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Arendt (LM): visão

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

Nossas atividades espirituais, ao contrário, são concebidas em palavras antes mesmo de ser comunicadas, mas a fala é própria para ser ouvida e as palavras são próprias para ser compreendidas por outros que também têm a habilidade de falar, assim como uma criatura dotada do sentido da VISÃO é própria para ver e ser vista. É inconcebível pensamento sem discurso, “pensamento e discurso antecipam um ao outro. Continuamente um toma o lugar do outro” [Merleau-Ponty  , Signs, introdução, p. 17]; realmente contam um com o outro. E embora a capacidade discursiva possa ser fisicamente localizada com melhor precisão do que muitas emoções — amor e ódio, vergonha e inveja —, seu locus   não é um “órgão” e ela não tem nenhuma das propriedades estritamente funcionais tão características de todo o processo orgânico da vida. É verdade que todas as atividades espirituais retiram-se do mundo das aparências, mas essa retirada não se dá em direção a um interior, seja ele do eu, seja da alma. O pensamento, e a linguagem conceitual que o acompanha, necessita — à medida que ocorre em e é pronunciado por um ser que se sente em casa no mundo das aparências — de metáforas que lhe possibilitem preencher a lacuna entre um mundo dado à experiência sensorial e um domínio em que tais apreensões imediatas de evidência não podem existir. Mas as nossas experiências de alma são de tal modo corporalmente limitadas, que falar de uma “vida interna” da alma é tão pouco metafórico quanto falar de um sentido interno graças ao qual temos claras sensações sobre o funcionamento ou o não funcionamento dos órgãos interiores. É óbvio que uma criatura privada de espírito não pode viver nada semelhante a uma experiência de identidade pessoal; ela está completamente à mercê de seu processo vital interno, de seus humores e emoções, cuja mudança contínua não é de modo algum diferente das contínuas transformações de nossos órgãos corporais. Toda emoção é uma experiência somática; meu coração dói quando estou magoado, aquece quando sinto simpatia, abre-se nos raros momentos em que o amor e a alegria me dominam, e sensações físicas similares apoderam-se de mim junto com a raiva, o ódio, a inveja e outros afetos. A linguagem da alma em seu estágio meramente expressivo, anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento, não é metafórica; ela não se afasta dos sentidos, nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas. Merleau-Ponty, que eu saiba, o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana, mas que tentou firmemente dar início a uma “filosofia da carne”, confundiu-se ainda com a antiga identificação entre espírito e alma quando definiu “o espírito como o outro lado do corpo”, já que “há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre eles” [The Visible and the Invisible, p. 259]. Precisamente a ausência de tais quiasmas ou conexões é o enigma principal dos fenômenos espirituais, e o próprio Merleau-Ponty, em outro contexto, reconheceu essa ausência com bastante clareza. O pensamento, escreve ele, “é ‘fundamental’ porque não está fundado em nada, mas não fundamental porque com ele não chegamos a um fundamento no qual devemos nos basear e ali permanecer. Por princípio, o pensamento fundamental não tem fundo. Ele é, se se quiser, um abismo” [Signs, p. 21]. Mas o que é verdadeiro para o espírito não é verdadeiro para a alma, e vice-versa. A alma, embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser, não é desprovida de fundo; ela realmente “transborda” do corpo; “ultrapassa seus limites, esconde-se nele — e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele” [The Visible and the Invisible, p. 259]. [Arendt  , Vida do Espírito I O Pensar 4]

De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e não autênticas, se poderia falar de semblâncias autênticas e não autênticas. Estas últimas, miragens como a de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeiras, ao contrário, e como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas “ilusões naturais e inevitáveis” de nosso aparelho sensorial, a que Kant   se referiu na introdução à dialética transcendental   da razão. Ele chamou a ilusão no juízo transcendente de “natural e inevitável” porque era “inseparável da razão humana e […] mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto, não deixará de lográ-la e de atraí-la continuamente para aberrações momentâneas que sempre pedem outras correções” [Critique of Pure Reason, B354-B355]. O argumento mais plausível, se não o mais forte, contra o positivismo simplista que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringe-se aos fatos observáveis, à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos, é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um mundo de aparências do qual não podemos escapar. Todas as criaturas vivas capazes de perceber aparências por meio de seus órgãos sensoriais e de exibir-se como aparências estão sujeitas a ilusões autênticas que não são as mesmas para todas as espécies, mas encontram-se vinculadas à forma e à modalidade de seu processo vital específico. Os animais também são capazes de produzir semblâncias — um número significativo deles pode até mesmo simular uma aparência física —, e tanto homens quanto animais têm a habilidade inata para manipular as aparências com o propósito de iludir. Pôr a descoberto a “verdadeira” identidade de um animal por trás de sua cor adaptativa temporária não é muito diferente de desmascarar o hipócrita. Mas o que aparece então sob a superfície ilusória não é um eu interno, uma aparência autêntica, imutável e confiável em seu estar-aí. Pôr a descoberto destrói uma ilusão, mas não revela nada que apareça autenticamente. Um “eu interno”, se é que ele chega a existir, nunca aparece nem para o sentido externo, nem para o interno; pois nenhum dos dados internos dispõe de características estáveis, relativamente permanentes, que, sendo reconhecíveis e identificáveis, particularizam a aparência individual. “Nenhum eu fixo e durável pode apresentar-se nesse fluxo de aparências interiores”, observou Kant repetidas vezes [Ibidem, A107. Cf. também B413: “Na intuição interna não há nada permanente”, e B420: Nada de “permanente” é “dado […] na intuição” “enquanto penso a mim mesmo”.]. Na verdade é enganoso até mesmo falar de “aparências” interiores; tudo o que conhecemos são sensações cuja inexorável sucessão impede que qualquer uma delas assuma uma forma duradoura e identificável. (“Pois onde, quando e como houve alguma vez uma VISÃO do interior? […] O ‘psiquismo’ é opaco para si mesmo.” [The Visible and the Invisible, pp. 18-19]) Emoções e “sensações internas” são “antimundanas”, pois carecem da principal característica mundana: “ficar imóvel e permanecer”, ao menos tempo suficiente para ser claramente percebidas — e não meramente sentidas —, intuídas, identificadas e reconhecidas; mais uma vez, de acordo com Kant, “o tempo, a única forma de intuição interna, não tem nada de permanente” [Critique of Pure Reason, A381]. Em outras palavras, quando Kant fala do tempo como a “forma da intuição interna”, ele fala, embora sem o saber, metaforicamente, e retira sua metáfora de nossas experiências espaciais relacionadas com aparências exteriores. É precisamente a ausência de forma e, portanto, de qualquer possibilidade de intuição, que caracteriza nossa experiência das sensações internas. Na experiência interna, a única coisa a que podemos nos prender para distinguir algo que se assemelhe à realidade dos humores incessantemente cambiantes de nossa psique é a repetição persistente. Em casos extremos, a repetição pode tornar-se tão persistente que resulta na permanência indestrutível de um único humor, uma única sensação; mas indica invariavelmente uma grave desordem psíquica, a euforia do maníaco ou a depressão do melancólico. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 5]

