (que Platão chamou de techne), deve poder estender-se também à hermenêutica como arte da compreensão. VERDADE E METODO II OUTROS 22

Ora, é uma opinião amplamente aceita que Platão compreendeu a DIALÉTICA, quer dizer, a própria filosofia como uma techne e destacou sua peculiaridade frente ao resto das technai unicamente no sentido de que é o saber do supremo, inclusive o saber da coisa suprema que é preciso conhecer: o bem (megiston mathema). Podemos dizer o mesmo, mutatis mutandis, da retórica filosófica postulada por ele e portanto de toda a hermenêutica. Só Aristóteles teria encontrado a importante distinção entre ciência, techne e racionalidade prática (phronesis  ). VERDADE E METODO II OUTROS 22

Isso é apresentado de maneira muito aguda e simpática no Fedro de Platão (268s): aquele que possui todos os conhecimentos médicos e as regras de conduta, mas ainda não sabe quando e onde aplicá-los, não é um médico. O trágico ou o músico que aprendeu apenas as regras e os procedimentos gerais de sua arte, mas não criou com eles uma obra, não é um literato ou um músico (280 bs). Também o orador deve conhecer o lugar e o tempo de todas as coisas (hai eukairiai te kai akairiai, 272 a 6). Nesse ponto, Platão já sugere uma superação do modelo de ciência inspirado na techne, ao transferir o supremo saber para a DIALÉTICA. Nem o médico, nem o poeta e nem o músico conhecem “o bem”. O dialético ou o filósofo verdadeiro, que não é sofista, não “possui” um saber especial, mas é em sua pessoa a materialização da DIALÉTICA ou da filosofia. Nessa linha, também no diálogo sobre o estadista aparece a arte política como uma espécie de arte têxtil que permite compor com o oposto numa unidade (305 e). Essa arte aparece personificada no estadista. Também no Filebo, o saber sobre à “vida honesta” representa a arte da composição ou mescla que o indivíduo desejoso da felicidade deve realizar. Ernst Kapo comentou essa ideia no que diz respeito ao estadista num belo trabalho, e meus próprios estudos iniciais de crítica à construção histórico-evolutiva de Werner Jaeger detectavam algo similar no Filebo. VERDADE E METODO II OUTROS 22

Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da “virada”, levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha ideia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama “linguagem da metafísica”, significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da ideia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da DIALÉTICA, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma DIALÉTICA meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a DIALÉTICA grega pretendesse ser uma mera DIALÉTICA negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da DIALÉTICA moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E METODO II OUTROS 24

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença (Dasein  ) humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl   e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogal da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A experiência dialogal produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a DIALÉTICA do reconhecimento, elevando essa DIALÉTICA ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E METODO II OUTROS 24

No extremo fica claro o quão complexo é o ajuste do discurso à unidade e o arranjo de seus elementos, isto é, das palavras. Por exemplo, quando a palavra em sua polivalência se vangloria como possuidora de um sentido independente. Chamamos a isso um jogo de palavras. Ora, não se pode negar que ela, muitas vezes, alcança a independência unicamente quando utiliza a linguagem como adorno, o qual realça o engenho do orador, mas permanece totalmente subordinada à intenção de sentido do discurso. A consequência é que o sentido do discurso como um todo perde prontamente sua univocidade. Por trás da unidade do fenômeno sonoro aparece então a unidade oculta de significados heterogêneos e até opostos entre si. Nesse contexto, Hegel falou de instinto dialético da linguagem, e no jogo de palavras Heráclito   viu um dos testemunhos mais relevantes de sua intuição básica, a saber, os contrários são na verdade um e o mesmo. Mas esse é um modo de falar filosófico. Trata-se de rupturas da relação semântica natural do discurso que são úteis para o pensamento filosófico, uma vez que assim a linguagem vê-se forçada a abandonar seu significado objetivo imediato e favorecer o surgimento das especulações do pensamento. O sentido equívoco nos jogos de palavras representa a forma mais densa de manifestação do elemento especulativo, que se explicita em juízos contraditórios. Como disse Hegel, a DIALÉTICA é a representação do especulativo. VERDADE E METODO II OUTROS 24

