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Gadamer (VM): desconstrução

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A identidade do eu, assim como a identidade do sentido, que se constrói através dos participantes do diálogo, permanece intocada. É evidente que nenhuma compreensão de um pelo outro dialogante consegue abranger todo o âmbito do compreendido. Nesse ponto, a análise hermenêutica deve se desfazer de um falso modelo de compreensão e entendimento. Por isso, no entendimento, jamais se dá o caso de a diferença ser tragada pela identidade. Quando dizemos que nos entendemos sobre alguma coisa, isso não significa, em absoluto, que um tenha uma opinião   idêntica ao outro. "Chega-se a um acordo", como diz muito bem a expressão. É uma forma mais elevada de syntheke, se quisermos servir-nos da genialidade da língua grega. A meu ver, querer isolar e fazer objeto de crítica os elementos do discurso, do discurs, é um desvirtuamento da perspectiva. Assim, na realidade, esses elementos não se dão, e torna-se compreensível por que, do ponto de vista dos "signos", precisamos falar de différance ou différence. Nenhum signo, no sentido absoluto de significado, é idêntico a si mesmo. A crítica de Derrida   contra o platonismo, que ele supõe encontrar-se nas Investigações lógicas de Husserl   e no conceito de intencionalidade, no Ideen I, não deixa de ter razão. Isso, porém, já foi esclarecido por Husserl há muito tempo. Partindo do conceito de síntese passiva e da teoria das intencionalidades anônimas, parece-me, na verdade, haver uma linha transparente que chega à experiência hermenêutica, a qual, suposto que se refute a violência metodológica do modo de pensar transcendental  , pode coincidir amplamente com minha máxima: "Quando se consegue compreender, compreende-se de modo diferente". Depois da conclusão de Verdade e método I, o tema preferencial de minhas pesquisas foi durante décadas o lugar que o conceito de literatura ocupa no círculo de questionamento da hermenêutica. Confira neste volume os artigos "Texto e interpretação" e "Destruição e desconstrução", assim como os trabalhos apresentados nos volumes VIII e IX. Como disse inicialmente, [17] em Verdade e método I, parece-me que ainda não se alcançou, com precisão, a diferenciação necessária entre o jogo da linguagem e o jogo da arte e, na realidade, a mútua pertença de linguagem e arte em nenhum lugar é tão palpável como no caso da literatura, que se define justamente através da arte da linguagem — e do escrever! 2708 VERDADE E METODO II Introdução 1.

De modo semelhante, o texto-sentido da história já está sempre predeterminado, em parte pela própria história de vida, em parte pelo que os eruditos sabem, através do saber histórico. Já estamos conformados nessa configuração histórica, que abarca o conteúdo de nossa própria origem, já bem antes que a investigação histórica inicie seu procedimento metodológico. Visto que a historicidade corresponde a cada um de nós, jamais se desfaz totalmente o vínculo vital que liga a tradição e a origem com a investigação histórica crítica. Mesmo quem procura apagar sua própria individualidade, tal como um pretenso espectador da história do mundo, como Ranke, permanece sendo sempre um filho de seu tempo e um cidadão de sua pátria. Nem o filólogo e nem o historiador podem conhecer esses condicionamentos de sua própria compreensão, que os precedem e assim constituem condições que antecedem seu autocontrole metodológico. Isso vale para ambos, embora o caso do filólogo seja diferente do historiador. Para o filólogo, a simultaneidade de sentido expressa no texto é produzida por sua interpretação (quando ele consegue realizá-la). Por outro lado, o historiador procede a uma construção e desconstrução de contextos de sentido, o que está sujeito a uma constante retificação, destruição de lendas, descoberta de falsificações, a uma constante irrupção de construções de sentido — na procura de um sentido subjacente, que talvez jamais possa ser encontrado até o ponto da simultaneidade da evidência de sentido. 2738 VERDADE E METODO II Introdução 1.

Pequena errata: Atualmente, a discussão entre hermenêutica e desconstrutivismo continua viva. Cf. a excelente crítica de J. Habermas a Derrida, in: Der philosophische   Diskurs der moderne (O discurso filosófico da modernidade), Frankfurt 1985, p. 19ls, assim como o debate Text   und Interpretation  , em língua inglesa, por Dallmayr (preparado em Iowa), as observações que eu fiz a F. Dall-mayr, Polis   and Praxis   (Cambridge 1984), que completam Destruição e desconstrução (cf. abaixo, p. 418). 2748 VERDADE E METODO II Introdução 1.

O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx   (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan   e P. Ricoeur  . O alcance da analogia   entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social "positivista" que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do "sentido". Apesar de Nietzsche  , buscar "sentido" na écriture nada tem a ver com metafísica. 3146 VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

[361] Destruição e desconstrução (1985) 4174 VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar "a linguagem da metafísica" com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin  , parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram [368] efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à conversação. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por Derrida. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da conversação. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da conversação — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. 4204 VERDADE E METODO II OUTROS 25.

A dimensão interrogativa em que nos movemos aqui nada tem a ver com um código que se procura decifrar. De certo, esse código decifrado forma a base de toda escritura e leitura de textos. Representa, porém, uma mera condição prévia em função do esforço hermenêutico para saber o que se diz nas palavras. Nesse sentido, concordo plenamente com a crítica ao estruturalismo. 371] Mas creio ultrapassar a desconstrução de Derrida, ao afirmar que as palavras só existem na conversação, e as palavras na conversação não se dão como palavras isoladas, mas como o conjunto de um processo de fala e resposta. 4216 VERDADE E METODO II OUTROS 25.

E evidente que o princípio de desconstrução busca o mesmo. Também Derrida busca superar um âmbito de sentido metafísico que forma a base das palavras e seus significados no processo que ele chama de écriture e cuja realização não é um ser essencial, mas a linha, o rastro indicador. Desse modo, Derrida ataca o conceito metafísico de logos   e fala de um logocentrismo, que afetaria inclusive a questão do ser em Heidegger como pergunta pelo sentido do ser. Trata-se de um Heidegger estranho, reinterpretado na perspectiva de Husserl, como se a fala consistisse sempre em enunciados ao modo de juízo. Nesse sentido, pode-se dizer que a infatigável constituição de sentido a que se dedica a investigação fenomenológica e que se realiza no ato de pensar como cumprimento de uma intenção da consciência, refere-se à "presença". A voz (la voix) que anuncia está subordinada de certo modo à presença do que é pensado no pensamento. Na verdade, também no esforço de Husserl em favor de uma filosofia honesta é a experiência de tempo e a consciência de tempo que precedem toda "presença" e toda constituição, inclusive de aquela de validade supratemporal. Mas o problema do tempo torna-se insolúvel no pensamento de Husserl porque no fundo ele mantém o conceito grego de ser, que o próprio Agostinho   já havia desqualificado através do enigma presente no ser do tempo, a saber, o tempo "agora" é e também não é, para expressá-lo com Hegel  . 4218 VERDADE E METODO II OUTROS 25.

Talvez a crítica que Derrida dirige à interpretação heideggeriana   de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma "essência" de estrutura radicalmente distinta, temporal  , não se perderiam sempre de novo no intransitável. O diálogo que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um diálogo, e não no final. 4222 VERDADE E METODO II OUTROS 25.