A cada um de nossos cinco sentidos corresponde uma propriedade do mundo específica e sensorialmente perceptível. Nosso mundo é visível porque dispomos de VISÃO, audível porque dispomos de audição, palpável e repleto de gostos e odores porque dispomos de tato, paladar e olfato. A propriedade mundana que corresponde ao sexto sentido é a realidade [realness]; a dificuldade que ela apresenta é que não pode ser percebida como as demais propriedades sensoriais. O sentido de realidade [realness] não é, estritamente falando, uma sensação; a realidade “está lá mesmo que nunca tenhamos certeza de conhecê-la” (Peirce) [Citado de Thomas Landon Thorson, Biopolitics, Nova York, 1970, p. 91], pois a “sensação” de realidade, do mero estar-aí, relaciona-se ao contexto no qual objetos singulares aparecem, assim como ao contexto no qual nós, como aparências, existimos em meio a outras criaturas que aparecem. O contexto como tal nunca aparece completamente; ele é evasivo, quase como o Ser que, como Ser, nunca aparece em um mundo repleto de seres, de entes singulares. Mas o Ser, que é, desde Parmênides  , o mais elevado conceito da filosofia ocidental, é uma coisa-pensamento que nós não esperamos que seja percebida pelos sentidos ou que produza uma sensação; ao passo que a realidade [realness] é parente da sensação; um sentimento de realidade [realness] ou irrealidade acompanha de fato todas as sensações de meus sentidos que, sem ele, não fariam “sentido”. Eis por que Tomás de Aquino   definia o senso comum, seu sensus communis  , como um “sentido interno” — sensus interior — que funcionava como a “raiz comum e o princípio dos sentidos exteriores” (“Sensus interior non dicitur communis […] sicut genus; sed sicut communis radix et principium   exteriorum sensuum”) [Summa Theologica, parte I, questão 78, 4 ad. 1]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

Uma vez que as atividades do espírito, por definição não-aparentes, ocorrem em um mundo de aparências e em um ser que participa dessas aparências por meio de seus órgãos sensoriais receptivos, bem como de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros, elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências. Trata-se não tanto de uma retirada do mundo — somente o pensamento, por sua tendência a generalizar, isto é, por sua preocupação especial com o geral em contraposição ao particular, tende a retirar-se completamente do mundo —, mas de uma retirada do mundo que está presente para os sentidos. Todo ato espiritual repousa na faculdade do espírito de ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos. A re-presentação, o fazer presente o que está de fato ausente, é o dom singular do espírito. E uma vez que toda a nossa terminologia é baseada em metáforas retiradas da experiência da VISÃO, esse dom é chamado de imaginação, definida por Kant como “a faculdade da intuição mesmo sem a presença do objeto” [“Anthropologie  ”, n° 28, Werke, vol. VI, p. 466]. A faculdade do espírito ter presente o que está ausente naturalmente não é restrita às imagens espirituais de objetos ausentes; a memória quase sempre armazena e mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais; e a vontade antecipa o que o futuro poderá trazer, mas que ainda não é. Somente pela capacidade do espírito tornar presente o que está ausente é que podemos dizer “não mais”, e constituir um passado para nós mesmos, ou dizer “ainda não”, e nos preparar para um futuro. Mas isso só é possível para o espírito depois de ele ter se retirado do presente e das urgências da vida cotidiana. Assim, para querer, o espírito deve se retirar da imediaticidade do desejo que, sem refletir e sem reflexividade, estende imediatamente a mão para pegar o objeto desejado; pois a vontade não se ocupa de objetos, mas de projetos, como, por exemplo, com a futura disponibilidade de um objeto que ela pode ou não desejar no presente. A vontade transforma o desejo em uma intenção. E, por último, o juízo, seja ele estético, legal ou moral  , pressupõe uma retirada decididamente “não-natural” e deliberada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos tal como são estabelecidos pela minha posição no mundo e pela parte que nele desempenho. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

A melhor descrição que conheço desse processo de preparação é dada por Agostinho  . A percepção sensível, diz ele, “a VISÃO, que era externa quando o sentido era formado por um corpo sensível, é seguida por uma VISÃO similar interna”, a imagem que o re-presenta [The Trinity, livro XI, cap. 3. Trad. ingl.: série Fathers of the Church, Washington, D.C., 1963, vol. 45]. Essa imagem é então guardada na memória, pronta para tornar-se uma “VISÃO em pensamento”, no momento em que o espírito a agarra; o decisivo é que “o que fica na memória” — a mera imagem daquilo que era real — é diferente da “VISÃO em pensamento” — o objeto deliberadamente relembrado. “O que fica na memória […] é uma coisa e […] algo diferente surge quando lembramos” [Ibidem], pois “o que é ocultado e mantido na memória é uma coisa, e o que é impresso por ela no pensamento daquele que relembra é outra” [Ibidem, cap. 8]. Portanto, o objeto do pensamento é diferente da imagem, assim como a imagem é diferente do objeto sensível e visível, do qual é uma simples representação. É por causa dessa dupla transformação que o pensamento “de fato vai mais longe ainda”, para além da esfera de toda imaginação possível, “onde nossa razão proclama a infinidade numérica que nenhuma VISÃO no pensamento de coisas corpóreas jamais alcançou”, ou “nos ensina que até mesmo os corpos mais minúsculos podem ser infinitamente divididos” [Ibidem, cap. 10]. A imaginação, portanto, que transforma um objeto visível em uma imagem invisível, apta a ser guardada no espírito, é a condição sine qua non para fornecer ao espírito objetos-de-pensamento adequados; mas estes só passam a existir quando o espírito ativa e deliberadamente relembra, recorda e seleciona do arquivo da memória o que quer que venha a atrair o seu interesse   a ponto de induzir a concentração; nessas operações, o espírito aprende a lidar com coisas ausentes e se prepara para “ir mais além”, em direção ao entendimento das coisas sempre ausentes, e que não podem ser lembradas, porque nunca estiveram presentes para a experiência sensível. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