Mas no idealismo alemão não foi tanto a reformulação de palavras e o forçar significados literais o que contribuiu para dissolver a figura tradicional dos conceitos metafísicos. Isso se deu principalmente pela tentativa de levar os princípios a sua contraposição e contradição. Desde a Antiguidade a DIALÉTICA consiste em levar os antagonismos imanentes a seu extremo contraditório. E quando a defesa de dois enunciados contrapostos não tem um sentido meramente negativo, mas aponta à unificação do contraditório, alcança-se então em certa medida a possibilidade extrema que capacita o pensamento metafísico, isto é, o pensamento que se orienta por conceitos originariamente gregos, para o conhecimento do absoluto. A vida, porém, é liberdade e espírito. A consequência íntima dessa DIALÉTICA, em que Hegel viu o ideal da demonstração filosófica, permite-lhe superar a subjetividade do sujeito e conceber o espírito também como espírito objetivo, como foi indicado acima. Mas em seu resultado ontológico esse movimento acaba de novo na presença absoluta do espírito ante si mesmo, como atesta a conclusão da Enciclopédia hegeliana. É por isso que Heidegger manteve um debate permanente e tenso com a sedução da DIALÉTICA que, em lugar da destruição dos conceitos gregos, acabou transformando-os em conceitos dialéticos aplicados ao espírito e à liberdade, domesticando de certo modo o próprio pensamento. VERDADE E METODO II OUTROS 25

Quando chamo de DIALÉTICA à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma DIALÉTICA especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard   e Nietzsche. Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, aprendido em Aristóteles. DIALÉTICA significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o “lógico” em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de “o passo para trás” foi um distanciamento da DIALÉTICA. VERDADE E METODO II OUTROS 25

A guinada hermenêutica rumo à conversação, tema que eu próprio desenvolvi, vai na mesma direção e não se limita a ultrapassar a DIALÉTICA do idealismo alemão na direção da DIALÉTICA platônica, mas aponta o pressuposto da DIALÉTICA que se esconde por detrás dessa versão socrático-dialogal: a anamnesis   buscada e suscitada nos logoi. Essa reminiscência tomada do mito, mas pensada com plena racionalidade, não é só reminiscência da alma individual, mas é também sempre a do “espírito capaz de unir-nos”, a nós que “somos uma conversação”. Mas estar-em-conversação significa estar-além-de-si-mesmo, pensar com o outro e voltar sobre si mesmo como outro. Quando Heidegger deixa de pensar o conceito metafísico de essência como presença do presente e lê a palavra Wesen   (essência) como verbo, como palavra temporal  , “temporalmente”, passa a compreender o Wesen (essência) como Anwesen (estar presente, vigência), num sentido que parece corresponder à expressão comum Verwesen (”reger”, vigir, administrar). Mas isso significa que Heidegger, como faz em seu artigo sobre Anaximandro  , submete a Weile   (permanência) à experiência grega original do tempo. Desse modo, ao perguntar pelo ser, está perguntando pelas raízes da metafísica e seu horizonte. O próprio Heidegger lembra que a frase citada por Sartre   “a essência da pre-sença (Dasein) é sua existência” é mal-entendida toda vez que se esquece que a palavra Wesen (essência) vem escrita entre aspas. Não se trata do conceito de Essenz   (essência), que enquanto Wesen deve preceder a existência, o fato. Tampouco se trata da inversão sartreana dessa relação, como se a existência precedesse a Essenz (essência). A meu ver, porém, quando pergunta pelo sentido do ser, Heidegger tampouco pensa “sentido” na linha da metafísica e de seu conceito de essência. Pensa-o, antes, como sentido interrogativo que não espera uma determinada resposta, mas que sugere uma direção do perguntar. VERDADE E METODO II OUTROS 25

Eu disse certa vez que “o sentido é sentido de direção”. E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein   (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da DIALÉTICA. De certo, a DIALÉTICA idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a DIALÉTICA a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão DIALÉTICA da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis, da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E METODO II OUTROS 25

”Apesar de seu esforço para alcançar conceitos vivos com o objetivo de apreender o elemento histórico, a DIALÉTICA entre especulação e empiria permanece nele intocada: O efeito recíproco entre a história e aquele que a conhece é crítico e a-problemático; sendo que aquele que pergunta pela história permanece assegurado de toda contra-pergunta fundamental”. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

Se pudermos dar crédito a Platão, será interessante notar não só que a interpretação dos poetas foi feita tanto por Sócrates quanto por seus adversários sofistas. Mais importante é o fato de toda a DIALÉTICA platônica ter sido expressamente relacionada pelo próprio Platão com a problemática da literatura escrita, e que, mesmo no âmbito da realidade do diálogo, a DIALÉTICA assume, não raro, expressamente um caráter hermenêutico, seja porque se introduza a conversação DIALÉTICA por uma tradição mítica de sacerdotes e sacerdotisas, seja pelos ensinamentos de Diotima ou simplesmente pela constatação de que os antigos não teriam se preocupado se nós compreendemos ou não, e por isso ter-nos-iam deixado sem ajuda, como diante de uma lenda. Devemos considerar também a posição inversa: Até que ponto os próprios mitos de Platão fazem parte do curso da preocupação DIALÉTICA, possuindo assim, eles próprios, caráter de interpretação? Assim, a partir dos impulsos dados por Hermann Gundert, a construção de uma hermenêutica platônica poderia ser sumamente instrutiva. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

