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Gadamer (VM): Tomás de Aquino

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

É claro que a analogia   entre os dois modos de ser criador tem seus limites, que correspondem às diferenças, antes acentuadas, entre palavra divina e humana. A palavra divina cria o mundo, mas não o faz numa sequência temporal   de pensamentos criadores e de dias da criação. O espírito humano, pelo contrário, somente possui a totalidade de seus pensamentos na sequencialidade temporal. É verdade que não se trata de uma relação puramente temporal, como já vimos a propósito de TOMÁS DE AQUINO. Nicolau de Cusa também ressalta essa medida. E como a série dos números: sua geração não é na realidade um acontecer temporal, mas um movimento da razão. Nicolau de Cusa considera que é esse mesmo movimento da razão que opera, quando se extrai do sensorial a formação dos gêneros e espécies, tal como ocorrem nas palavras, e se desprendem em conceitos e palavras individuais. Também eles são entia rationes [439]. Por mais platônico-neoplatônico que soe esse discurso sobre o "desenvolvimento", Nicolau de Cusa supera, na realidade, o esquematismo emanantista da doutrina neoplatônica da explicatio   em pontos decisivos; pois, contra ela, desenvolve a doutrina cristã do verbo. A palavra não é, para ele, um ser distinto do espírito, nem uma manifestação minorada ou debilitada do mesmo. Para o filósofo cristão é o conhecimento disso o que constitui sua superioridade sobre os platônicos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

2. Se partirmos da constituição ontológica fundamental, segundo a qual o ser é linguagem, isto é, representar-se — tal como se nos abriu na experiência hermenêutica do ser — , a consequência não é somente o caráter de evento do belo e o caráter de acontecer de toda compreensão. Assim como o modo de ser do belo tinha se mostrado como prefiguração de uma constituição ontológica geral, algo semelhante ocorrerá com respeito ao correspondente conceito da verdade. Também aqui podemos partir da tradição metafísica, mas também aqui teremos de nos indagar sobre o que continua sendo válido nela, para a experiência hermenêutica. Segundo a metafísica tradicional, o caráter de verdade do ente pertence à determinação transcendental   e está estreitamente vinculado ao ser bom (de onde também aparece o ser belo). Recordamos, desse modo, a frase de TOMÁS DE AQUINO, segundo a qual o belo deve ser determinado por referência ao conhecimento, e o bom por referência ao desejo. É belo aquilo em cuja contemplação o anseio chega ao seu repouso: cuius ipsa apprehensio placet. O belo acrescenta ao ser bom uma referência à capacidade de conhecer: addit supra bonum   quemdam ordenem ad vim cognoscitivam. O "aparecer" do belo aparece aqui como uma luz que brilha sobre o que foi formado: lux splendens supra formatum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das "formas simbólicas" (Cassirer  ), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas "fato", mas "princípio". É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho   e TOMÁS DE AQUINO, à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um "sentido", e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel   [112] expressou-o na sua teoria do "espírito objetivo". Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles   e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando "do lado de fora" os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de "experiência" a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

Em muitas oportunidades objetou-se contra as minhas investigações dizendo que sua linguagem seria muito imprecisa. Não posso admitir que isso seja só a descoberta de uma deficiência — o que muitas vezes pode ser suficiente. Ao contrário, parece-me muito mais adequado à tarefa da linguagem conceitual filosófica manter de pé o envolvimento com o todo do saber sobre o mundo baseado na linguagem, e com isso manter viva uma relação com o todo, mesmo que às custas de uma delimitação mais precisa dos conceitos. Isso é a implicação positiva da "carência de linguagem", que nasceu com a filosofia desde os seus começos. Em momentos muito especiais e sob condições muito específicas, que não podem ser encontradas em um Platão   ou em um Aristóteles, em um Mestre Eckhart   ou Nicolau de Cusa, nem em um Fichte   ou um Hegel, mas talvez em TOMÁS DE AQUINO, em Hume   e em Kant  , essa carência de linguagem permanece oculta sob uma sistemática conceitual equilibrada e só volta a manifestar-se, e nesse caso de maneira necessária, quando o pensar acompanha o movimento do pensamento. Nesse particular remeto à conferência que pronunciei em Dusseldorf, "Die Begriffsgeschichte und die Sprache   der Philosophie  ". VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

A partir do momento em que comecei a ser professor em Leipzig, sendo o único representante da matéria depois da jubilação de Theodor Litt, já não pude adaptar tão facilmente o ensino aos meus planos de investigação. Tinha que expor, além dos gregos e seu último e maior sucessor, Hegel, toda a tradição clássica desde Agostinho e TOMÁS DE AQUINO até Nietzsche  , Husserl   e Heidegger… sempre atento aos textos, em minha condição de semifilólogo. Em seminários, trabalhei também com textos poéticos difíceis, de Hölderlin  , Goethe   e Rilke   sobretudo. Esse último, graças à sua linguagem refinada, era então o verdadeiro poeta da resistência universitária. Quem falasse como Rilke ou expusesse Hölderlin, como fazia Heidegger, era marginalizado e atraía os marginalizados para si. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.