O que é enfatizado aqui como mais nobre do que a competição pela fama e pelo lucro não é certamente uma verdade invisível e inacessível ao homem comum; tampouco o lugar para onde os espectadores se retiram pertence a alguma região “mais elevada”, tal como foi posteriormente figurada por Parmênides e por Platão  ; seu lugar está no mundo e a sua “nobreza” está somente em não participar do que está ocorrendo, em observá-lo como a um mero espetáculo  . O termo filosófico “teoria” deriva da palavra grega que designa espectadores, theatai; a palavra “teórico”, até há alguns séculos, significava “contemplando”, observando do exterior, de uma posição que implica a VISÃO de algo oculto para aqueles que tomam parte no espetáculo e o realizam. É óbvia a inferência que se pode fazer a partir dessa antiga distinção entre agir e compreender: como espectador, pode-se compreender a “verdade” sobre o espetáculo, mas o preço a ser pago é a retirada da participação no espetáculo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 11]

Tais diferenças entre o pensamento concreto em imagens e o nosso lidar abstrato com conceitos verbais são fascinantes e inquietantes — não tenho competência para lidar com elas adequadamente. São talvez até mais inquietantes porque, entre elas, podemos perceber uma hipótese que compartilhamos com os chineses: a prioridade inquestionável da VISÃO para as atividades mentais. Tal prioridade, como veremos rapidamente, permanece absolutamente decisiva através da história da metafísica ocidental e de sua noção de verdade. O que nos distingue deles não é o nous, mas sim o logos  , nossa necessidade de explicar e de justificar com palavras. Todos os processos estritamente lógicos, tais como a dedução de inferências do geral para o particular, ou como o raciocínio indutivo de particulares para alguma regra geral, representam tais justificativas, e isso só se pode fazer com palavras. Wittgenstein  , ao que eu saiba, foi o único a conscientizar-se do fato de que a escrita hieroglífica correspondia à noção de verdade compreendida segundo a metáfora da VISÃO. Ele escreve: “Para entender a essência de uma proposição devemos considerar a escrita hieroglífica, que retrata os fatos que descreve. E a escrita alfabética dela se desenvolveu sem perder o que era essencial ser retratado.” [Tractatus, 4.016 (“Um das Wesen   des Satzes zu verstehen  , denken   wir an die Hieroglyphenschrift, welche die Tatsachen, die sie beschreibt, abbildet. Und aus ihr wurde die Buchstabenschrift ohne das Wesentliche der Abbildung   zu verlieren”)] Essa observação final é por certo altamente duvidosa. Menos duvidoso é que a filosofia, tal como a conhecemos, dificilmente teria chegado a existir sem a recepção e a adaptação iniciais do alfabeto feitas pelos gregos a partir de fontes fenícias. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Ainda assim, a linguagem, o único meio pelo qual é possível tornar manifestas as atividades espirituais não só para o mundo exterior como também para o próprio eu espiritual, não é de modo algum tão evidentemente adequada à atividade do pensamento quanto a VISÃO o é para a sua tarefa de ver. Nenhuma língua tem um vocabulário já pronto para as necessidades da atividade espiritual; todas tomam seu vocabulário de empréstimo às palavras originalmente concebidas para corresponder ou a experiências dos sentidos, ou a outras experiências da vida comum. Tal empréstimo, entretanto, jamais se dá ao acaso ou é arbitrariamente simbólico (como os símbolos matemáticos) ou emblemático; toda a linguagem filosófica, e a maior parte da linguagem poética, é metafórica; não no sentido simples do Dicionário Oxford, que define “Metáfora” como “a figura de linguagem na qual um nome ou um termo descritivo é transferido para um objeto diferente de, mas análogo a, aquele ao qual é adequadamente aplicável”. Não há analogia   entre, digamos, um pôr do sol e a velhice; e quando o poeta, em uma metáfora gasta, fala da velhice como o “poente da vida”, ele pensa que o poente se relaciona com o dia que o precede da mesma forma que a velhice se relaciona com a vida. Se, portanto, como diz Shelley, a linguagem do poeta é “vitalmente metafórica”, ela o é enquanto “marca relações de coisas anteriormente não apreendidas, perpetuando sua apreensão” (grifo nosso) [A Defense of Poetry]. Toda metáfora descobre “uma percepção intuitiva de similaridades em dessemelhantes” e, segundo Aristóteles  , é exatamente por isso que ela é um “sinal de gênio”, “de longe, a maior de todas as coisas” [Poetics, 1459]. Mas essa similaridade, também para Aristóteles, não está presente em objetos diferentes sob outros aspectos, mas é uma similaridade de relações, como numa analogia que sempre necessita de quatro termos, e pode ser representada pela fórmula B:A = D:C. “Desse modo, uma taça está para Dionísio assim como um escudo está para Ares. A taça será, por conseguinte, descrita metaforicamente como ‘o escudo de Dionísio’” [Ibidem, 1457b17 e ss]. E essa fala por analogia, em linguagem metafórica, é, segundo Kant, o único modo pelo qual a razão especulativa, que aqui chamamos pensamento, pode se manifestar. A metáfora fornece ao pensamento “abstrato” e sem imagens uma intuição colhida do mundo das aparências, cuja função é a de “estabelecer a realidade de nossos conceitos” [Critique of Judgmenf, nº 59], como desfazendo a retirada do mundo, precondição para as atividades do espírito. Isso é relativamente fácil desde que nosso pensamento simplesmente responda aos apelos de nossa necessidade de conhecer e compreender o que é dado no mundo de aparências, isto é, desde que permaneçamos dentro das limitações do raciocínio do senso comum; o que precisamos para o pensamento do senso comum é de exemplos que ilustrem nossos conceitos; tais exemplos são adequados porque nossos conceitos são extraídos das aparências — são meras abstrações. É completamente diferente quando a necessidade da razão transcende os limites de um dado mundo e nos leva ao mar incerto da especulação, em que “não pode ser dada nenhuma intuição adequada a [ideias da razão]” [Ibidem]. Nesse ponto entra a metáfora. A metáfora realiza a “transferência” — metapherein — de uma genuína e aparentemente impossível metabasis eis allo genos, a transição de um estado existencial, aquele do pensar, para outro, aquele do ser uma aparência entre aparências; e isso só pode ser feito através de analogias. Kant dá como exemplo de metáfora bem-sucedida a descrição do estado despótico como uma simples máquina (como um moedor manual), porque é “governado por uma vontade individual absoluta […]. Pois entre um estado despótico e um moedor manual não há, decerto, qualquer semelhança, mas há semelhança nas regras segundo as quais refletimos sobre essas duas coisas e sobre sua causalidade”. E acrescenta: “Nossa linguagem está cheia de apresentações indiretas desse tipo”, um assunto que “não foi suficientemente analisado até agora e que merece uma investigação mais profunda” [Ibidem]. As percepções da metafísica são “alcançadas por analogia, não no sentido habitual de semelhança imperfeita entre duas coisas, mas de uma semelhança perfeita entre duas relações entre coisas completamente diferentes” [Prolegomena to Every Future Metaphysics, nº 58, trad. Carl J. Friedrich, Modern Library, Nova York, s/d. O próprio Kant estava ciente dessa peculiaridade da linguagem filosófica na época pré-crítica: “Nossos mais altos conceitos racionais […] amiúde usam uma roupagem física de modo a obter clareza.” “Träume eines Geistersehers”, p. 948]. Na linguagem muitas vezes menos precisa da Crítica do juízo, Kant chama também de simbólicas essas “representações de acordo com uma simples analogia” [N° 59. Seria interessante examinar a noção kantiana de “analogia” nos antigos escritos de Opus Postumum; é notável como cedo ocorreu a Kant que o pensamento metafórico — isto é, o pensamento por analogias — poderia livrar o pensamento especulativo de sua peculiar irrealidade. Já em Allgemeine Naturgeschichte und Theorie   des Himmels, publicado em 1755, escreve ele a respeito da “probabilidade” da existência de Deus: “Não estou assim tão devotado às consequências de minhas teorias que não possa reconhecer […] que elas são indemonstráveis. Espero, contudo, que como um mapa do infinito compreendendo, como compreende, um tema que parecia […] estar para sempre oculto ao entendimento humano, isso não signifique que essas considerações sejam, a um só tempo, vistas como uma quimera, quando o recurso empregado foi o da analogia.” (grifos meus). Trad. inglesa por W. Hastie, citada do Kant’s Cosmogony, Glasgow, 1900, pp. 146-147]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