Mas também na vertente filosófica, encontramos desde há muito uma tendência similar, dotada de uma consciência filosófica ainda maior, quando Chaim Perelman e seus colaboradores defenderam o significado lógico da argumentação usual no direito e na política contra a lógica da teoria da ciência. Utilizando os recursos da análise lógica, mas justamente com a intenção de distinguir os procedimentos do discurso persuasivo contra a forma de demonstração lógico-apodíctica, ele lança mão da antiga aspiração da retórica contra o positivismo científico. Frente à unilateralidade da teoria moderna da ciência e da philosophy ofscience, era inevitável que o interesse filosófico não recuperasse lentamente seu interesse pela tradição da retórica, exigindo sua revitalização. Foi o que fortaleceu também o interesse pela hermenêutica, uma vez que essa partilha com a retórica sua distinção frente ao conceito de verdade da teoria da ciência e a defesa de seu direito à autonomia. Fica em aberto a questão de saber se essa correspondência, historicamente legítima, entre retórica e hermenêutica é total e plena. De certo, a maioria dos conceitos da hermenêutica clássica desde Melanchton provém da tradição retórica da Antiguidade. O elemento da retórica, o âmbito dos persuasive arguments, tampouco se limita às ocasiões forenses e públicas da arte da oratória. Parece dilatar-se, antes, com o fenômeno universal da compreensão e do entendimento. Mas desde antigamente permanece uma barreira infranqueável entre a retórica e a DIALÉTICA. O processo do entendimento insere-se mais profundamente na esfera da comunicação intersubjetiva, abrangendo também todas as formas em que se dá o consenso tácito, como o demonstrou M. Polanyi, e igualmente os fenômenos de comunicação à margem do âmbito da linguagem, os fenômenos mímicos, como o riso, o choro, cujo significado hermenêutico nos foi ensinado por H. Plessner  . VERDADE E METODO II ANEXOS 28

Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do “instinto de jogo” (Schiller  ), utilizando-o na crítica da “distinção estética”, implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma “ontologização” da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito “técnico” de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a DIALÉTICA platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee   und Sprache   (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E METODO II ANEXOS 29

Nessa altura talvez possamos acrescentar que também a Logische   Propädeutik (Propedêutica lógica), proposta por Kamlah e Lorenzen, que exige do filósofo a “introdução” metodológica de todos os conceitos legítimos para um enunciado cientificamente comprovável, está imersa no círculo hermenêutico de um saber prévio, pressuposto no âmbito da linguagem, e num uso de linguagem que deve ser purificado pela crítica. Nada temos contra um ideal da construção de uma linguagem científica, que em muitos âmbitos traz certamente importantes esclarecimentos, sobretudo para a lógica e para teoria da ciência. Para esse ideal, enquanto educação para um falar responsável, não se deveria colocar nenhuma restrição, mesmo no campo da filosofia. Aquilo que Hegel se propôs a fazer em sua Lógica, sob o pensamento central de uma filosofia que abarcasse toda a ciência, é o mesmo que procura fazer Lorenzen, de maneira nova, na reflexão sobre “investigação” e sua justificação lógica. De certo, trata-se de uma tarefa legítima. No entanto, gostaria de defender que a fonte do saber e do saber prévio, que emana da interpretação de um mundo sedimentado na linguagem, continuaria mantendo sua legitimidade mesmo que pudéssemos pensar a linguagem ideal da ciência como completa e perfeita, e isso vale também para a “filosofia”. O Iluminismo da história dos conceitos, linguagem que eu mesmo adotei em meu livro e que uso da melhor maneira possível, é recusado por Kamlah e Lorenzen com a objeção de que o fórum da tradição não pode pronunciar nenhum julgamento unívoco e seguro. Creio ser uma exigência legítima poder responsabilizar-se diante desse fórum. Isso porém não significa inventar uma linguagem adaptada às novas ideias, mas extraí-la da linguagem viva. Essa exigência só pode ser realizada pela linguagem da filosofia, se conseguir manter aberto o caminho que vai da palavra para o conceito e vice-versa. Isso parece-me ser uma instância que mesmo Kamlah e Lorenzen levam em consideração em seu próprio procedimento como o uso de linguagem. De certo, isso não cria nenhum edifício metodológico da linguagem pelo do incremento paulatino de conceitos. Mas tornar conscientes as implicações contidas nos termos conceituais também representa um “método” e, na minha opinião, um método adequado ao objeto da filosofia. Isso porque o objeto da filosofia não se resume a esclarecer reflexivamente os procedimentos das ciências. Tampouco consiste em tirar a “soma” da multiplicidade de nosso saber moderno, arredondando-a até alcançar a totalidade de uma “concepção de mundo”. É verdade que a filosofia tem a ver com a totalidade de nossa experiência de mundo e de vida, e o faz de modo diferente do que todas as outras ciências. Seu envolvimento com essa tarefa se dá nos moldes de nossa própria experiência de vida e de mundo articulada na linguagem. Estou longe de afirmar que o saber dessa totalidade represente um conhecimento realmente assegurado e que não deva ser sempre de novo submetido à crítica pelo pensamento. O que não se pode é ignorar esse “saber”, seja que se expresse como sabedoria religiosa ou proverbial, como obra de arte ou como pensamento filosófico. A própria DIALÉTICA de Hegel — não me refiro à sua esquematização de um método de demonstração filosófica, mas à experiência que forma a base de sua “inversão” de conceitos, que buscam compreender o todo — pertence a essas formas do auto-esclarecimento interior e de representação intersubjetiva de nossa experiência humana. Em meu livro, fiz um uso bastante vago desse modelo vago de Hegel e por isso gostaria de remeter a uma pequena e recente publicação intitulada Hegels Dialektik, Fünf hermeneutischen Studien (A DIALÉTICA de Hegel — cinco estudos hermenêuticos), Tübingen, 1971, a qual contém uma explanação mais precisa, mas também uma certa justificação para essa vacuidade. VERDADE E METODO II ANEXOS 29