Sabemos que a palavra noeomai foi primeiramente utilizada no sentido de percepção visual e, em seguida, transferida para percepções do espírito, com o sentido de “apreensão”; acabou finalmente tornando-se uma palavra para designar a mais alta forma de pensamento. É razoável supor que ninguém pensou que o olho, o órgão da VISÃO, e o nous, o órgão do pensamento, fossem o mesmo; mas a própria palavra indicou que a relação entre o olho e o objeto visto era semelhante à relação entre o espírito e seu objeto-de-pensamento — isto é, forneceu o mesmo tipo de evidência. Sabemos que ninguém antes de Platão usara essa palavra própria para designar tanto a forma como o esboço do artesão na linguagem filosófica, assim como ninguém antes de Aristóteles usara a palavra energos — um adjetivo que designa aquele que é ativo, que está trabalhando, ocupado — para formular o termo energeia  , atualidade, em oposição a dynamis, simples potencialidade. E o mesmo se dá com termos tão clássicos quanto “substância” e “acidente”, derivados do latim hypokeimenon   e kata symbebekos   — aquilo que subjaz, distinto daquilo que acidentalmente acompanha. Ninguém antes de Aristóteles usara a palavra Kategoria   (categoria) — cujo significado era aquilo que se afirmava, em um julgamento, a respeito do réu — em outro sentido que não fosse o de acusação [Ver Francis MacDonald Cornford, Plato’s Theory of Knowledge, Nova York, 1957, p. 275]. No sentido aristotélico, essa palavra acabou tornando-se algo como “predicado”, com base na seguinte analogia: assim como fazer uma acusação (katagoreuein ti tinos) é atribuir (Kata) ao réu algo de que ele é acusado, e, portanto, algo que pertence a ele, predicar é atribuir ao sujeito a qualidade apropriada. Esses exemplos são todos familiares e poderiam se multiplicar. Acrescentarei apenas mais um, a meu ver especialmente expressivo, dada a grande importância que tem na terminologia filosófica; nossa palavra para o grego nous é ou mente — do latim mens  , indicando algo como o alemão Gemüt   — ou razão. Interesso-me aqui apenas por esta última acepção. Razão vem do latim ratio, derivado do verbo reor, ratus sum, que significa calcular e também raciocinar. A tradução latina tem um conteúdo metafórico inteiramente distinto, que se aproxima muito mais da palavra grega logos do que de nous. Para aqueles que têm um preconceito compreensível contra argumentos etimológicos, gostaria de lembrar a famosa expressão de Cícero: ratio et oratio, que não faria qualquer sentido em grego. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]

As atividades do espírito trazidas à linguagem como único meio de sua manifestação retiram cada uma de suas metáforas de um sentido corporal diferente, e sua plausibilidade depende de uma afinidade inata entre certos dados mentais e certos dados sensíveis. Assim, desde o início da filosofia formal  , o pensamento foi concebido em termos de VISÃO. E como o pensamento é a mais fundamental e a mais radical das atividades espirituais, a VISÃO “tendeu a servir de modelo para a percepção em geral, e, portanto, de medida para os outros sentidos” [Hans Jonas  , The Phenomenon of Life, Nova York, 1966, p. 135. Seu estudo “The Nobility of Sight” é a única ajuda no esclarecimento da história do pensamento ocidental]. A predominância da VISÃO impregna tão profundamente o discurso grego e, portanto, nossa linguagem conceitual, que raramente se encontra qualquer consideração a seu respeito, como se ela pertencesse às coisas óbvias demais para serem notadas. Uma breve observação de Heráclito  , “Os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos” [Diels e Kranz, frag. 101a], é uma exceção, e não das mais úteis. Pelo contrário, quando levamos em conta como é fácil para a VISÃO — diferentemente dos outros sentidos — deixar de fora o mundo exterior, e quando examinamos a antiga noção de bardo cego, cujas histórias são ouvidas, podemos nos indagar por que não foi a audição a metáfora do pensamento. [Aristóteles parece ter pensado, nessas linhas, em um de seus tratados científicos: “Dessas faculdades, o olhar é a mais importante simplesmente pelas necessidades da vida; mas para o espírito (nous), e indiretamente (kata symbóbekos), a mais importante é o ouvido […]. [É ele que] mais contribui para a sabedoria. O discurso, que é a causa do aprendizado, só o é porque é audível; mas não é audível em si, mas indiretamente, porque a fala é composta de palavras, e cada palavra é um símbolo racional. Por conseguinte, para aqueles que estão privados de um sentido ou outro desde o nascimento, o cego é mais inteligente do que o surdo ou o mudo.” O caso é que ele parece nunca ter lembrado dessa observação quando escreveu filosofia. Aristóteles, On Sense and Sensible Objects, 437a4-17.] Não é de todo verdade, contudo, que, nas palavras de Hans Jonas, “o espírito foi onde a VISÃO apontou.” [Op. cit., p. 152] As metáforas utilizadas pelos teóricos da Vontade raramente são extraídas da esfera da VISÃO; seu modelo ou é o desejo como propriedade quintessencial de todos os nossos sentidos — já que servem ao apetite geral de um ser que precisa e que quer —, ou é extraída da audição, na linha da tradição judaica de um Deus que se ouve mas não se vê. (As metáforas retiradas da audição são muito raras na história da filosofia; a mais notável exceção moderna são os últimos escritos de Heidegger, nos quais o ego   pensante “ouve” o chamado do Ser. Os esforços medievais para reconciliar o ensino bíblico com a filosofia grega atestam a completa vitória da intuição e da contemplação sobre toda forma de audição; tal vitória foi, por assim dizer, pressagiada pela antiga tentativa de Fílon de Alexandria de afinar seu credo judaico com uma filosofia platonizante. Ele estava, todavia, ciente da distinção entre uma verdade hebraica, que era escutada, e a VISÃO grega do verdadeiro. Transformou a primeira em simples preparação para a segunda, a ser alcançada pela intervenção divina que transformara os ouvidos do homem em olhos, permitindo a maior perfeição da cognição humana.) [Ver Hans Jonas, cap. 3, sobre Fílon da Alexandria, especialmente pp. 94-97, do Vos der Mythologie zur mystischen Philosophie  , Göttingen, 1954, que é a segunda parte de Gnosis   und spätantiker Geist  , Göttingen, 1934.] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Finalmente o juízo, que é, em termos de descoberta, a última de nossas habilidades espirituais, retira, como tão bem sabia Kant, sua linguagem metafórica do sentido do gosto (A crítica do juízo foi originalmente concebida como “Crítica do gosto”), o mais íntimo, privado e indiossincrático dos sentidos, de certo modo oposto à VISÃO, com sua “nobre” distância. O principal problema da Crítica do juízo tornou-se, portanto, a questão de como proposições de juízo poderiam chegar a pretender, como é o caso, uma concordância geral. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Jonas enumera todas as vantagens da VISÃO como metáfora-guia e como modelo para o espírito pensante. Há, em primeiro lugar, o fato indiscutível de que nenhum outro sentido estabelece distância tão segura entre sujeito e objeto; a distância é a condição mais básica para o funcionamento da VISÃO. “O ganho é o conceito de objetividade, da coisa como ela é em si, diferentemente da coisa como ela me afeta; dessa distinção surge toda a ideia de theoria   e de verdade teórica.” Além disso, a VISÃO nos fornece um “múltiplo contemporâneo”, enquanto todos os outros sentidos, especialmente a audição, “constroem suas ‘unidades de percepção de um múltiplo’ a partir de uma sequência temporal   de sensações”. A VISÃO permite “liberdade de escolha […], que depende […] função […] do fato de que, vendo, ainda não estou capturado pelo objeto visto […]. [O objeto visto] deixa-me estar”, assim como eu o deixo estar, enquanto os outros sentidos me afetam diretamente. Isso vale especialmente para a audição, a única concorrente possível para a VISÃO em termos de primazia, mas que se vê desqualificada pelo fato de que “invade um sujeito passivo”. Na audição, aquele que percebe está à mercê de algo ou de alguém. (A propósito, essa pode ser a razão pela qual a língua alemã tenha feito derivar uma enorme série de palavras indicadoras da posição de não-liberdade do verbo hören  , ouvir: gehorchen, hörig, gehören  , obedecer, ser cativo, pertencer.) O mais importante em nosso contexto é o fato, trazido à tona por Jonas, de que a VISÃO necessariamente “introduz o observador”; e para o observador, ao contrário do ouvinte, o “presente [não é] a experiência pontual do agora que passa”, mas é transformado em uma “dimensão dentro da qual as coisas podem ser observadas […] como uma permanência do mesmo”. “Somente a VISÃO fornece a base sensível na qual o espírito pode conceber a ideia do eterno, aquilo que jamais se modifica e está sempre presente.” [The Phenomenon of Life, pp. 136-147, Cf. Von der Mythologie, pp. 138-152] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