Não foi um determinado cânon temático do classicismo o que me motivou a caracterizar o clássico como a categoria da história dos efeitos, por excelência. Com essa categoria, queria destacar muito mais a singularidade da obra de arte e sobretudo todo e qualquer texto eminente frente a outras formas de tradição compreensíveis e necessitadas de interpretação. Aqui, a DIALÉTICA de pergunta e resposta por mim desenvolvida não perde sua validez, mas modifica-se: a pergunta originária, em relação à qual um texto deve ser compreendido como uma resposta, como dissemos acima, caracteriza-se, aqui, a partir de seu próprio princípio, por sua superioridade e liberdade com relação ao texto. Mas isso não significa que a “obra clássica” só seria acessível ainda em uma convencionalidade sem esperanças. Tampouco significa que exija um conceito harmonioso e inconteste do “humano comum”. A obra só “fala” quando fala “originariamente”, ou seja, “como se o dissesse para mim próprio”. Isso não significa, em absoluto, que aquilo que assim fala deve ser medido em um conceito normativo extra-histórico. Trata-se, antes, do caso oposto. O que fala desse modo impõe, com isso, uma medida. E aqui está o problema. A pergunta originária, cuja resposta constitui a compreensão do texto, apela, nesse caso, para uma identidade de sentido que já intermediou desde o princípio a distância entre origem e presente. Em uma conferência realizada em Zurique, em 1969, intitulada “Das Sein des Gedichteten”, indiquei as diferenciações hermenêuticas que se fazem necessárias para tais textos. VERDADE E METODO II ANEXOS 29

Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das ideias, com a DIALÉTICA das ideias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles   de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 30

Mas também isso não significa que Platão possua, afinal, uma doutrina que possa ser aprendida: a “doutrina das ideias”. E, no diálogo do Parmênides, quando ele critica essa “doutrina”, não significa que ele tenha cometido um erro ali. Significa, antes, que a hipótese das “ideias” não é tanto uma “doutrina”. Designa uma orientação problemática cujas implicações a filosofia, ou DIALÉTICA platônica, deveria desenvolver e debater. A DIALÉTICA é a arte de conduzir uma conversa, e isso inclui a arte de conduzir essa conversa consigo mesmo e de perseguir o entendimento consigo mesmo. É a arte de pensar, que equivale à arte de indagar o significado do que se pensa e se diz. Desse modo, segue-se um caminho ou, mais exatamente, se está em um caminho. Isso porque existe algo que se pode chamar de “predisposição natural do homem para a filosofia”. Nosso pensamento não se detém no que alguém tem em mente com isso ou aquilo. O pensar remete para além de si mesmo. A obra dos diálogos platônicos expressa isso de modo característico, a saber, remete ao uno, ao ser, ao “bem” que se expressa na ordem da alma, na ordem da constituição da cidade e da estrutura cósmica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30

Aqui encontra-se um problema hermenêutico verdadeiramente árduo. A poesia comporta um tipo especial de comunicação. Com quem se dá essa comunicação? Com o leitor? Com qual leitor? A DIALÉTICA de pergunta, que sustenta o processo hermenêutico e que surge do esquema básico do diálogo, sofre aqui uma modificação específica. A recepção e interpretação da poesia parece implicar uma relação dialogal sui generis. VERDADE E METODO II ANEXOS 30