No Fedro [275d-277a], Platão contrasta a palavra escrita com a palavra falada, usada na arte de “discorrer sobre as coisas” (techne   dialektike  ), a “fala viva, o original do qual o discurso escrito pode bem ser chamado de uma espécie de imagem”. A arte do discurso vivo é exaltada porque ele sabe como selecionar seus ouvintes; ele não é estéril (akarpoi), mas contém um sêmen a partir do qual diferentes logoi, palavras e argumentos, crescem em diferentes ouvintes, de modo que a semente se torne imortal. Mas se quando pensamos levamos a cabo esse diálogo interior, é como se estivéssemos “escrevendo palavras em nossas almas”; em momentos como esses, “nossa alma é como um livro”, mas um livro que já não contém mais palavras [Philebus, 38e-39b]. Depois do escritor, um segundo artesão intervém quando pensamos: trata-se de um “pintor”, que pinta em nossa alma aquelas imagens correspondentes às palavras escritas. “Isso acontece quando afastamos essas opiniões e afirmações faladas da VISÃO ou de qualquer outro tipo de percepção, de modo que então passamos, de alguma maneira, a ver as imagens daquilo sobre o que inicialmente opinamos e falamos.” [Ibidem, 39b-c] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Citei essas poucas páginas da Sétima carta com algum vagar porque oferecem, como em nenhum outro lugar, uma VISÃO sobre a incompatibilidade entre a intuição — a metáfora-guia para a verdade filosófica — e o discurso — o meio pelo qual o pensamento se manifesta: a primeira sempre nos apresenta um múltiplo contemporâneo, enquanto o último necessariamente revela-se em uma sequência de palavras e sentenças. A ideia de que o discurso era um simples instrumento para a intuição foi um axioma até mesmo para Platão, e assim permaneceu ao longo da história da filosofia. Desse modo, Kant ainda nos diz: “worauf   alles Denken als Mittel   abzweckt, [ist] die Anschauung  ”, “todo pensamento é um meio de alcançar a intuição” [Critique of Pure Reason, B33. Para: “Nicht   dadurch, dass   ich   bloss denke, erkenne ich irgend ein Objekt  , sondern nur dadurch, dass ich eine gegebene Anschauung… bestimme, kann ich irgend einen Gegenstand erkennen  ” (“Não conheço um objeto apenas pelo que penso; mas apenas à medida que determino uma dada intuição posso conhecer um objeto”) (B406).]. E Heidegger: “A dialegesthai   traz em si a tendência em direção a uma nova noein  , uma VISÃO […]. Falta-lhe o meio adequado da própria theorein […]. Isso é o sentido básico da dialética platônica, que tende para uma VISÃO, para um desvelamento que prepara a intuição original através dos discursos […]. O logos permanece atado à VISÃO; se a fala se afasta da evidência dada na intuição, ela degenera em um palavrório que impede a VISÃO. Leigen se enraíza em VISÃO, horan.” [Faço uma citação do antigo curso de Heidegger sobre o Sofista de Platão (19241925), de acordo com uma transcrição literal, pp. 8 e 155, 160. Ver também o comentário de Cornford sobre o Sofista em Plato’s Theory of Knowledge, p. 189 e n. 1, em que noein significa o ato de “intuição (noesis  ) que vê diretamente, sem […] razão discursiva”.] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Dentre as peculiaridades mais destacadas de nossos sentidos está o fato de que não podem ser traduzidos entre si — nenhum som pode ser visto, nenhuma imagem pode ser ouvida, e assim por diante —, embora estejam interligados pelo senso comum, que, por essa simples razão, é o maior de todos os sentidos. Sobre esse tema citei Tomás de Aquino: “a única faculdade [que] se estende a todos os objetos dos cinco sentidos” [Cap. I do presente volume]. A linguagem, correspondendo ou acompanhando o senso comum, dá a um objeto seu nome comum; esse aspecto comum não só é fator decisivo para a comunicação intersubjetiva — o mesmo objeto sendo percebido por diferentes pessoas e comum a elas —, como também serve para identificar um dado que aparece de forma totalmente diferente para cada um dos cinco sentidos: áspero ou macio ao tato, amargo ou doce ao paladar, brilhante ou escuro à VISÃO, soando em tons diferentes para a audição. Nenhuma dessas sensações pode ser adequadamente descrita em palavras. Nossos sentidos cognitivos, VISÃO e audição, têm pouco mais afinidade com as palavras do que os sentidos inferiores do olfato, do paladar e do tato. O máximo que podemos dizer de alguma coisa é que cheira como uma rosa, que o gosto é como o de sopa de ervilha, que a textura é como a do veludo. “Uma rosa é uma rosa é uma rosa.” [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Obviamente, tudo isso é apenas mais uma maneira de dizer que a verdade, na tradição metafísica, entendida nos termos da metáfora da VISÃO, é inefável por definição. Sabemos, pela tradição hebraica, o que acontece com a verdade quando a metáfora-guia não é a VISÃO, mas a audição (em muitos aspectos, é mais parecida com o pensamento do que a VISÃO, pela habilidade que tem de acompanhar sequências). O Deus hebraico pode ser ouvido, mas não visto, e a verdade torna-se, portanto, invisível: [“Não farás para ti escultura ou imagem semelhante a nada do que há nos céus ou abaixo da terra.”] A invisibilidade da verdade é, na religião hebraica, tão axiomática quanto sua inefabilidade na filosofia grega, da qual toda filosofia posterior derivou suas hipóteses axiomáticas. E enquanto a verdade, entendida em termos de audição, exige obediência, a verdade em termos de VISÃO apoia-se no mesmo tipo de autoevidência poderosa que nos força a admitir a identidade de um objeto no momento em que está diante de nossos olhos. A metafísica, a “ciência assombrosa” que “contempla aquilo que é enquanto é” (epistémé hé theórei to on hé on) [Aristóteles, Metaphysics, 1003a21], poderia descobrir uma verdade “que constrangesse os homens pela força da necessidade” (hyp’ autés tés alétheias anagkazomenoi) [Ibidem, 984b10], porque ela apoia-se na mesma impermeabilidade à contradição que conhecemos tão bem pelas experiências visuais. Porque nenhum discurso, seja ele dialético, no sentido socrático-platônico, seja lógico, que use regras estabelecidas para tirar conclusões a partir de premissas aceitas, seja retórico-persuasivo, jamais pode equiparar-se à simples, inquestionada e inquestionável certeza da evidência visível. “O que é aquilo que lá aparece? É um homem.” Essa é uma perfeita adequatio rei et intellectus [Tomás de Aquino, De Veritate, questão I, art. 1], o acordo entre o conhecimento e seu objeto, que até para Kant era ainda a definitiva definição de verdade. Kant, entretanto, estava ciente de que, para tal verdade, “não se pode exigir qualquer critério geral. Seria […] autocontraditório” [Critique of Pure Reason, B82, B83]. A verdade como autoevidência não demanda um critério; ela é o critério, o árbitro final de tudo o que possa vir. Assim, Heidegger, ao discutir o conceito tradicional de verdade em Sein und Zeit  , ilustra-a da seguinte maneira: “Suponhamos que alguém de costas para a parede faz a afirmação correta de que ‘o quadro pendurado na parede está torto’. A afirmação é confirmada quando o homem que a faz vira-se e percebe o quadro torto na parede.” [Sein   und Zeit  , Tübingen, 1949, n° 44(a), p. 217] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

O que recomendou a VISÃO como metáfora-guia na filosofia — e, juntamente com a VISÃO, a intuição como ideal   de verdade — foi não somente a nobreza desse nosso sentido mais cognitivo, como também a própria noção inicial de que a busca filosófica do significado era idêntica à busca, pelo cientista, do conhecimento. Vale a pena relembrar aqui a estranha torção que Aristóteles dá, no primeiro capítulo da Metafísica, à proposição de Platão de que thaumazein  , o espanto, é o começo de toda filosofia. Mas a identificação da verdade com o significado foi feita, é claro, em momento ainda anterior. Porque o conhecimento vem da busca daquilo que nos acostumamos a chamar de verdade; e a forma mais alta, mais definitiva da verdade cognitiva é a intuição. Todo conhecimento começa na investigação das aparências tais como nos são dadas aos sentidos. E se o cientista quiser prosseguir e descobrir as causas dos efeitos visíveis, seu objetivo final será fazer aparecer o que possa estar escondido por trás das simples superfícies. Isso é verdade até mesmo para os mais complicados instrumentos mecânicos, projetados para capturar o que se esconde à inspeção a olho nu. Em última análise, a confirmação da teoria de qualquer cientista surge pela evidência dos sentidos — exatamente como no modelo simplista que tomei de Heidegger. A tensão a que aludi entre a VISÃO e a fala não entra aqui; nesse nível, como no exemplo citado, a fala traduz a VISÃO de maneira bastante adequada (seria diferente se o conteúdo do quadro, e não somente sua posição na parede, tivesse que ser expresso em palavras). O simples fato de que os símbolos matemáticos possam ser substituídos por palavras reais e que possam mesmo ser o mais expressivo dos fenômenos subjacentes forçados a aparecer pelos instrumentos, contra sua própria inclinação, demonstra a eficácia superior das metáforas da VISÃO para tornar manifesta qualquer coisa que dispense a fala como condutora. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

O pensamento, entretanto — ao contrário das atividades cognitivas, que o podem utilizar como um de seus instrumentos —, precisa do discurso não só para ter realidade sonora e para tornar-se manifesto; precisa dele até mesmo para poder ser ativado. E uma vez que o discurso é realizado em sequências de sentenças, o final do pensamento não pode jamais ser uma intuição, nem pode ser confirmado por algum pedaço de autoevidência observado através da contemplação muda. Se o pensamento, guiado pela velha metáfora da VISÃO e compreendendo mal a si mesmo e à sua própria função, espera “verdade” de sua atividade, tal verdade não é só inefável por definição. “Como as crianças que tentam agarrar a fumaça com as mãos, os filósofos veem muitas vezes o objeto que estava ao seu alcance escapulir diante deles” — Bergson  , o último filósofo a acreditar firmemente em “intuição”, descreveu muito precisamente o que de fato aconteceu com os filósofos daquela escola [An Introduction to Metaphysics (1903), trad. T. E. Hulme, Indianápolis, Nova York, 1955, p. 45]. E o motivo do “fracasso” é simplesmente que nada expresso em palavras pode jamais se ater à imobilidade de um objeto de simples contemplação. Comparado com um objeto de contemplação, o significado sobre o qual se pode falar é fugidio: se o filósofo quer vê-lo e capturá-lo, ele “foge” [Ibidem]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Desde Bergson, o uso da metáfora da VISÃO na filosofia vem, não sem surpresa, diminuindo, à medida que a ênfase e o interesse passaram inteiramente da contemplação para a fala, de nous para logos. Com essa mudança, o critério para a verdade passou do acordo entre o conhecimento e seu objeto — a adequatio rei et intellectus, entendida como análoga à adequação entre VISÃO e objeto visto — à simples forma do pensamento, cuja regra básica é o axioma da não-contradição, da consistência interna, isto é, passou àquilo que ainda Kant concebia como a simples “pedra de toque negativa da verdade”. “Além da esfera do conhecimento analítico, ela não tem qualquer autoridade ou campo de aplicação. como um critério suficiente de verdade.” [Critique of Pure Reason, B84 e B189-B191] Para os poucos filósofos modernos que ainda se apegam às hipóteses metafísicas tradicionais — por mais tênues e duvidosas que sejam —, para Heidegger e para Walter Benjamin, a velha metáfora da VISÃO não chegou a desaparecer de todo, mas, por assim dizer, encolheu: em Benjamin, a verdade “passa despercebida” (huscht vorüber); em Heidegger, o momento de iluminação é concebido como “relâmpago” (Blitz), e é finalmente substituído por uma metáfora inteiramente diferente, das Gelaüt der Stille, “o som ressonante do silêncio”. Em matéria de tradição, esta última metáfora é a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação não-discursiva. Pois, embora a metáfora seja agora, no fim e no ápice do processo de pensamento, extraída do sentido da audição, ela não corresponde em nada à escuta de uma sequência articulada de sons, como uma melodia, mas, novamente, a um estado mental imóvel de pura receptividade. E uma vez que o pensamento, um diálogo silencioso de mim comigo mesmo, é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do corpo — “Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma” (Catão) —, as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela VISÃO. (Bergson, ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição, falando sobre o ideal de verdade, refere-se ao “caráter essencialmente ativo, eu quase diria, violento, da intuição metafísica”, sem ter consciência da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade, muito menos uma atividade violenta.) [An Introduction to Metaphysics, p. 45] E Aristóteles fala de “energeia filosófica” como a atividade “perfeita e desembaraçada que [justamente por essa razão] abriga em si o mais doce de todos os prazeres” [Alla men he ge teleia energeia kai akolytos en heaute echei to chairein, hoste an eie he theoretike energeia pason hediste] [Protreptikos, Düring ed., B87]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Em todo caso, para os gregos, a filosofia era a “obtenção da imortalidade” [Francis MacDonald Cornford, Plato and Parmenides, Nova York, 1957, Introdução, p. 27] e, como tal, realizava-se em dois estágios. O primeiro era a atividade do noûs, que consistia na contemplação do eterno e era, em si mesma, aneu logou, não discursiva; em seguida vinha a tentativa de traduzir a VISÃO em palavras. Isso era chamado por Aristóteles alétheuein e significa não apenas dizer as coisas como elas realmente são, sem esconder nada, mas, além disso, aplica-se exclusivamente às proposições sobre coisas que sempre e necessariamente são, e que não podem ser de outro modo. O homem como homem, distinto de outras espécies animais, é um composto de noûs e logos: “Sua essência é ordenada de acordo com o noûs e o logos — ho anthropos   kai kata logon kai kata noun tetaktai autou he ousia  .” [Protreptikos, ed. Düring, B65] Dos dois, apenas o noûs habilita o homem a tomar parte no eterno e no divino, enquanto o logos, que se destina a “dizer o que é” (legein ta eonta — Heródoto), é a habilidade singular e especificamente humana que se aplica também ao mero “pensamento mortal”, opiniões ou dogmata, a habilidade que ocorre no âmbito dos assuntos humanos e do que meramente “parece” mas não é. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]

O logos, ao contrário do nous, não é divino, e a tradução da VISÃO do filósofo em palavras — alétheuein, no sentido estrito do filósofo — criou dificuldades consideráveis. O critério da fala filosófica é a homoiósis (em oposição à doxa  , ou opinião), “fazer um similar”, ou assimilar em palavras o mais fielmente possível a VISÃO fornecida pelo nous, em si mesma sem palavras, e que vê “diretamente, sem nenhum processo de raciocínio discursivo” [Cornford, Plato’s Theory of Knowledge, p. 189]. O critério para a faculdade da VISÃO não é a “verdade”, como sugere o verbo aletheuein  , derivado do termo homérico aléthes (verídico). Em Homero  , esse verbo é usado para as verba dicendi, no sentido de “diga-me sem esconder (lanthanai) nada dentro de você, ou seja, não me engane” — como se a função comum da fala, aqui implicada no alpha privativum, fosse precisamente a de enganar. A verdade permanece como critério da fala, embora mude de caráter à medida que ela tem que se assimilar e seguir as indicações da VISÃO do nous. O critério para a VISÃO é somente a qualidade de eternidade no objeto visto. O espírito pode diretamente tomar parte nessa eternidade, mas “se um homem abandona-se aos apetites e às ambições, e só com eles se ocupa […], não deixará de tornar-se totalmente mortal, pois só alimenta sua parte mortal”. Mas se ele “empenhou-se ardentemente” na contemplação dos objetos eternos, “não poderá deixar de possuir a imortalidade no mais alto grau que a natureza humana admite” [Timaeus, 90c]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]

A descoberta de Epiteto foi de que o espírito, conseguindo reter as “impressões” externas (phantaisiai), era capaz de lidar com as “coisas exteriores” como simples “dados da consciência”, como diríamos. A dynamis logiké examina tanto a si mesma quanto as “impressões” deixadas no espírito. A filosofia nos ensina a “lidar com as impressões corretamente”; ela testa-as e “distingue-as, sem fazer uso de uma sequer que não tenha sido testada”. Olhar para uma mesa não nos capacita para decidir se a mesa é boa ou ruim; a VISÃO não nos informa, nem qualquer outro dos nossos sentidos. Somente o espírito, que lida não com as mesas reais, mas com impressões de mesas, pode nos informar. (“O que nos informa que o ouro é uma coisa bela? Pois não é o ouro que nos informa. Claramente, é a faculdade que lida com impressões.” [Ibidem]) O importante é que não é preciso sair de si mesmo se o interesse concentra-se integralmente no eu. As coisas só têm valor à medida que o espírito pode envolvê-las de dentro de si. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

A força unificadora da Vontade não funciona só na atividade puramente espiritual; manifesta-se também na percepção sensorial. É esse elemento do espírito que dá significado à sensação. Em todo ato de VISÃO, diz Agostinho, temos que “distinguir as três seguintes coisas […] o objeto que vemos […], e esse pode naturalmente existir antes de ser visto: em segundo lugar, a VISÃO que não estava lá antes de percebermos o objeto […], e, em terceiro lugar, a força que fixa o sentido da VISÃO no objeto, […] a saber, a atenção do espírito”. Sem esta última, uma função da Vontade, temos apenas “impressões” sensoriais, sem que realmente as percebamos; um objeto é visto somente quando concentramos nosso espírito na percepção. Podemos ver sem perceber e ouvir sem escutar, como acontece amiúde quando estamos distraídos. A “atenção do espírito” é necessária para transformar a sensação em percepção; a Vontade que “fixa o sentido na coisa vista, estabelecendo um nexo entre os dois, é essencialmente diferente do olho que vê e do objeto visível; é espírito, e não corpo”. [Ibidem, cap. ii, 2] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

O aspecto mais surpreendente desta questão é que o senso comum, a faculdade de julgar e discriminar entre o certo e o errado, deva basear-se no sentido do gosto. De nossos cinco sentidos, três nos dão claramente objetos do mundo exterior e são portanto facilmente comunicáveis. VISÃO, audição e tato lidam direta e de certo modo objetivamente com objetos; olfato e gosto nos dão sensações que são inteiramente privadas e incomunicáveis; o gosto e o cheiro que sinto não podem absolutamente ser expressos em palavras. Parecem ser os sentidos privados por definição. Além disso, os três sentidos objetivos têm em comum o fato de serem capazes de representação — de ter presente algo que está ausente; posso lembrar-me de um edifício, de uma melodia, da textura do veludo. Esta faculdade chama-se, em Kant, Imaginação — disso, nem o gosto nem o olfato são capazes. Por outro lado, são bem claramente estes os sentidos discriminatórios: podemos nos furtar a julgar o que vemos e, embora isso seja mais difícil, podemos nos furtar a julgar o que ouvimos ou tocamos. Mas em questões de gosto e cheiro, o apraz-me ou o não me apraz é imediato e avassalador. E o prazer ou o desprazer são por sua vez inteiramente privados. Por que então o gosto deveria — e não só em Kant, mas desde Graciano — ser elevado, tornando-se o veículo da faculdade espiritual de julgar? E o juízo, por sua vez — quer dizer, não o juízo simplesmente cognitivo, que reside nos sentidos que nos dão os objetos e que temos em comum com todas as coisas vivas que têm o mesmo equipamento sensorial, mas o juízo entre certo e errado —, por que deveria ele basear-se neste sentido privado? Não é verdade que em questões de gosto podemos comunicar tão pouco que não podemos sequer discuti-las — de gustibus non disputandum est? [Arendt, Vida do Espírito Apêndice O Julgar ]